LENDO COM PRAZER # 014
O ÔNIBUS BRANCO, Ferréz
Escritor e rapper, Ferréz é um dos expoentes da assim chamada “literatura marginal”. Na juventude, mesmo quando esteve desempregado vivendo de bicos, não deixava de tomar dois ônibus para frequentar a biblioteca. Capão Pecado, nome do bairro onde vive, na periférica zona sul de São Paulo, o romance que efetivamente o lançou em 2000. Depois vieram outros: Manual Prático do Ódio, Ninguém é inocente em São Paulo (contos) e Deus foi almoçar. Sua prosa é seca, só papo reto como se diz na gíria. O que não impede uma enorme sensibilidade como vemos no conto a seguir: “O ônibus branco”.
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Entrei, já estava lotado, não havia notado a semelhança dos passageiros, eu estava esgotado, não sabia mais por onde correr, os dois inimigos atrás de mim não acertaram os tiros, estou intacto fora o cansaço, nem vi de onde eles saíram, vieram cobrar treta do cara errado, eu num tinha nada a ver com aquelas fitas, vou sumariar tudo isso hoje mesmo quando chegar na quebra.
Olhei para o lado e vi o meu parceirinho, não acreditei, Marquinhos ali do meu lado.
– E aí, parceiro, com vai?
– Tamo indo, mó saudade Nal, me dá um abraço aqui.
– Claro, só você mesmo pra me chamar de Nal, porra mó saudade, por onde tinha andado?
– Ah! Desde aquele dia da pizzaria que meu anjo da guarda se distraiu eu fiquei por aqui, tô nesse ônibus, tô junto com outros, olha lá o China, já tá tentando abrir a porta, o motorista fica que fica louco.
– Pode crê! Oi, China…
– E aí, Ferréz?
– Meu, como vai você, cara?
– To indo, essa porra desse motorista não abre a porta, eu vou zuar ele.
– Meu, mas você e o Marquinhos no mesmo ônibus, aí já é coincidência demais.
– Nada é coincidência Ferréz, como tá indo meu irmão lá, e o meu velho e minha mãe?
– Tão bem, eles ficaram bem triste, né, mas tão indo, o Chininha tá lá, andando de moto como sempre, ele anda muito com o dentinho.
– Fala uma coisa pra ele, véio.
– Fala o que, China?
– Fala que num compensa, num compensou pra mim, eu to com saudade, abraça eles pra mim.
– Pode deixar, esse ônibus tá indo pra onde?
– É bom você num sabê.
– Mas Marquinhos…
– Ferréz, se liga quem tá lá no banco da frente.
– Quem?
– O Wilhiam.
– Porra, num acredito, chama ele aqui, fomos todos criados juntos, num acredito que ele tá aqui também.
– Só tem um problema, ele num pode passar pra essa parte do ônibus, ele tem que ficar lá na frente, cê sabe, né, ele aprontou um pouco.
– Num tô entendendo, Marquinhos, como assim?
– Olha, lá com ele tá o Rodriguinho, o Tatá, o Dunga, o Edinho.
– Puxa, tá todo mundo aqui, o Rodriguinho eu tenho que ver, ele foi um dia depois que tomamos refrigerante e comemos mó churrascada em frente à padaria, queria perguntar pra ele se…
– Nada disso Ferréz, a gente num pode falar com eles, mas o ônibus tá lotado de amigo nosso até lá na frente, vai reparando…
– Pode crê! Olha o Peixe lá, eita mano firmeza, olha o Boca de Lata, que legal, putz o Ratão tinha que tá aqui, os parceiros dele tão de monte aqui também, mas como tá todo mundo junto assim se…
– O barato é esse, Nal, desculpa, agora é Ferréz, né?
– Pode chamar de Nal mesmo, nóis num tem essa.
– Então manda um abraço lá pra minha irmã Fabiana, pra Ana Lúcia e pra Mimi, diz pra minha mãe se cuidar que eu amo ela de montão, e vê se lembra disso, eu vou voltar, quando você tiver a maior alegria da sua vida, o resto dos parceiros não pode falar com você, eles sempre escolhem um pra falar, então é isso, agora chegou sua hora de descer, irmão, já deram o sinal.
– Mas eu queria te dizer que…
– Desce, Nal, eu sei que você sente minha falta, nós sentimos a sua também, mas este ônibus por enquanto não tem destino pra você, tchau Nal.
Desci, andei por uma rua escura muito tempo, até achar uma claridade, parei e me dei conta de que a maior alegria da minha vida vai ser quando meu filho nascer, fechei os olhos e abracei todos os meus amigos que se foram.
Cheguei em casa e ainda não consegui parar de chorar, pois sei que o ônibus vai continuar tendo novos passageiros, sempre, sempre, sempre.