A revista Tribuna do Advogado (OAB), tem uma seção chamada Pontocontraponto e o debate da revista de abril de 2017 foi sobre a Torcida Única. Defendendo a medida, o Promotor Rodrigo Terra. Do outro lado, escrevi um pequeno artigo chamado “É que nem a piada: tirar o sofá não adianta”:
Imaginem a cena. Inglaterra. Idade Média. Duas aldeias se batendo em um campo aberto. Centenas de camponeses de cada lado, tentando levar uma bexiga de animal inflada de ar até a aldeia adversária onde o objetivo (goal) alcançado era celebrado de maneira ruidosa, violenta e destrutiva. Era algo que ocorria uma vez por ano, normalmente na Terça-Feira Gorda. Os óbitos eram tão comuns que os legistas já assinalavam: “Death by Football”. Este jogo selvagem e descontrolado foi transformado em esporte nas escolas secundárias de elite no século XIX, por diretores que tentavam canalizar e conter a violência dos seus alunos. Depois é regrado e codificado, cria-se uma federação, uma liga, campeonatos. Sua popularidade explode junto à classe operária britânica e em seguida é difundido em todo o mundo no bojo do império inglês e de sua influência cultural planetária.
Desde a sua origem, o futebol é um jogo de confronto, de oposição binária. Sua força, sua capacidade de expressar identidades, residiu neste caráter de contraste, de enfrentamento, bem próximo da guerra, já que a dinâmica da partida inclui a conquista de território e a invasão do reduto mais sagrado do adversário, aquilo que chamamos comumente de gol. Mas o confronto esportivo tem um caráter simbólico e não literal. Para o sociólogo alemão Norbert Elias, o futebol seria o exemplo de uma busca da excitação e de um descontrole regrado em sociedades marcadas exatamente por um grande controle social, que exige do indivíduo um comportamento extremamente contido, barrando as expressões emocionais mais abertas e ferozes. Quando há pessoas que não conseguem participar do esporte na sua dimensão simbólica e tomam o confronto no seu sentido literal, vendo os rivais como inimigos e partindo para o enfrentamento direto, físico e violento, o problema não está no esporte. Está na sociedade.
Jogos com torcida única? É que nem a piada: tirar o sofá não adianta. Mudar a violência das torcidas de lugar também não. Estes grupos continuarão se engalfinhando em estações de trem, metrô, nas praças e ruas, em invasões às sedes das torcidas adversárias e até na Lua se houver transporte. Do ponto de vista da segurança pública, isto seria um pesadelo, pois se há como policiar razoavelmente o entorno de um estádio, como fazê-lo com toda a cidade? De quebra, isto seria a morte do futebol, alimentado, como sempre foi, pela rivalidade sadia, pelas oposições raivosas mas não violentas. Não há um só grande clube que não tenha um grande rival. A rivalidade é a chave.
O que fazer? O percentual de jovens das torcidas que efetivamente participam de atos violentos é menor do que 5%. A polícia bate muito e nada investiga. Na Inglaterra, a ênfase está na identificação dos torcedores mais violentos, seguida da coleta de provas contra eles, para tirá-los de circulação. Que tipo de sociedade produz grupos de jovens dispostos a se baterem contra outros jovens como uma espécie de esporte radical? Essa é a pergunta que tem que ser feita.