O DNA do futebol brasileiro
O pontapé inicial, na dedicatória, já avisa que o autor não tem medo de dividida:
“Dedico este livro à memória de meus companheiros de futebol que morreram na indigência depois de terem contribuído para a glorificação do soccer nacional – humildes operários que à custa de sacrifícios enormes, inclusive o da própria vida, legaram aos clubes os estádios de cimento armado que estes ostentam hoje nos diversos bairros aristocráticos das principais cidades do país, com salas doiradas e pistas de baile para o gozo exclusivo dos diretores e dos sócios ricos”
Trata-se do livro Grandezas e misérias do nosso futebol, publicado em 1933 pelo jogador Floriano Peixoto Correa, que começou no futebol gaúcho na década de 1920, depois passou pelo Fluminense e pelo Santos, tendo conquistado vários títulos e disputado partidas internacionais. Floriano era um center-half reconhecidamente habilidoso. Apesar de uma carreira vitoriosa era traumatizado por uma acusação de suborno que teria recebido quando ainda jogava no Fluminense. Talvez tenha sido este fato que o levou a fazer um livro denúncia acerca do falso amadorismo, de suas mazelas e hipocrisia. O livro é lançado no mesmo ano em que este regime é abandonado com a adoção do futebol profissional.
A primeira questão que aparece no livro é a da condição social dos jogadores e da falta de assistência dos clubes. Não havia departamento médico nos clubes e Floriano cita exemplos de “companheiros mutilados que arrastam hoje sua miséria física de homens inválidos para outras atividades”. Abandonados no exato momento em que já não serviam aos clubes, viviam: “mendigando o pão de cada dia, esquecidos e desprezados por aqueles que exploraram seu vigor muscular e mocidade.” Os casos abundam. É o arqueiro com mão fraturada ao defender um arremate e que nunca mais agarra uma bola. É o jogador de 20 anos largado à própria sorte depois de uma fratura. São os jogadores tuberculosos por conta do esforço excessivo combinado com má alimentação. E até de Juca, cognome “Africano”, que ficou cego para sempre ao subir para cabecear e tomar um chute nos olhos.
Floriano descreve o regime do falso amadorismo minuciosamente. Avalia que o amadorismo só existiu até 1905, pois datam deste ano as primeiras contratações de jogadores, muitos até estrangeiros. Ou seja, foram praticamente trinta anos de mentira e hipocrisia. A maneira pela qual foi contratado pelo Fluminense é exemplar. À época ele era soldado raso. O Fluminense oferece a ele alojamento no clube e “o custeio de outras despesas imprescindíveis que o diretor esportivo se ofereceu a saldar mensalmente”. Este regime deixava o jogador totalmente dependente do bicho, ou seja, da remuneração por vitórias.
Embalado pelas celebrações e louvores, com o bolso cheio do bicho pelas vitórias, os jogadores acreditavam participar de uma vida que não fora feita para eles. Floriano, órfão de pai e mãe, de repente se vê no clube mais aristocrático do Rio, desfrutando de “uma vida de capitalista sem capital”. Sobe para Petrópolis no verão como fazia a boa sociedade, sendo alojado no palacete de um dos diretores, com automóvel à disposição e “montarias fogosas”. O autor afirma que mesmo à época já percebia a contradição:
“Enquanto isso meu futuro continuava a ser um enigma. E fumando charutos e bebendo bons vinhos às vezes meditava naquele contraste flagrante que ironicamente me levara a uma morada luxuosa, quando meu guarda-roupa se resumia num modesto terno de casimira marrom, surrado e cedido por empréstimo pelo milionário Ignacio Nogueira, torcedor ferrenho do Fluminense” (…) “E assim vestido frequentava os salões chics do Bridge, do Capitolio Clube, onde as fichas de 500$ andavam pelas mesas como as cinzas dos charutos nos cinzeiros.”
Para aqueles que porventura estranharem esta convivência entre um jogador e os diretores de um clube tão elitista, cabe explicar que Floriano era histórico e sociologicamente branco. Duvido muito que o mesmo fosse ocorrer caso ele fosse negro.
Por falar em “elite”, talvez as mais duras críticas do livro são reservadas aos dirigentes. Já no prefácio, Paulo Várzea, um defensor da profissionalização, critica a:
“casta de barões feudais, vaidosos, autoritários, abancados com seus vassalos nas diretorias dos clubes e guichês dos portões, casta sempre pronta a sugar o sangue do jogador de futebol, a devorar-lhe a saúde, e a raspar as fortunas generosamente deixadas nas bilheterias pelo público em troca do prazer que lhe proporcionou o operário da pelota – único personagem leal desse espetáculo singularmente popular que há 20 anos se transformou num inesgotável manancial de dinheiro para os sindicatos de cavalheiros de mãos pouco honradas.”
Não é uma acusação genérica. São oferecidos vários exemplos. Mencionam-se desfalques, desvios de dinheiro e rombos dados nas caixas dos clubes e entidades, como o de agosto de 1918 em que a Liga Metropolitana foi lesada em dois contos de réis. Café pequeno perto de um rombo de mais de cem contos na CBD, ancestral da CBF, pois é… É ainda Paulo Várzea, o prefaciador da obra, que fala do modus operandi de “oportunistas” que:
“se aproveitam da sua falsa condição de bajuladores para conseguir negociatas imorais contra o clube e contra o jogador, intermediando para esses, negócios inconfessáveis, como sejam, os de compra de material para sedes, desde o apetrecho de futebol até o material de baile, e obtendo, por fim, a concessão na tesouraria do clube, muitas vezes de acordo com o tesoureiro ou o cobrador, de vales e ‘saques’ de ‘bichos’ para os players, mediante, já se vê, seu ágio. (…)”
Neste campo futebolístico verdadeiramente mafioso, não podia faltar a figura do empresário, que Paulo Várzea chama de “rufião de jogadores” e de “mercador de homens livres”, criando “excursões exaustivas” cujas bilheterias são controladas por eles.
Na parte final do livro, há um capítulo sobre as superstições dos jogadores, intitulado “Macumba… Cangerê…” e baseado, segundo Floriano, nas suas observações diretas. Ele afirma que quase todos os jogadores levavam ao pescoço um cordão da sua santa protetora, enquanto alguns jogadores negros usariam também “ervazinhas amassadas, alecrim, manjericão, malva”. Conta que um grande center-half carioca mandava lavar os pés com “ervas receitadas por feiticeiros nas macumbas do morro” e depois ainda lançava as ervas no campo do adversário. Telê, não o famoso técnico, mas outro, jogador do América, não jogava sem duas folhas de alecrim nas meias. E certa vez, depois de um péssimo primeiro tempo, pediu ao roupeiro que lhe molhasse as chuteiras, explicando:
– “Meu santo está com sede.”
Deixando de lado o pitoresco, voltemos ao essencial. Se todos sabiam que o amadorismo era apenas de fachada, porque ele era mantido? Simplesmente porque a ideologia do amadorismo permitia aos donos do futebol ter o controle total dos seus pés de obra, mantê-los numa total dependência. A este respeito, Floriano Peixoto conta uma breve mas muito significativa história. Em situação financeira desesperadora, resolve recorrer ao patrono máximo do Fluminense, um dos homens mais ricos e poderosos do Brasil à época, dono do Copacabana Palace: Arnaldo Guinle. O dirigente ajuda o jogador, mas o faz assinar uma “letra” que jamais foi cobrada. Assim, o atleta ficava permanentemente em débito.
Foi com este DNA de senhores de escravos transformados em cartolas que os nossos clubes foram formados. Os resultados se veem até hoje.
P.S.: Agradeço a ajuda da historiadora Clarissa Paranhos na pesquisa do material para este artigo.