“- Qual foi o seu propósito, quando se sentou para escrever Cem anos de solidão?
– Dar uma saída literária, integral, para todas as experiências que de algum modo me tivessem afetado durante a infância.
– Muitos críticos veem no livro uma parábola ou alegoria da história da humanidade.
– Não, eu só quis deixar um testemunho poético do mundo da minha infância, que, como você sabe, transcorreu numa casa grande, muito triste, com uma irmã que comia terra e uma avó que adivinhava o futuro, e numerosos parentes de nomes iguais que nunca fizeram muita distinção entre a felicidade e a demência.
– Os críticos sempre encontram para ele intenções mais complexas.
– Se existem, devem ser inconscientes. Mas pode acontecer também que os críticos, ao contrário dos romancistas, não encontrem nos livros o que podem, mas sim o que querem. (…)
– (…) Você não disse uma vez que a história dos Buendía podia ser uma versão da história da América Latina?
– Sim, acho isso. A história da América Latina é também uma soma de esforços desmedidos e inúteis e de dramas condenados de antemão ao esquecimento. A peste do esquecimento também existe entre nós. Passado o tempo, ninguém reconhece como verdadeiro o massacre dos trabalhadores da companhia bananeira, ou se lembra do Coronel Aureliano Buendía. (…)
– Devemos acreditar que, por uma fatalidade do nosso destino histórico, quem luta contra o despotismo corre grande risco de se transformar a si mesmo num déspota ao chegar ao poder?
– Em Cem anos…, um condenado à morte diz ao Coronel Aureliano Buendía: ‘O que me preocupa é que de tanto odiar os militares, de tanto combate-los, de tanto pensar neles, você acabou por ser igual a eles.’ E concluiu: ‘Nesse passo, você vai ser o ditador mais despótico e sanguinário da nossa história.’
– É verdade que aos dezoito anos de idade você tentou escrever este mesmo romance?
– Sim, chamava-se La casa, porque pensei que toda a história devia ocorrer dentro da casa dos Buendía. (…)
– Por que você o interrompeu?
– Porque não tinha naquele momento a experiência, o fôlego nem os recursos técnicos para escrever uma obra assim.
– Mas a história continuou rodando na sua cabeça.
– Uns quinze anos mais. Mas não encontrava o tom que a fizesse crível para mim mesmo. Um dia, indo para Acapulco com Mercedes e os meninos, tive a revelação: devia contar a história como a minha avó me contava as suas, partindo daquela tarde em que o menino é levado por seu pai para conhecer o gelo.
– Uma história linear.
– Uma história linear em que, com toda a inocência, o extraordinário entrasse no cotidiano. (…)
– Falemos do livro. De onde provém a solidão dos Buendía?
– Para mim, da sua falta de amor. No livro se adverte que o Aureliano com rabo de porco era o único dos Buendía que, em um século, tinha sido concebido com amor. Os Buendía não eram capazes de amor, e aí está o segredo da sua solidão, da sua frustração. A solidão, para mim, é o contrário da solidariedade. (…)
– (…) acho que sei que há uma pista para distinguir os Aurelianos dos Josés Arcádios, qual é?
– Uma pista muito fácil: os Josés Arcádios prolongam a estirpe, mas não os Aurelianos. Com uma única exceção, a de José Arcádio Segundo e Aureliano Segundo, provavelmente porque sendo gêmeos exatamente iguais foram confundidos na infância.
– No livro, as loucuras correm por conta dos homens (inventos, alquimias, guerras, farras descomunais) e a sensatez por conta das mulheres. Corresponde à sua visão dos dois sexos?
– Acho que as mulheres mantêm o mundo no ar, para que não se desfaça, enquanto os homens tentam puxar a história. Por fim, a gente se pergunta qual das duas coisas será a menos sensata.
– As mulheres, ao que parece, não só asseguram a continuidade da estirpe como também a do romance. Será esse talvez o segredo da extraordinária longevidade de Ursula Iguarán?
– Sim, ela devia ter morrido antes da guerra civil, quando se aproximava dos cem anos de idade. Mas descobri que, se morresse, o livro se desmoronava. Quando morre, o livro já está com tanto vapor que não importa o que aconteça depois. (…)
– Deve haver algum aspecto fundamental do livro a que os críticos (os críticos pelos quais você tem tanta aversão) fizeram vista grossa. Qual seria?
– Seu valor mais notável: a imensa compaixão do autor por todas as suas pobres criaturas.” (…)
“- Liberado do compromisso com uma realidade política imediata, como chegou a encontrar esse outro tratamento, digamos mítico da realidade, que o permitiu escrever Cem anos de solidão?
– Talvez, conforme já disse a você, a pista me tenha sido dada pelos relatos da minha avó. Para ela, os mitos, as lendas, as crenças das pessoas faziam parte, e de maneira muito natural, da sua vida cotidiana. Pensando nela, percebi de repente que não estava inventando nada, mas simplesmente captando e me referindo a um mundo de presságios, de terapias, de premonições, de superstições, se você quiser, que era muito nosso, muito latino-americano. Lembre-se, por exemplo, daqueles homens que no nosso país conseguem tirar pela orelha, rezando orações, os vermes de uma vaca. Toda a nossa vida diária, na América Latina, está cheia de casos como esse.
De modo que o achado que me permitiu escrever Cem anos de solidão foi simplesmente o de uma realidade, a nossa, observada sem as limitações que os racionalistas e os stalinistas de todos os tempos tentaram impor para dar menos trabalho de entende-la.”
“- Macondo, mais que um lugar do mundo, é um estado de ânimo.”
“Lembro-me muito bem do dia em que terminei com muita dificuldade a primeira frase e me perguntei aterrorizado que merda viria depois. Na realidade, até o achado do galeão no meio da selva, não acreditei de verdade que aquele livro fosse chegar a parte alguma. Mas a partir dali tudo foi uma espécie de frenesi, aliás, muito divertido.”
“quase todos os meus personagens são como quebra-cabeças armados com peças de muitas pessoas diferentes e, é claro, que com peças de mim mesmo.”
“Quando se quer escrever alguma coisa, fica estabelecida uma espécie de tensão recíproca entre a gente e o tema, de modo que a gente atiça o tema e o tema atiça a gente. Há um momento em que todos os obstáculos são derrubados, todos os conflitos se apartam e à pessoa ocorrem coisas que não tinha sonhado e então não há na vida nada melhor do que escrever. Isso é o que eu chamaria de inspiração.”
“acho que um romance é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. A realidade que se maneja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apoie nela. Como acontece com os sonhos.”
Fonte: Cheiro de goiaba (conversas com Plinio Apuleyo Mendoza). Rio de Janeiro: Record, 2014.