LENDO COM PRAZER # 008
CONFISSÕES DE RALFO (UMA AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA) (1975), de Sérgio Sant’Anna (1941- )
Em plena ditadura militar, em1975, Sérgio Sant’Anna estreia com um romance libertário, ousado, contundente e sobretudo muito irônico e engraçado. A personagem, que assume o fato de ser inventada e explora as possibilidades disso ao máximo, é o adorável e absolutamente sem caráter Ralfo, que assim se define: “sou Ralfo, o personagem à procura de seus acontecimentos.” E eles vêm em turbilhão. Ralfo vive pacatamente a explorar duas irmãs, rouba-lhes o dinheiro e toma um navio. Ralfo vence na roleta e ganha uma fortuna, que entrega a uma prostituta. Ralfo faz uma revolução, é metralhado por defender a liberdade total e ressuscita. Ralfo apaixona-se, vira empregado de escritório, mendigo e é torturado pela polícia. Ralfo é internado em um hospício espanhol como paciente 69 e consegue transformar um baile de fantasias em uma orgia coletiva e por aí vai… No processo, Ralfo vai satirizando tudo que encontra pela frente.Para começar, Ralfo embaralha a fronteira entre realidade e ficção:
“Afinal, não só esta mas todas as autobiografias são sempre imaginárias e reais, se é que se podem delimitar fronteiras exatas nesse sentido. Pois se a realidade é de certo modo uma criação imaginária, também a imaginação e a fantasia são realidades contundentes, que revelam integralmente o ser e o mundo concretos em que se apoiaram.”
Ralfo é provocador ao extremo:
“À nossa direita, temos a sede do banco mais próspero do país. Os banqueiros ficam cada vez mais ricos e os bancários cada vez mais putos da vida. Mas quem permanece bancário merece, de certo modo, tal destino. Porque há sempre a possibilidade de lançar-se do vigésimo andar como o nosso amigo ou então, para os mais corajosos, assaltar o banco ou mijar em cima da mesa do chefe, ou ainda, o mais óbvio: simplesmente não voltar mais ali.”
No caso das duas irmãs, o que temos é uma metáfora para o posicionamento artístico do autor. Ele não gosta nem de Rosângela, que trabalha em programas de televisão grotescos, nem de Sofia, que é cantora de ópera. Ou seja, recusa os extremos do erudito e do popular. O que interessa a ele é a crítica àquilo que em 1975 costumava se chamar “o sistema”. Em determinado momento se transforma em um conformado auxiliar de escritório na Poison & Poison and Co., obviamente localizada em Goddamn City, uma cidade com trinta milhões de habitantes obviamente inspirada em Nova Iorque. Assim Ralfo descreve o almoço na empresa:
“Um imenso refeitório, onde lauta refeição é oferecida mediante módico desconto no ordenado. Uma refeição que você deve devorar com cara de gula e prazer, pois são os pratos feitos marca Poison, isto é, fabricados, como o leite materno, na própria empresa em que trabalhamos, famosa pela variedade de venenos digeríveis que se vendem por toda a parte e também responsável pela produção de remédios estomacais e intestinais e ainda confortáveis privadas e até mesmo proprietária de aprazíveis cemitérios. Um desses gigantescos e integrados complexos industriais, que fabricam desde o leite em pó, passando por uma infinidade de artigos consumidos por uma pessoa em vida, até elegantes lápides de mármore com inscrições graciosas. Aqui jaz Ralfo, Auxiliar de Escritório, servidor de seus chefes, de sua pátria e de seu Deus.”
Ralfo é plástico, se amolda às múltiplas personagens, aos múltiplos papéis sociais que desempenha. Mas não se cola a nenhum deles, pois sua única regra parece ser “não cumprir as regras do jogo, de qualquer jogo.”
Um romance muito atual, cuja leitura deixa na alma um valioso sabor de inconformismo.