/A SUPERLIGA É FILHA DO MESMO PAI QUE A PREMIER LEAGUE

A SUPERLIGA É FILHA DO MESMO PAI QUE A PREMIER LEAGUE

Para entender o espírito (se é que se pode chamar assim) que presidiu a elaboração de uma Superliga de alguns dos mais ricos clubes europeus, é preciso voltar à criação da Premier League em 1992, já que são ambas filhas do mesmo pai, como veremos.
A Premier League é incensada por jornalistas esportivos que ignoram como foi seu nascimento e quais foram as consequências da sua instalação. Até mesmo Paulo Vinícius Coelho, o famoso PVC, repetiu essa cantilena em um artigo publicado hoje, 20 de abril de 2021 na Folha de São Paulo.
Até 1888, ninguém, no mundo todo, havia tido ainda a ideia de criar campeonatos propriamente ditos. Havia apenas partidas, em que um clube convidava o outro. E a Copa da Inglaterra, criada em 1871 e que funcionava à base do que chamamos de “mata-mata”. Mas nada de campeonato. Até que um grupo de presidentes de clubes ingleses, muitos deles homens de negócios, fundou a Football League. Foi esta que criou o primeiro campeonato inglês de futebol, um sucesso tão estrondoso que logo havia uma segunda divisão, à qual se juntou uma terceira e por fim uma quarta, com ascenso e descenso.
A Football League via todos os clubes das quatro divisões, como parte de um sistema, em que os elementos estão interligados e, portanto, se reforçam ou enfraquecem. Quando a televisão, sobretudo a partir da década de 60 começou a trazer montantes de dinheiro antes impensados para um esporte que vivia basicamente da bilheteria dos estádios. A Football League simplesmente dividia igualmente esses recursos entre os agora 92 clubes a ela afiliados.
O que isso quer dizer? Não importava que a televisão quisesse mostrar apenas os jogos do Manchester, Arsenal e Liverpool, por exemplo. Os recursos iriam para os clubes da Football League como um todo. Porque os clubes menores formam jogadores, formam torcedores, formam técnicos e, sobretudo, são representativos de bairros, cidades, de parcelas da classe trabalhadora e por aí vai. As chances de um clube pequeno competir e de eventualmente se tornar um clube vencedor existiam.
Vocês podem me perguntar se o sistema funcionava. Se já ouviram falar de Gordon Banks, Bobby Moore, George Best, Bobby Charlton, todos eles jogavam na primeira divisão inglesa e foram, exceto George Best, que era irlandês, os pilares da única seleção inglesa que foi campeão mundial de futebol, em 1966. Uma equipe tão forte que causou muitas dificuldades à lendária seleção brasileira de 1970.
Tudo isso sob a administração da Football League, seguindo as regras da Football League, que PVC acusa no seu artigo de ser “corrupta e mantida pelas relações com os clubes pequenos.” O ilustre jornalista não entende que a Football League protegia sim os clubes pequenos, pois além de serem a maioria são eles que compõem o sistema como um todo. É uma lógica coletiva que aqueles obcecados pelos antolhos do individualismo têm dificuldade de compreender.
Isso valeu até 1986, quando os “cinco grandes” ameaçaram criar uma liga própria (conhecem esse filme?) A partir daí, metade dos recursos televisivos ficaram com os clubes da primeira divisão, repartidos de forma igualitária entre eles. Os da segunda divisão ficaram com um quarto da renda televisiva também para ser compartilhada por igual entre eles. Por fim, os clubes da terceira divisão levaram um oitavo do bolo, parcela igual à dos clubes da quarta divisão da Football League. Os clubes “grandes” continuaram insatisfeitos em em 1988 passaram a abocanhar 75% das rendas televisivas.
Sobre a corrupção, ela sempre existiu no futebol, mas nada se assemelha à criação da Premier League, uma virada na direção da concentração de riquezas por parte dos clubes mais ricos, de forma ostensiva, ilegal e vergonhosa. Vinte e dois clubes fizeram um acordo com uma tv à cabo que naquele momento estava à beira da falência e via no futebol sua tábua de salvação. Teoricamente, não poderiam fazer isso, os clubes estavam presos a um contrato com a Football League. Mas a Football Association, entidade controladora não dos campeonatos, mas do futebol inglês como um todo, curiosamente, aceitou e legitimou a barbeiragem. Finalmente, os grandes clubes eram donos de 100% do ouro reluzente vindo da televisão, agora globalizada.
O resto todo mundo conhece, mas só um lado da lua, quer dizer, da Premier League. O outro lado: aumento estratosférico dos preços dos ingressos, reformas bilionárias dos estádios, transformados em studios de televisão para transmissão de jogos para o mundo todo e em shopping centers para torcedores endinheirados dispostos a gastar em uma camisa de clube o valor de dias, talvez semanas de trabalho de um trabalhador não-qualificado. A concentração de riquezas e competitividade nas mãos dos clubes que já eram mais ricos. O esvaziamento e a crise perpétua dos clubes menores que já não visam “subir”, apenas sobreviver. E este processo ocorre no mundo todo, inclusive no Brasil. O outro lado do surgimento e fortalecimento dos superclubes é o enfraquecimento do futebol como um todo.
E a Inglaterra, by the way, nunca mais chegou perto de conquistar uma Copa do Mundo.
Leônidas da Silva, o Diamante Negro que encantou a França na Copa de 1938, começou no Bonsucesso. Ronaldo Fenômeno, no São Cristóvão. O sistema futebol não deve ter sua força medida pelos bilhões (alguém disse trilhões) que movimenta e sim pelo estado em que se encontram os pequenos clubes. Hoje assistimos ao enfraquecimento e à morte de clubes tradicionais no mundo todo.
A Superliga deve ser compreendida dentro da mesma lógica. Ela e a Premier League são filhas do mesmo pai. Um pai brutal, impiedoso, sádico e cego para as consequências dos seus atos.
Um pai chamado capitalismo selvagem. Com perdão da redundância.
Marcos Alvito – autor de A rainha de chuteiras – um ano de futebol na Inglaterra
Foto: Interior da loja do Manchester United em Old Trafford, 2008. Foto M.A.