/Um desconhecido chamado William Shakespeare

Um desconhecido chamado William Shakespeare

UM DESCONHECIDO CHAMADO WILLIAM SHAKESPEARE

Por um lado talvez não haja autor mais conhecido e celebrado mundialmente do que Shakespeare. O indivíduo William Shakespeare, todavia, é um desconhecido. Por exemplo: não sabemos com certeza como era o seu rosto. Temos apenas três imagens. Uma delas talvez seja dele, mas não há nada que o comprove. Outra é uma gravura muito mal executada publicada junto com a primeira edição das suas obras, anos após a sua morte. A boca está fora do lugar, um olho é maior do que o outro, e por aí vai. A terceira e última imagem é proveniente de uma estátua em tamanho natural colocada na igreja onde ele está enterrado na sua terra natal: Strattford-upon-Avon. Só tem um problema: ela era pintada. Digo era porque no século XVIII um especialista por demais zeloso entendeu que a pintura era falsa e mandou retirá-la, impossibilitando para sempre sabermos como era a representação original de Shakespeare, talvez a única confiável.

Não sabemos também como é que se escrevia verdadeiramente o seu nome. Nas seis vezes em que temos documentos com a sua assinatura, parece que ele decidiu variar. Uma vez escreveu ‘Willm Shaksp’, da outra ‘William Shakespe’, uma terceira ‘Wm Shakspe’ e por aí vai. Só não assinou da forma pela qual o conhecemos: William Shakespeare. Depois de quatrocentos anos de pesquisas incessantes, temos cerca de 100 documentos relativos a ele, mas muitos são documentos contábeis ou jurídicos, que proporcionam informações limitadas.

Será que Shakespeare alguma vez viajou para fora da Inglaterra? Há quem diga que esteve na Itália, o que teria influenciado a temática de algumas peças, mas não há uma só evidência a sustentar esta hipótese. Quem eram seus amigos? Não sabemos. Como ele se divertia? Qual era a sua personalidade? Nada podemos dizer. Há até mesmo um período de oito anos essencial e que permanece uma incógnita. Foram os anos durante o quais ele saiu de Strattford-upon-Avon deixando lá sua família e foi para Londres, onde veio a se tornar um importante escritor. Como se deu isso? Impossível saber.

Bem, afinal, o que sabemos? Para começar, não devemos ser ingratos. Temos um milhão de palavras provenientes das peças preservadas de Shakespeare. Houve quem contasse palavras e expressões. Descobriu-se, por exemplo, que Shakespeare usou a palavra “amor” 2.259 vezes, bem mais do que “ódio”, que aparece apenas 183 vezes. Sabemos que ele nasceu em 1564, em um momento difícil, em que as inúmeras doenças faziam com que a população inglesa estivesse diminuindo. No ano em que ele veio ao mundo, 200 pessoas morreram de peste em Strattford-upon-Avon, 10 vezes mais do que o número habitual. O pequeno William teve sorte em sobreviver. Seu pai, John Shakespeare, comerciava com couro e era uma pessoa de certa importância na comunidade, mas no final da vida parece ter se endividado. A mãe de William, veio de um ramo menor de uma família proeminente e parece ter sido criada com algum conforto. Ela teve oito filhos: quatro moças (das quais apenas uma chegou à maturidade) e quatro rapazes.

Embora o registro não exista, acredita-se que o jovem William Shakespeare tenha estudado na excelente King’s New School, uma instituição financiada generosamente pela cidade. Para se ter uma ideia, três dos professores da época de Shakespeare haviam sido formados em Oxford. Normalmente os meninos começavam na escola aos sete anos e nela ficavam até os catorze ou quinze. As aulas iam das 6 da manhã às 6 da tarde, seis dias por semana. A disciplina era rigorosa e os castigos físicos frequentes. O centro do estudo era o Latim: ler, escrever e recitar durante horas. A intimidade com a retórica e a literatura latina deve ter sido de grande ajuda na posterior elaboração de suas peças. Mas matemática, história e geografia, nem pensar. Isso Shakespeare teve que aprender sozinho.

Não sabemos o que o jovem William Shakespeare fez aos quinze anos, idade provável em que saiu da King’s New School. Provavelmente foi trabalhar, mas não há nenhuma maneira de saber em que. O certo é que em novembro de 1582, quando ele tinha dezoito anos, Shakespeare se casa com Anne Hattaway, proveniente de uma família próspera. Pela análise da documentação da época, que demonstra que o casal teve alguma pressa em realizar o matrimônio, é bem possível que ela estivesse grávida. Se confiarmos na sua lápide, Anne era 8 anos mais velha do que William, ou seja, ela tinha 26 anos ao se casar. Ela deu três filhas a ele: Susanna e as gêmeas Judith e Hamnet. Como era a vida do casal? Nada se sabe.

Com menos de 21 anos, o jovem Shakespeare tinha uma família com mulher e três filhas para sustentar. Aos vinte e nove anos, quando a documentação registrar novamente a sua presença, ele já é alguém importante na cena teatral londrina: ator, sócio de uma importante companhia de teatro e, sobretudo, autor prestigiado de peças teatrais. O que ocorreu durante estes oito anos? Como Shakespeare ingressou no mundo artístico? Ninguém pode dizer. Só se sabe que ele tomou a decisão de ir para Londres, talvez substituindo um ator adoecido de uma companhia teatral que estava visitando Strattford-upon-Avon.

Londres era atraente, mas também insalubre, perigosa, barulhenta e caótica. Quando William Shakespeare se mudou para lá a cidade tinha aproximadamente 200 mil habitantes e não cabia mais nas muralhas. O jovem do interior deve ter ficado fascinado, sobretudo com a intensa vida teatral: alguns espetáculos eram assistidos por um público maior do que a totalidade dos habitantes da sua cidade de origem. A população gostava de uma alimentação com muito açúcar, que era colocado até no vinho, nos peixes e nas carnes. Os londrinos bebiam cerveja inclusive no café da manhã e acreditavam que o tabaco, além de um prazer, curava mau hálito, dor de cabeça e até doenças venéreas.

Shakespeare aprendeu a viver ali e a escrever peças que atraíram um público numeroso e constante, o que era um feito, pois a competição entre as companhias e os autores era feroz. Quando ele retornou a Strattford-upon-Avon ele era um homem realizado e bem-sucedido, tendo comprado propriedades que comprovam isso. Em 23 de abril de 1616, dia de São Jorge, padroeiro da Inglaterra, morre William Shakespeare, aos cinquenta e dois anos de idade. Embora já muito conhecido e respeitado, ninguém naquela época, inclusive o próprio Shakespeare, tinha ideia de que aquele homem iria ser um dos mais cultuados autores da literatura mundial. Mesmo que saibamos tão pouco acerca da sua vida, a sua arte fala mais alto.