Os segredos de Sir Alex
Jamais pensei que fosse escrever uma resenha sobre Alex Ferguson e o Manchester United. Depois de passar um ano na Inglaterra estudando futebol, de certa forma aprendi a odiar o Man U, como ele é conhecido por lá. Os motivos são variados. Um era o fato de eu torcer pelo Oxford United um time que estava na 5a. divisão (hoje na 3a.), uma espécie de antítese do bem-sucedido time treinado por Ferguson, que ao longo de 26 anos como treinador conquistou 38 títulos, sendo 13 campeonatos da Premier League e dois da Champions League. O outro era uma certa simpatia pelo Liverpool, arqui-inimigo dos Red Devils. Sem falar numa antipatia natural por um técnico que sempre me pareceu arrogante e algo brutal.
Mas a vida é cheia de surpresas. Antes de tomar um avião, obrigado a arranjar uma leitura de última hora, compro Liderança, um livro escrito por Alex Ferguson em colaboração com Michael Moritz, um ex-jornalista que se tornou dono de uma empresa no Vale do Silício. Nada poderia ser pior: um livro de Alex Ferguson escrito da perspectiva de um homem de negócios. Só que não. O livro é excelente. Diria até que é empolgante.
A proposta da obra seria tentar aplicar os conhecimentos e insights de Ferguson ao campo da administração de empresas. Os títulos dos capítulos até que apontam nessa direção: “Estabelecendo padrões”, “Lucros”, “Desenvolvimento de negócios” e por aí vai. Mas isto é apenas a casca. O livro, na verdade, é um conjunto de histórias e reflexões de Sir Alex Ferguson ao longo de toda uma vida dedicada ao futebol. Ele foi jogador: um centroavante rompedor e artilheiro que chegou a jogar no Rangers, seu clube de predileção. E foi técnico durante 39 anos até se aposentar voluntariamente em 2013.
Ferguson é produto da classe operária escocesa, filho de um pai que trabalhava sessenta horas por semana em um estaleiro debaixo de chuva e frio. Cresceu em uma área economicamente pobre onde havia sempre alguém disposto a uma briga. Sua personalidade forte e extremamente competitiva foi forjada nessa escola, que além da ética do trabalho e da resistência às adversidades, sempre valorizou a amizade, a solidariedade e o espírito coletivo em detrimento do individualismo.
Outro traço que se percebe claramente no livro é a franqueza. Ele definitivamente não usa luvas de pelica. Vou dar dois exemplos. Quando fala dos agentes, Ferguson não perdoa:
“Os agentes se tornaram algo como mosquitos. Hoje em dia, eles estão por toda parte no futebol, e quase todos não fazem nada além de encher o próprio bolso e prejudicar a relação dos jogadores com seus clubes e técnicos. Eles transformaram muitos atletas em mercadorias”
Para ser justo, é preciso lembrar que ele abre exceções e cita explicitamente Jorge Mendes, agente entre outros de Cristiano Ronaldo, como um “agente digno”. Mas não se exime também de apontar exemplos de maus agentes: Kia Joorabchian, agente de Tévez e o agente de Pogba:
“Há um ou dois agentes de futebol de quem eu simplesmente não gosto. Um deles é Mino Raiola (…) Desconfiei dele desde o momento em que o conheci.”
O outro exemplo diz respeito exatamente à rivalidade com o Liverpool, assumida abertamente. A ele se atribui uma frase (cuja autoria ele nega) de que o seu objetivo maior seria destronar o Liverpool. Mas ele admite o seguinte:
“Não sei ao certo se os jogadores do Manchester United alguma vez tiveram o desejo consciente de superar a marca do Liverpool, mas posso dizer que o via como o monstro que tinha de abater. O fantasma de todos aqueles troféus indo para o Liverpool era uma visão insuportável.”
Seria fácil apontar problemas na visão de Sir Alex. Ele desdenha, por exemplo, o pedido dos torcedores do clube que, revoltados com a compra do Manchester United pelos Glazer, viviam lhe pedindo que renunciasse ao cargo como uma forma de protesto. Este grupo de torcedores criou até mesmo uma outra agremiação, o FCUM: o Football Club United of Manchester, cuja sigla, em inglês, significa: que eles se f…
Mas o que emana da escrita é uma sinceridade e uma dignidade pouco usuais. Ele critica abertamente Chelsea e Manchester City por seus gastos bilionários, sempre reafirmando a ideia de que um time não se compra, um time se forma. E dá, a este respeito, várias lições de como se montar uma equipe, embora não haja nenhuma fórmula mágica para treinadores nem tampouco discussões sobre táticas.
Ferguson também critica aqueles que ficam deslumbrados com o uso da tecnologia e dos dados provenientes da mesma. Não é alheio nem tampouco inimigo: o Manchester United sob seu comando usava sistemas especiais de análise de vídeo e testes de diversas naturezas. Mas sempre confiou mais no seu olho e no seu “instinto”: um dos seus jogadores mais vitoriosos, Steve Bruce, foi contratado mesmo depois de reprovado no exame médico. Quando o presidente do clube o questionou, Ferguson respondeu: ‘Ele não ficou de fora de quase nenhum jogo em cinco anos, então que tipo de problema pode ter?’.
Não se iludam, o livro não apresenta uma lista infindável de vitórias e sucessos. Muito pelo contrário: Ferguson fala abertamente dos seus erros, de como os cometeu, de porque os cometeu e de como poderia ter feito diferente. Ele lembra de duas derrotas acachapantes na Premier League 1996-97: 5×0 para o Newcastle e 6×3 para o Southampton e de como em uma semana perdeu a Premier League e a Copa da Inglaterra. Mesmo sendo um técnico extremamente vitorioso, sublinha que sua taxa de vitórias estava um pouco abaixo de 60% e que o Manchester United sob a sua direção perdia 20% dos jogos. Também assinala que a partir de 2008 chegou à final da Premier League três vezes em quatro anos, mas só ganhou uma. Não há milagre.
Liderança é o título. Como ela é construída? Nada de truques, métodos, regras ou decálogos de comportamento. O sub-título do livro é “O que aprendi com a vida e nos meus anos do Manchester United”. Ora, a lição principal de Ferguson, na verdade, é de como se relacionar com seus atletas. Apesar do respeito e até do medo que infundia em seus jogadores, Ferguson aparentemente era bastante querido por eles. Ficava de olho nos mais jovens, dava flagrantes deles em festas com bebidas e os punia com treinamentos severos. No início da carreira não titubeou em despedir os jogadores mais velhos com problemas de bebida. Ao mesmo tempo, ao longo do livro, são muitos os exemplos de uma real preocupação com seus jogadores, enquanto seres humanos e não somente enquanto atletas vencedores.
No último capítulo, em que trata da sua aposentadoria, Alex Ferguson mostra do que é feito, ultrapassando totalmente os relatos de vitoriosos:
“me faz lembrar do que sinto falta na minha antiga vida. Não é dos desfiles em veículos abertos, do prazer de identificar um jovem com grande talento ou do ânimo de quando estávamos quase ganhando o jogo. Sinto falta de todas aquelas experiências compartilhadas e da camaradagem que surge entre pessoas que vivem e trabalham juntas por muito tempo. Sinto falta de conversar com Mick Phelan [auxiliar técnico]; de ver Albert Morgan, nosso roupeiro, todos os dias; de dar uma dura em Tony Sinclair e Joe Pemberton, o principal responsável pelo campo em Old Trafford e Carrington. Eu também adorava as trocas diárias com a equipe da lavanderia e com Carol Williams e Rita Gaskell, do refeitório. Mas, acima de tudo, sinto falta da companhia de jovens ávidos por desafios impossíveis – fossem os jogadores ou a dedicada equipe de análise de vídeo. Só de pensar nessas pessoas e nas cenas em um vestiário vitorioso me vem um sorriso ao rosto.”
Bem, como alguém que começou a ler este livro cheio de preconceitos contra o autor, devo admitir a minha derrota: Sir Alex ganhou de goleada.