Bromberger e o futebol como ópera da vida contemporânea
Todos conhecem aquela famosa personagem de Nelson Rodrigues, a grã fina de narinas de cadáver, que levada a um campo de futebol faz a pergunta: quem é a bola? Desta forma o genial escritor satirizava aqueles que não se conformam com a importância que o futebol assumiu. Muitos acham incompreensível a atração que vinte e dois homens (ou vinte e duas mulheres) correndo atrás de uma bola despertam. O antropólogo francês Christian Bromberger procura responder exatamente a esta questão no seu livro Football: la bagatelle la plus sérieuse du monde (Futebol: a bagatela mais importante do mundo)
“Por quê nós, contemporâneos, a metade masculina, pelo menos a metade masculina, nos apaixonamos por competições de futebol? Qual a causa deste gosto quase universal por um jogo que apresenta todas as aparências da futilidade? Por quê mergulha-se tão facilmente nesta história de pés, de bola, de gols e de árbitro? E por quê o jogo é capaz de suscitar tantos comentários e discussões durante, mas também antes e depois do desenrolar da partida?
O trabalho de Bromberger é baseado em muitos anos de trabalho etnográfico junto a torcedores e torcedoras na França, na Itália e no Irã, assistindo a partidas em estádios, indo a jogos com torcedores “comuns” e membros do que chamaríamos torcidas organizadas, frequentando bares antes e depois das partidas, conversando, entrevistando, ouvindo canções, enfim, literalmente mergulhando no universo dos amantes do futebol.
A resposta que ele dá à pergunta sobre a centralidade do futebol no mundo de hoje é muito interessante e tem sido muito citada e utilizada por outros autores (Arlei Damo e José Miguel Wisnik, por exemplo, que também merecerão artigos aqui no Ludopédio). Nela há dois elementos centrais. Em primeiro lugar, a emoção estética proporcionada pelas partidas, o que sem dúvida permite fazer relação com o texto de Geertz sobre a briga de galos que examinamos na semana passada. O outro elemento central é a capacidade do futebol de expressar os dramas cotidianos e as contradições vividas por todos nós.
Seu ponto de partida é simples: o estudo das paixões coletivas das sociedades é revelador, mesmo sob a forma de uma caricatura, de questões e dilemas maiores. Sem dúvida a sua inspiração é o comentário de Geertz de que Bali se revela na briga de galos da mesma forma que os Estados Unidos no beisebol ou no pôquer. Em relação aos esportes em geral, afirma Bromberger:
“Por pouco que se lhes encare com seriedade, os esportes aparecem assim como reveladores formidáveis das linhas de força e das contradições que atravessam a nossa época: não há melhor observatório da construção e da representação das identidades sexuais (através da divisão que persiste entre esportes ditos masculinos e femininos), dos procedimentos de separação entre os grupos que as compõem (é necessário relembrar, por exemplo, que nos Estados Unidos jogadores negros e brancos de beisebol estavam agrupados em duas ligas diferentes até 1947?); não há melhor observatório ainda dos processos de identificação (local ou nacional), da maneira pela qual as nossas sociedades toleram e administram a expressão de emoções coletivas (nas arquibancadas), a violência dos conflitos ou o desnudamento dos corpos (no ringue, no estádio ou na piscina…)”
Um exemplo perfeito disso, para ele, é o “grande jogo de futebol”, isto é, aquele tipo de partida que parece magnetizar a todos e que para Bromberger o faz por colocar em cena, de forma dramática, os valores do mundo de hoje:
“O grande jogo de futebol, a disputa mais popular no mundo de hoje, se oferece assim como um evento exemplar que condensa e teatraliza, à maneira da ficção lúdica e dramática, os valores fundamentais que modelam nossas sociedades.”
A força do futebol estaria ancorada, como outras formas de arte – não somente no seu conteúdo, mas em um forte apelo estético, que faz de uma partida um verdadeiro “espetáculo total”, praticamente uma ópera do mundo contemporâneo:
“a popularidade das partidas de futebol relaciona-se com os recursos cênicos, estéticos e dramáticos que estas colocam em funcionamento e que fazem delas um espetáculo total. (…) a ternura verde do gramado onde se destaca o balé colorido dos jogadores, os arabescos dos pontas, o desenvolvimento geométrico do jogo, os vôos dos goleiros… fazem inegavelmente do futebol uma arte visual que se prolonga, nas arquibancadas, pelo jogo dos ornamentos, das fantasias, dos estandartes, das bandeirolas, das coreografias, dos movimentos ondulantes dos corpos formando uma ola; os desfiles e a marcação dos tambores, os sons de trombeta, etc, que os acompanham compõem uma espécie de ópera, um momento excepcional de estetização festiva da vida coletiva.”
É uma forma de arte sim – da mesma forma que a briga de galos para Geertz. Bromberger afirma isso, mas com uma especificidade. A emoção que ela proporciona só pode ocorrer quando se toma partido de um clube ou de uma seleção, enfim, de uma equipe que se defronta com outra. A paixão do futebol, sublinha Bromberger, é de caráter “partidário”, pois sem se tomar partido não é possível experimentar noventa minutos de alegria, sofrimento, raiva, angústia, admiração, sentimento de injustiça e por aí vai, numa imitação perfeita da vida. Aqui ele retoma explicitamente o tema de Norbert Elias em The Quest for Excitement (A busca da excitação), concordando com o sociólogo alemão mas com a ressalva de que “é esta paixão partidária que dá sentido, gosto e interesse ao confronto”.
Tomado por esta “paixão partidária”, aquele que no Brasil chamamos de torcedor desfruta, participa (muitas vezes com intensa movimentação corporal e vocal) de um espetáculo que desperta todo tipo de emoção. Numa comparação com gêneros literários, algo que Elias já havia feito, é bom lembrar, por vezes um jogo pode ser encarado como uma tragédia, basta pensarmos na derrota do Brasil em 1950 ou em 1982 e em tantas outras expectativas frustradas, reiterando o chavão da “caixinha de surpresas”. Há também o inverso, o êxtase coletivo depois da tensão e do sofrimento, capaz de operar, nas palavras do autor:
“a metamorfose das ruas sinistras de Teerã em espaços de canto e de dança, depois de uma classificação milagrosa para a Copa de 1998”
Há também momentos cômicos, parte inseparável do futebol enquanto espetáculo total, de um jogo em que há espaço para a “malandragem”, para a “sorte” e seu reverso, para o imprevisível. Lembremos de Mané Garrincha se divertindo e alegrando o povo com suas fintas para o desespero dos seus marcadores. Bromberger dá também o exemplo da bola despretensiosa que acaba por bater em uma canela ou outra e acaba entrando no gol. Sem falar nas bolas “recuadas” para o goleiro e que acabam entrando no ângulo ou naqueles carrinhos dados em última instância pelos zagueiros e que acabam por decretar a derrota do seu time. É claro que também entram nessa categoria as famosas “pixotadas” e os inúmeros gols que até eu e você faríamos…
Somando tudo isso, a potência do futebol estaria no deslindamento do mundo contemporâneo e de suas contradições. Para Bromberger, em meio a chutes, cabeçadas e passes:
“existe uma visão coerente do mundo contemporâneo. (…) Se alguém se apaixona tanto por esta história de partidas e de competições, é porque ela desvenda, à maneira de um drama caricatural, o horizonte simbólico das nossas sociedades.”
O que ele quer dizer com isso? Há uma série de valores do mundo em que vivemos que são exaltados, mas que ao mesmo tempo são o tempo todo confrontados com a realidade. Por exemplo: o mérito dos indivíduos é parte da ideologia do sistema capitalista e obviamente é continuamente representado nos esportes e no futebol mais especificamente. Mas ao lado da glorificação de jogadores excepcionais (Pelé, Zico, Romário e muitos outros), o tempo todo somos lembrados de que em um jogo coletivo muitas vezes é o time teoricamente mais “fraco” em termos de estrelas que vence, graças à união, à dedicação coletiva, à tática, sem falar nas trapaças da sorte. Ou seja, o mérito individual é ao mesmo tempo afirmado e negado, ou, ao menos, relativizado. Da mesma forma, sabemos que no mundo contemporâneo o valor individual, a competência, até mesmo a arte, são importantes e decisivos, mas não são garantia de sucesso. Bromberger resume muito bem: “o futebol nos faz lembrar, de fato, de maneira brutal (…) que o mérito não é sempre suficiente para vencer”.
Sendo assim, e aqui o autor multiplica os exemplos que por falta de espaço não podemos mencionar, o futebol “oferece uma visão mais complexa e contraditória da existência”. Em seguida ele retoma o conceito de Geertz, ao chamar o futebol de “drama filosófico” que ilustra a complexidade da vida moderna. O que se debate sem cessar nos estádios, nas ruas, nos bares e no sofá da sala, muito mais do que vinte e dois marmanjos correndo atrás da tal da bola, é a vida em todas as suas possibilidades.