/Por que xingamos nossos jogadores?

Por que xingamos nossos jogadores?

 

76.8

Por que xingamos nossos jogadores?

Marcos Alvito

Aviso: o texto de hoje é para maiores de 18 anos e não estou brincando…

Xingar os jogadores e torcedores adversários é o pão nosso de cada dia dos estádios no mundo afora. Quando fui a um jogo do D.C. United na capital dos Estados Unidos, havia todos os elementos de um jogo de futebol, até mesmo torcidas bastante organizadas com bateria e bandeiras. Mas tudo me pareceu tão morno e sem sabor feito um hotdog, pois ninguém se exaltava, ninguém xingava ninguém. Na Inglaterra, por exemplo, xinga-se muitíssimo. Quando o English Team goleou a Alemanha na casa do adversário por 5×1 em 2001, a torcida inglesa cantou uma musiquinha celebrando o artilheiro Michael Owen, que dizia, entre outras coisas: “quando ele joga pela Inglaterra/ ele é um camarada legal/ marca com a esquerda/ com a direita igual/ e quando joga com os alemães/ fica a porra da noite inteira fazendo gol”. Essa é até delicada perto do que se costuma cantar para os outros países do Reino Unido: “Vocês são apenas a parte de merda da Inglaterra / a parte de merda da Inglaterra (repete-se ad infinitum)”. O humor tipicamente inglês também comparece diante de qualquer seleção que esteja jogando mal: “Vocês são a Escócia? (2 vezes) / Vocês são a Escócia disfarçada? (2 vezes)”. Os escoceses, por sua vez, reagem lembrando a eliminação da Inglaterra às mãos da Argentina: “Ó, Diego Maradona/ Ó, Diego Maradona/ Ó, Diego Maradona/ Ele mandou os igleses pra fora, pra fora, pra fora!”. Os galeses pegam mais pesado: “Vocês podem enfiar sua Família Real no rabo (2 vezes)/ Vocês podem enfiar sua Família Real/ Enfiem sua Família Real/ Vocês podem enfiar sua Família Real no rabo”

Entre os clubes, a rivalidade também se expressa em canções cheias de palavrões. Em Birmingham, Aston Villa e Birmingham City se odeiam há mais de um século. Os torcedores do Villa gostam de cantar: “Está ouvindo, Birmingham? / A música que estamos cantando? / Estamos passeando / Cantando nossa música/ E cagando e andando para o City”. Alguns jogadores têm o direito a ouvir cantos feitos sob medida. Era o caso de David Beckham, que durante muito tempo foi ídolo do United e como se isso não bastasse é casado com uma Spice Girl (Victoria). Os torcedores de vários clubes gostavam de recebê-lo ao som de “A chique Spice Girl toma no cu” ou então “A chique Spice Girl engasga a manhã toda (sugerindo fellatio)/ Mas o de Beckam é pequenininho/ Quando eles fazem a coisa suja/ Ele veste o sutiã dela”. Creio que posso parar por aqui. Para mencionar outro exemplo: na Argentina os torcedores do Boca são chamados de “bosteros” e os do River de “galiñas”, que nem precisamos traduzir.

Para o bem e para o mal, os xingamentos fazem parte da tradição do futebol, inclusive na sua dimensão homofóbica, como fica claro nos exemplos acima e também no Brasil, onde o árbitro é ritualmente chamado de “seu viado filho da puta” e a toda hora se manda a torcida, um jogador ou técnico adversário tomar naquele lugar: “Ei, fulano vai tomar no …”. Mas estamos de tal forma inseridos na cultura do nosso futebol que não percebemos um elemento diferencial do mesmo. Ingleses e argentinos, por exemplo, xingam somente os jogadores das outras equipes, jamais os que vestem a camisa do seu clube. Jamais talvez seja um exagero, mas não com a facilidade e a frequência com que achincalhamos e ofendemos aquele lateral que não sabe cruzar, aquele volante que não sabe passar, o meia que não sabe lançar, o atacante que perde gols e o goleiro que engole seus franguinhos. Afinal, por que xingamos nossos próprios jogadores?

Cópia de crutorcida_wa_0809131276

Torcedores do Cruzeiro disparam xingamentos. Foto: Washington Alves – VIPCOMM.

Para entender isso é preciso voltar na história dos nossos maiores clubes, aqueles que formam a espinha dorsal e constituem as tradições do futebol brasileiro. Quase todos os clubes hoje considerados “grandes” foram em sua origem bastante aristocráticos, absolutamente cerrados à participação popular. O Flamengo só vai aceitar negros envergando as suas cores depois do advento do profissionalismo, em 1933. O Botafogo vai demorar mais uma década e o Grêmio só vai ter seu primeiro jogador negro no início da década de 1950. A partir do momento em que jogadores passam a ser empregados dos clubes, que de início eram “donos” dos passes dos atletas, que eram “vendidos”, “trocados” e “comprados”, a elite descalça as chuteiras e põe a cartola na cabeça, passando a controlar e a dirigir as agremiações, o que ocorre até hoje. Médicos, advogados, engenheiros passam a presidir clubes que continuam aristocráticos e fechados, embora sejam neste momento representados por times formados por negros, mulatos e brancos pobres. Há, no Brasil, um abismo entre o clube e o time que o representa. Essa esquizofrenia de origem histórica permite que você vaie o time e xingue os jogadores que o compõem por amor ao clube, coisa que na Inglaterra ou na Argentina não faz nenhum sentido. Por isso nos “espantamos” com o alento contínuo que as torcidas dos “hermanos” dão a suas equipes, o que já começa a ser “copiado” por algumas torcidas tupiniquins. Clubes “brancos” representados por times de “negros e mulatos”, esta equação desagua no mesmo desrespeito e violência simbólica que sempre permeou a relação entre nossa classe dirigente e as camadas subalternas. Daí também o paternalismo, o autoritarismo e a falta de responsabilidade com que sempre foram tratados nossos jogadores e os aspirantes a sê-lo, como as milhares de crianças das categorias de base. Até hoje essa dimensão pós-escravista encontra eco no linguajar dos jornalistas esportivos, que muitas vezes usam para os jogadores o mesmo termo que fora usado para designar os escravos, seres vistos como animais sem direito à individualidade e por isso chamado de “peças”. Quantas vezes já não ouvimos coisas como: “o Corinthians está precisando trocar as peças”, “o Inter está precisando de uma ou duas peças de qualidade para completar o elenco” e coisas assim.

O que é, por exemplo, a tradição da “concentração”, em que os atletas são trancafiados à véspera dos jogos e que perdura até hoje, tendo sido utilizada, por exemplo, pela “gloriosa” seleção brasileira de 2014? A concentração corresponde à falta total de confiança na capacidade moral e intelectual dos nossos jogadores, tratados como se fossem crianças grandes. Por que clubes muito mais bem sucedidos do que os nossos dispensam ou melhor, nunca adotaram esta prática? Sem dúvida, na base de tudo isso está o preconceito racial. O mesmo que levava o médico baiano Nina Rodrigues a advogar, em 1894, a tese de que o negro não poderia ser responsabilizado criminalmente da mesma maneira que uma pessoa na plena posse das suas faculdades mentais.

Lance da partida entre Brasil x Alemanha, válida pela semi-final da Copa do Mundo 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte-MG. FOTO: Jefferson Bernardes/ Vipcomm

Torcedor xinga a seleção brasileira durante a partida entre Brasil x Alemanha, válida pela semi-final da Copa do Mundo 2014, no Estádio Mineirão. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

Em uma pesquisa quantitativa com meninos e meninas de escolas públicas e privadas de Porto Alegre, publicado em seu excelente Do Dom à profissãoantropólogo Arlei Damo dimensionou muito bem o preconceito contra os jogadores de futebol por parte dos estudantes de escolas muito bem pagas. Nenhuma das 107 meninas de classe média consultadas via questionário sequer mencionou “jogador de futebol” como uma profissão de grande prestígio: na sua relação vinham médico, advogado e juiz em sequência. Pior ainda quando a pergunta foi acerca dos “predicados dos futebolistas”: 30 meninas de escolas privadas (mais do que um quarto) os consideram “burros”, o que ocorre também entre os meninos dessas escolas, contrastando com meninos e meninas de escolas públicas de bairros pobres, em que “burro” não aparece e é substituído por “inteligente”.

Uma outra pesquisa, a tese de doutorado de José Jairo Vieira, “Paixão nacional e mito social: a participação do negro no futebol, profissionalização e ascensão social”, vem acrescentar um dado surpreendente. Utilizando como amostra jogadores do estado do Rio de Janeiro, Vieira consegue provar que os negros são minoria entre os jogadores mais bem pagos e maioria entre os de pior remuneração. A hipótese que Damo elabora para explicar os números de Vieira é bem interessante: famílias “brancas”, de classe média, somente permitem que seus filhos persigam a carreira de jogador quando houver indícios de que ele será muito bem sucedido. Já para famílias de baixa renda, em sua maioria “negras”, o investimento na carreira é um risco a correr, mesmo sem grandes garantias.

Existe um indubitável rancor de classe média contra jogadores de futebol, vistos como motivo de piada. Há todo um conjunto de histórias sobre jogadores ignorantes que são recorrentemente contadas por torcedores e jornalistas. Quantas vezes já não ouvimos aquela lenga-lenga de que ganham muito para dar pontapés numa bola. Ignorando que estes “pontapés na bola” são um espetáculo televisivo milionário e que é feito pelos jogadores, cujas habilidades foram duramente lapidadas em mais de dez anos de formação.

Nada contra o palavrão, cujo “poder liberatório” foi muito bem exaltado por Nelson Rodrigues. Mas por trás de cada palavrão com que o torcedor brasileiro xinga os jogadores da sua própria equipe há séculos de preconceito de classe e de raça.