O dia amanheceu nublado e frio em Grão Mogol, mas os meus arrepios vinham de saber que estava indo para a terra de Diadorim, Itacambira.
Diadorim é o grande mistério do livro. É uma personagem que tem quatro nomes, cada um correspondente a um aspecto, a uma encarnação: é o Menino quando cruza o São Francisco e ensina Riobaldo que “carece de ter coragem”. Depois, é o jagunço Reinaldo, que Riobaldo reencontra inesperadamente. Secretamente, apenas para seu amigo Riobaldo, chama-se Diadorim. Após a morte se revela no corpo nu de uma mulher, cujo nome Riobaldo não sabia:
“E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– ‘Meu amor!…’”
Riobaldo, em desespero, sai à procura de alguma coisa que permitisse a ele entender aquilo tudo, o motivo daquela moça estar vestida de homem, desde a infância, na verdade. Por ordem de seu pai, porque o Menino diz a Riobaldo que seu pai havia falado que ele tinha que ser diferente de todo mundo. Primeiro, Riobaldo vai ao lugar onde Diadorim havia sido criado por seu tio, o que é outro mistério: por que não foi criado perto do pai…
Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos. Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem – dela lembrados quando tinha sido menina – e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos.
Rumando para o norte, uma pista, única, encontra:
“Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos… O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor…
Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?”
E ali eu estava, pisando o solo sagrado de Itacambira, depois de mais de quatro horas de viagem. O trecho mais difícil foi na estrada para Montes Claros. Rebanhos de scanias-jumentonas, às vezes cinco ou seis fazendo uma procissão lenta, impossível de ultrapassar. Deixava o tempo passar, tudo se resolvia. Só ultrapassei quando a chance era muito boa. Todo burrinho que se preza é muito prudente, ao contrário desses cavalões-desutilitários exibidos que vivem caindo do barranco.
As estrada menores, que levam somente a pequenas cidades, são uma delícia, parece até um autorama, só eu, o burrinho e a linda paisagem do sertão. As estradas estão bem conservadas, o problema maior é a falta de acostamento. Passei por algumas cidadezinhas, que têm que ser atravessadas, porque foram construídas no meio da estrada. Numa delas, Juramento, vejo uma cena gozada, síntese da mistura entre tradição e modernidade que encontramos no sertão: um cavalo amarrado diante de uma academia de ginástica.
Estava feliz por não ter visto nenhum deserto verde no caminho. Mas a minha alegria durou pouco. Logo depois da localidade de Pau d’Óleo, me deparei com cerca de dez quilômetros de eucaliptos dos dois lados da estrada.
Diadorim ficaria muito triste com isso. Logo ele, tão amante das belezas da natureza, a ponto de ser capaz de incutir em Riobaldo o mesmo amor:
Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza
Itacambira está encarapitada na mesma cadeia de montanhas de pedra de Grão Mogol, mas é ainda mais alta: fica a quase mil e quinhentos metros de altitude. Outra diferença é que você ascende até Grão Mogol. No caso de Itacambira você primeiro sobe muito até divisar a cidade lá embaixo e baixar até ela. Há um belíssimo mirante antes de chegar, que permite ver as montanhas e a terra de Diadorim.
Ao chegar, você vai descendo uma avenida que desemboca no largo da igreja, uma belíssima igreja, simples mas charmosa. Pintada de branco, suas portas e janelas têm listras verticais de azul do céu e dourado. É uma igreja bem antiga, datando do início do século XVIII. O que significa que a bebezinha Maria Deodorina poderia ter sido batizada aqui. Depois pude visitá-la por dentro e contarei nos próximos diários como foi. Itacambira também surgiu da exploração de diamantes. Curiosamente, o presente que Riobaldo quis dar a Diadorim era um diamante.
Tudo ótimo, mas eu ainda tinha que arranjar um lugar para ficar. Encontrei uma pousada bem simpática, mas ninguém atendeu quando toquei a campainha. Mas cidade pequena é bacana, todo mundo conhece todo mundo. A dona do restaurante a peso telefonou para os donos da pousada e tudo se arranjou.
Agora que estou aqui, não consigo parar de pensar sobre o mistério de Diadorim. Especulemos. Quando Riobaldo encontra Joca Ramiro pela primeira vez, o grande chefe, pai de Diadorim, estava prestando auxílio militar com seus jagunços a um fazendeiro do Grão-Mogol: Alarico Totõe. Digamos que Joca Ramiro também fosse fazendeiro no Grão-Mogol, amigo de Alarico. E que ele tivesse uma filha com uma mulher do povo, com quem não ficava bem ele se casar ou mesmo com uma mulher de família importante mas rival. O sobrenome materno de Maria Deodorina parece ser “Fé”, bem popular em contraste com o grandiloquente “Bettancourt Marins” do pai. Imaginemos uma Maria da Fé.
A distância entre Grão-Mogol e Itacambira é de 72 quilômetros, em linha reta. A cavalo, pelos caminhos de então, deveria demorar ao menos uns dois dias. Itacambira era distrito de Grão Mogol, só se tornou município em 1962. Joca Ramiro leva a bebê até lá para ser batizada. Reparem que ela leva o seu nome: ele é José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, ela é Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Mas se ela fosse batizada na matriz de Grão Mogol talvez houvesse algum escândalo.
Em seguida, manda a menina para bem longe para ser criada pelo tio, informação que o Menino dá a Riobaldo.
Mesmo que tudo isso pudesse ser “verdade”, lembrando que é apenas uma especulação ficcional estimulada pela visão das montanhas de pedra maciça de Itacambira, ainda restaria o grande mistério: por que Diadorim se traveste de homem? Deixo isso para as aulas , isso aqui é um diário, não é?
Depois de almoçar e deixar as coisas na pousada, onde há uma vista das montanhas de fazer sonhar, passeio mais um pouco pela cidade. É um vilarejo, bem menor do que Grão Mogol. É cheia de sobe e desce como muitas cidades de Minas. Às vezes, à esquerda ou à direita da rua principal saem ruas tão íngremes que fazem um mergulho no abismo, dando para ver os campos em volta. O padroeiro da cidade é Santo Antonio e descobri que há duas ruas com esse nome.
Imagino o diálogo:
– Você mora onde?
– Na rua Santo Antonio.
– De cima ou de baixo?
Passo por um monumento à cidade: uma enxada, bela homenagem ao trabalhador rural, encimada por uma garça, que segundo um velho morador fazia parte da fauna da região antigamente. Na placa, o significado (local) de Itacambira: pedra pontuda que sai do mato fechado. Seriam os diamantes ou simplesmente as montanhas rochosas? Pontuda? Tá com cara de diamante.
Tiro fotos das duas casas mais antigas da cidade, ambas com mais de cento e cinquenta anos, o que permite dizer que Joca Ramiro e sua filha poderiam ter se hospedado em uma delas.
Encontro seu Djalma, finalmente alguém que leu Grande sertão: veredas Ao longo da viagem os poucos que conheci poderiam ser contados nos dedos de uma mão.
Amanhã é domingo, dia de missa. Verei a igreja por dentro e ver se posso ter acesso aos livros de batismo.
Quem sabe eu encontro o registro de uma Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins?
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
Fotos: M.A., Itacambira vista de cima; Matriz de Itacambira; agosto de 2019