/DIADORIM E A BRECHA FICCIONAL EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

DIADORIM E A BRECHA FICCIONAL EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

DIADORIM E A BRECHA FICCIONAL EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Qual era a cor dos olhos de Capitu? Eis a pergunta que certa vez um professor de literatura fez a uma turma de alunos do mestrado dentre os quais eu me incluía. As respostas foram variadas: havia quem imaginasse Capitu bem morena, de olhos negros, outras pessoas a viam como tendo olhos verdes marinho e pele clara e não faltou quem visse nela olhos castanhos. Quando o professor respondeu à pergunta, o espanto foi geral. Machado nunca diz de que cor eram os olhos de Capitu, a única observação, vaga, poética, é que eram “olhos de ressaca”. Ficou patente, pelo exercício, que cada um construiu a sua Capitu, de acordo com suas obsessões e fantasias. A arte de Machado consistiu em uma espécie de provocação, em um convite à nossa imaginação, algo que vou chamar de brecha ficcional.

Em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa usa e abusa dessa técnica. Quase nada sabemos acerca da mãe de Riobaldo, afora o fato de que ela tem apenas o nome, sem sobrenome, marca das pessoas do povo e que esse nome, Bigrí, talvez evoque uma ascendência indígena que faria de Riobaldo um caboclo e ele muitas vezes se refere a sua pele mais escura em contraposição à pele clara de Diadorim e Otacília. Como ela se relacionou com Selorico Mendes? Era empregada da fazenda dele? Engravidou e foi mandada embora com algum (pouco) dinheiro e o compromisso de que o filho de ambos teria o pai como padrinho? São apenas hipóteses, em torno das quais podemos dar rédeas à nossa imaginação. Sobre sua infância, Riobaldo quase nada diz, a não ser que teve raiva de um Gramacêdo. Por que? Teria o tal homem desrespeitado a mãe de Riobaldo, mãe solteira, humilde e desprotegida? Pode-se especular à vontade.

Diadorim, todavia, é o personagem que melhor exemplifica essa brecha ficcional. Vejamos:

1. Seu nome completo é Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Este “da Fé”, que só pode vir da mãe, tem “cheiro” de um sobrenome mais popular em contraste com o Bettancourt Marins de Joca Ramiro. Seria a mãe de Diadorim uma mulher do povo feito a mãe de Riobaldo?

2. Diadorim diz apenas que não conheceu a mãe. O que houve com ela? Morreu no parto? Foi mandada embora por Joca Ramiro, que não queria se casar com uma mulher do povo?

3. Por que motivo Joca Ramiro decide travestir Maria Deodorina? Riobaldo acha que era para ter alguém para protegê-lo na velhice, mas Joca Ramiro tinha um exército de jagunços para isso. Diadorim, quando ainda é o Menino, explica a Riobaldo: Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente…”. Mas por que motivo? Podemos imaginar à vontade…

4. Por que Diadorim é criado pelo tio, bem longe do pai, cujas terras ficavam bem mais ao norte, na divisa com a Bahia? Será que Joca Ramiro queria esconder o fato de ter tido uma filha com uma mulher do povo? Esta necessidade de segredo talvez explique porque o batistério de Maria Deodorina foi na sé de Itacambira, localidade que não era próxima nem das terras do pai nem das do tio.

5. Por fim temos o famoso episódio em que a mulher do Hermógenes pede para conversar com o Reinaldo. O que conversaram? Podemos imaginar à vontade. A única coisa certa é que a mulher percebeu que Diadorim era mulher, tanto que depois da morte de Diadorim ela pede que tragam o corpo e o desnuda para o espanto e o desespero de Riobaldo.

Este é mais um episódio em que Rosa nos convida a criar, com ele, a história. Ele era tão genial que além de tudo deixa uma margem para que possamos escrever parte do livro em um processo que nunca vai terminar enquanto houver leitores da sua obra. Como Riobaldo conclui, com enorme sensibilidade “Diadorim era um sentimento meu”. Cada um tem o seu Diadorim, assim como cada um tem a sua Capitu.

Riobaldo diz que Diadorim “gostava de silêncios” e era a sua “neblina”.

A nossa também.

Marcos Alvito, 28 de agosto de 2021