Norbert Elias, quem diria, explica o futebol parte I – O processo civilizador
Um dos maiores craques da Sociologia do século XX foi o alemão Norbert Elias (1897-1990). Elias teve uma vida tão emocionante, imprevisível e cheia de reviravoltas como um bom jogo de futebol. Ele mesmo, quando foi chamado a resumir sua trajetória, comparou-se a um cavaleiro que atravessou um lago invernal “sem temer que o gelo cedesse”. Efetivamente, ele teve que coragem para enfrentar as divididas que a vida lhe aprontou. Era filho único de um casal de judeus bem sucedidos: o pai era dono de uma manufatura. Nasceu em Breslau, uma cidade de meio milhão de habitantes com uma universidade e rica vida cultural. O menino Norbert era uma criança de físico frágil, muito sujeita a doenças. Leitor voraz, já aos seis ou sete anos sabia o que queria fazer da vida: queria ir para a universidade, queria ensinar e pesquisar”. Mal sabia que para ele não haveria jogo fácil.
A primeira zebra aconteceu ao ser convocado para o exército alemão durante a Grande Guerra (I Guerra Mundial). Quase setenta anos depois ainda recordava das “massas de cavalos mortos. E de cadáveres humanos”, assim como do soldado que tocava gaita e das canções sentimentais que dialogavam com a morte (Ibidem). Como bom sociólogo, avaliava que sua experiência na guerra havia fortalecido seu “senso de realidade”.
Nem o retorno à paz foi tranquilo, tendo sido a década de 20 marcada pela violência das milícias de esquerda e de direita. A essa época Elias defende uma tese de filosofia em 1923, com 26 anos. Como os pais estavam em uma situação difícil, trabalha em uma fábrica de tubos por dois anos, exercendo todo o tipo de tarefa. Segundo o próprio, aprendeu bastante sobre o capitalismo e sobre as classes trabalhadoras, além de ter se divertido à beça.
Quando a situação melhora, retorna à universidade: em 1930, com 33 anos, consegue o cargo de Professor Assistente na Universidade de Frankfurt, parecendo realizar seu sonho de criança. Três anos depois, Hitler estava no poder. Um ano antes, em 1932, correndo risco de vida mas colocando em primeiro lugar a curiosidade científica, vai a um comício do líder nazista. Em uma entrevista dada meio século depois, ainda se lembrava dos dotes de orador de Hitler e da massa de pessoas “loucamente entusiasmada”. Em 1934 tem que abandonar tudo para salvar a vida e vai tentar restabelecer uma carreira universitária na França, onde acaba não sendo bem recebido e tendo que abrir uma oficina de brinquedos para sobreviver, o que também não dá certo. Depois de passar fome, embarca para a Inglaterra onde vai residir por quarenta anos e onde finalmente obterá um cargo estável de professor, aos 57 anos de idade. Seus pais haviam sido mortos pelos nazistas, pouco depois dele terminar de escrever, já em solo inglês, a sua obra-prima, O Processo Civilizador, lançado em 1939, em plena guerra. Este livro, que mudaria o panorama da Sociologia (e também da História Social e da Cultura), ficaria praticamente esquecido por mais de 30 anos até sua tradução para o Francês em 1973. Antes de ser contratado pela Universidade de Leicester em 1954, Elias sobreviveu dando aulas em um centro de educação para adultos. Falece com 93 anos, em 1990, consagrado no mundo todo, tão famoso para as Ciências Sociais e a História quanto um Romário para o futebol.
Por falar em futebol, o que Norbert Elias e sua obra têm a ver com o rude esporte bretão? Muita coisa, na verdade. Sua tese em O Processo Civilizador, postulava que em alguns países do Ocidente teria ocorrido uma mudança de longa duração, multissecular, que começa a ocorrer de uma forma lenta mas decisiva desde o século XVI. O processo civilizador é assim definido por ele:
“a norma social de conduta e de sentimentos, sobretudo em alguns círculos das classes altas, começou a mudar de maneira bastante pronunciada a partir do século XVI e em uma direção muito concreta. A regulamentação da conduta e dos sentimentos tornou-se mais estrita, mais diferenciada e abrangente, mas também mais equilibrada e moderada, pois eliminou os excessos de autocastigo e autoindulgência. Esta mudança achou expressão em um novo termo cunhado por Erasmo de Roterdã e que se empregou em muitos outros países como símbolo do novo refinamento de costumes: o termo civilidade que logo deu origem ao verbo civilizar. Investigações posteriores assinalaram como provável o fato de que os processos de formação dos Estados*, os agrupamentos de nobres nas cortes dos países europeus estivessem relacionados de alguma forma com essa mudança no código sentimental e de conduta.”
Para resumir muitíssimo, correndo o risco de marcar um gol contra chamado vulgarização, podemos dizer que a principal característica deste processo é o que ele chama de “diminuição drástica da tolerância diante de atos violentos”. Em suma, um processo de “refinamento” que inclui um maior auto-controle imposto pela interiorização de normas de conduta sociais visando reprimir o que agora é considerado comportamento “animal”, selvagem ou não-civilizado. O interessante é que quanto mais a sociedade passar por um processo de “pacificação”, mais as tensões serão interiorizadas porque os indivíduos terão que aprender a reforçar o seu autocontrole.
Dando um exemplo retirado da história do futebol, a transformação dos violentíssimos jogos de football da Idade Média em um esporte regrado e controlado no século XIX (como vimos no artigo da semana passada), seria ao mesmo tempo efeito e causa do avanço do processo civilizador.
Em sua preciosa introdução ao livro, Elias se pergunta o porquê de tanto interesse pelo esporte nas sociedades contemporâneas. A chave da resposta estaria no fato de que as atividades de lazer, dentre as quais o esporte estaria incluído, desempenhariam o papel de criar uma “excitação mimética” que serviria para contrabalançar o stress causado pela necessidade cada vez maior de autodomínio, de refreamento das emoções e comportamentos. Nas próprias palavras de Elias:
“O quadro do desporto, como o de muitas outras actividades de lazer, destina-se a movimentar, a estimular as emoções, a evocar tensões sob a forma de uma excitação controlada e bem equilibrada, sem riscos e tensões habitualmente relacionadas com o excitamento de outras situações da vida, uma excitação mimética que pode ser apreciada e ter um efeito libertador, catártico, mesmo se a ressonância emocional ligada ao desígnio imaginário contiver, como habitualmente acontece, elementos de ansiedade, medo – ou desespero.”
Ainda na década de 60, quando havia acabado de montar o novíssimo Departamento de Sociologia da Universidade de Leicester, Elias e seus discípulos, tendo como ponto de partida a teoria do processo civilizador, começariam a se debruçar sobre um fenômeno que abalava a sociedade inglesa da época: o hooliganismo. Novamente Elias se deparava com a questão da violência. O resultado das pesquisas daquilo que é conhecido como “Escola de Leicester”, a explicação que este grupo encabeçado pelo grande sociólogo alemão dá para o fenômeno e para o papel do esporte na sociedade industrial se tornaram conhecidos em todo o mundo. Essa perspectiva original seria reunida em um dos maiores clássicos dos estudos sobre o futebol, o livro Quest for Excitement, ou Busca da Excitação, publicado em 1986. Mas isto será o tema da nossa coluna na semana que vem, o segundo tempo desta conversa sobre Norbert Elias e o futebol.