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Em que época se passa Grande sertão: veredas

EM QUE ÉPOCA SE PASSA GRANDE SERTÃO: VEREDAS ?

Lendo o romance, se tem a nítida impressão de que o tempo em que ele se passa é impreciso. Rosa dá poucas pistas, talvez para acentuar o caráter transcendente da história que Riobaldo está contando, cujo valor vai além da época e do espaço em que transcorreu.

De qualquer forma, há pistas suficientes para localizar a ação na Primeira República ou República Velha (1889-1930). A principal é a notícia da passagem da Coluna Prestes por Minas Gerais, o que ocorreu na década de 20.

Mas afora este ancoramento histórico, muitas vezes se percebe um ar, uma moldura medieval e principalmente a apresentação de certos personagens remetendo a modelos da Idade Média. É o caso de Medeiro Vaz, o próprio cavaleiro andante a guerrear incessantemente em nome da defesa da honra e da justiça. E de Joca Ramiro, chamado de “um imperador em três alturas”. Quem primeiro percebeu este aspecto foi Manuel Cavalcanti Proença em seu belíssimo Trilhas no Grande sertão.

Isso se enquadra no que Antonio Candido (Literatura e sociedade) chama de “paradoxo literário”: Rosa “deforma” a realidade para realçar a presença desse imaginário medieval no sertão.

Mas afinal em que época se passa o romance? Quando fala do registro de batismo de Maria Deodorina (que depois se transformou em Diadorim), Rosa propositalmente evita uma datação ao dizer que fora levada à pia batismal “Em um 11 de setembro de 1800 e tantos…”. Ele queria que a história tivesse um tom mítico, algo que se passa em um lugar e mais ou menos em um período, mas sem uma data precisa.

Não há dúvida de que o romance se passa na Primeira República, antigamente chamada de República Velha, entre 1889 e 1930. É a época dos coronéis, dos currais eleitorais, das eleições fraudadas a bico de pena ou através do uso de outros artifícios: às vezes até mortos “votavam”. O fantástico personagem Zé Bebelo representa ao mesmo tempo o sonho dos positivistas de ordem e progresso e a sua falência: ao final ele se torna chefe de jagunços e por fim comerciante, não alcançando seu desejo de ser deputado. Sua mania sintomática de percorrer os campos ao final de uma batalha executando inimigos e gritando Viva a lei! é uma poderosa sátira aos militares que proclamaram a república e queriam ver seus ideais implantados nem que fosse a ferro e fogo.

Willi Bolle, um dos maiores especialistas da obra, propõe a seguinte cronologia (grandesertão.br) : a ação do romance teria se passado na primeira década após a proclamação da República (digamos, de 1890-1900), enquanto a narração teria se dado na última década da República Velha (1920-1930). Humildemente, irei discordar, pois acho que tenho motivos para fazê-lo.

Para os que desejam uma datação mais precisa, não há muitos indícios. Mas há um, precioso, que pipoca em um jantar na casa de seo Assis Wababa quando este conversa com outro comerciante, o alemão Vupes, na presença de Riobaldo, que tinha acabado de fugir da casa do seu padrinho-pai:

Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor.”

Acontece que sabemos que a estação de Curralinho (Corinto) foi inaugurada em 1904, uma linha da Estrada de Ferro Central do Brasil que iria chegar até Montes Claros. Digamos então que o jantar em que estava Riobaldo aconteceu uns quatro anos antes, em 1900. Isso faria com que as aventuras de Riobaldo e Diadorim pelo Grande sertão tenham ocorrido bem no início do século XX. Esta datação se combina bem com outro dado. Calculo que Riobaldo tivesse por volta de 18 anos quando saiu da casa do pai em 1900. Digamos que o momento em que o velho Riobaldo, agora fazendeiro, narra história para o doutor é o momento atual em que o livro está sendo escrito, por volta de 1954-1955, pouco antes do início do governo JK em 1956. O período da euforia desenvolvimentista, da mania de progresso e de novidades que é indiretamente mencionada no início da obra (par. 26):

o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo, leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau.”

Ora, pensar que a utilização de jagunços tivesse diminuído já na década de 1920, se seguirmos a cronologia proposta por Bolle, é algo que qualquer um que conheça a História do Brasil não pode aceitar: a utilização de forças militares por fazendeiros estava no seu auge durante toda a Primeira República (1889-1930). A hipótese de Bolle tem outro ponto fraco: entre sua história como jagunço e o período da narração transcorreriam apenas trinta anos. Não me parece um período longo o suficiente para a quantidade e a profundidade das mudanças relatadas pelo velho fazendeiro ao doutor. A própria figura do doutor, que tenciona “devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe”, ou seja, de um técnico encarregado de fazer algum tipo de levantamento científico sobre a região, não faz nenhum sentido para a década de 1920 e cai como uma luva na década de 1950. A presença de um nome americanizado “Valtêi”, também aponta para o mesmo período (par. 9):

nome moderno, é o que o povo daqui agora aprecêia, o senhor sabe.”

Resumindo: as aventuras de Riobaldo como jagunço teriam acontecido entre 1900-1902, quando ele tinha entre 18 e 20 anos. Ele as estaria contando para o doutor em 1954, com 72 anos. Encaixa, pois o velho Riobaldo, que diz viver “no range rede” (par. 4) repensando sua vida, afirma ao doutor que está com reumatismo, na fase final da existência (“nas escorvas”, par. 11), como ele afirma com toda a clareza (par. 148):

Da vida pouco me resta – só o deo-gratias; e o troco”

Na hipótese de Bolle, o Riobaldo narrador teria menos de 50 anos. Como em nenhum momento Riobaldo diz estar acometido de alguma doença grave, como era membro da classe dominante e sua expectativa de vida era alta, não vejo sentido em um homem de menos de 50 anos se achar no fim da sua trajetória, dizendo que pouco lhe restava a viver.

Percebo o narrador como alguém que se vê como um ancião que faz o balanço final da sua existência depois de uma vida longa, marcada para sempre pelo amor por Diadorim e pelo seu fim trágico.

Marcos Alvito