O CAUSO DE SEÔ HABÃO: UM LIBELO ANTICAPITALISTA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS?
Para o Querido Bando do Rosa, companheiro de travessia e alegria
“Na extraordinária obra-prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler”
Antonio Candido
É um momento-chave da narrativa. Riobaldo tinha decidido fazer o Pacto, mas estava naquele vai-não-vai tão característico da sua personalidade. Um dia, decide e começa a fazer o jejum do demo, abstendo-se de comer e bebendo somente cachaça, o que lhe dava “fogo solto na goela e intestinos”. Mas Diadorim chega perto “com aquela forte meiguice” e o propósito de Riobaldo se desmancha. Come até zampar, diante dos “moços olhos” de Diadorim. Parece que a vida voltou ao normal. “Tanto o engano”: Riobaldo começa a ter duros pesadelos que lhe apontam a verdade de sua condição: “Um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão”. Nos últimos tempos, havia passado por poucas e boas: o sofrido cerco da Fazenda dos Tucanos e a cruel morte dos cavalos do bando, o encontro com os estranhos e assustadores catrumanos, o espetáculo sombrio da peste no Sucruiú, a espantosa pilhagem da casa do Valado, da qual participava até mesmo uma criança, vestida com trapos… Para piorar, agora Riobaldo e quase todo o bando de Zé Bebelo pareciam estar doentes, muitos com maleita, sem que o chefe tomasse as devidas providências. Nesta sequência de acontecimentos, Riobaldo tem contato com a mais bruta violência, a morte, a maldade, a ignorância, o atraso, a miséria, a doença… Parece que foi aí que Riobaldo entendeu o lado literal da frase: “Viver é negócio muito perigoso.”
Ademais, ele reflete que não poderia se fiar nos companheiros do bando, hoje “amigos”, mas em uma outra “ordem política”, capazes de massacrá-lo sem piedade. Sente o “horror” da posição em que está e tem “medo de homem humano”. É neste momento que, pensando alto, diz: “… Só o demo…” E a partir daí, passa a investigar a maneira pela qual poderia fazer o pacto, indagando ao Lacrau, que já fora do bando contrário, acerca do Hermógenes e das vantagens de se tornar “pactário”. Logo depois vem um trecho que revela a motivação de Riobaldo: ele tem certeza de que o pai de Otacília não permitirá o casamento da filha com um jagunço, alguém “entalado na perdição, sem honradez costumeira.” Não há dúvida de que ele pensa no pacto como uma forma de conseguir casar com a futura herdeira da Fazenda Santa Catarina. Explicita que era esse o propósito do pacto: “eu achei aí a possibilidade capaz, a razão”.
Riobaldo sendo Riobaldo, todavia, mais uma vez, hesita. E, como sempre, nega, de forma suspeitíssima, que fosse por falta de coragem: “não foi de medo”, mas admite que estremecia quando pensava no “Tristonho”, “soforma dalgum bicho de pelo escuro”, “beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado”, se despedindo com “estrondo e forte enxofre”. Ao fim deste passo, Guimarães Rosa se supera em termos de criatividade, porque Riobaldo, embora esteja conversando com o doutor, se dirige de forma enfática ao próprio Coisa-ruim: “T’arreneguei”.
Aparentemente, Riobaldo iria desistir daquele propósito. É aí que entra o causo de seô Habão. Rosa constrói a narrativa à maneira do aedo homérico, bordando e costurando episódios, muitas vezes, sem respeitar a ordem cronológica. Riobaldo admite que o seu discurso é “muito entrançado”. Estes causos, muitas vezes, podem ser vistos como verdadeiros contos. É o caso do episódio de Maria Mutema, que assassina o marido, leva o padre a morrer de desgosto e depois se arrepende, sendo vista como quase santa. Ou do Verde-Alecrim, uma espécie de lugarejo mágico controlado por duas belas mulheres que se entregam ao amor livre, inclusive entre elas, uma utopia de paz e amor. Estes “contos”, todavia, estão muito bem amarrados à narrativa principal, fazem parte dela, têm um papel a desempenhar.
É o que se dá com o causo de seô Habão. Há mais de um mês que Zé Bebelo e seus homens estavam na tapera da Coruja, pássaro noturno, de rapina e de significado sombrio na obra. De repente, aparece “o dono daqueles lugares”: seô Habão. O estranho nome decerto deriva do verbo latino “habere”, que significa “ter”. Na primeira pessoa do presente do indicativo tem a forma “habeo”, muito parecida com Habão. Ou seja: o nome do fazendeiro seria “eu tenho”. O comportamento do personagem vai justificar amplamente que ele seja assim chamado.
Tudo nele é sério, pesado: o brim azul é “encorpado escuro” e as botas vêm até os joelhos. Riobaldo se encanta com o cavalo do fazendeiro, um animal de pêlo amarelo-avermelhado, símbolo de grande status no sertão. Seô Habão era homem de gestos contidos (“miúdo comportamento”), dotado da calma de quem é dono e senhor. Estava atento a tudo, sobretudo às coisas, zelando por sua propriedade: “ele dava balanço, inquiria , espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão, homem carecesse de cuidar comercial.” Riobaldo chega a dizer que enquanto seô Habão vivesse “o mundo não se acabava”. E que perto dele a conversa de Zé Bebelo perdia força e o fazendeiro aos poucos impunha a questão da lavoura, dos trabalhos, das chuvas, do sol, de tudo aquilo que afetava a lida do campo. Riobaldo chega a uma conclusão espantosa, mas também esclarecedora e que será o catalisador da decisão de, afinal, fazer o pacto: “fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório.”
Diante daquele bando de jagunços, pesadamente armados, ocupando terras que lhe pertenciam, seô Habão não demonstra medo. Pelo contrário, toma pé da situação. Declara a Zé Bebelo que “não transportava consigo dinheiro razoável”, mas se fossem até a sua “fazenda grande”, a vinte léguas dali, poderia fornecer “um auxílio, em espórtulas”. Este último termo, segundo o dicionário Houaiss, surgiu na Roma antiga: era o cesto usado pelo imperador ou pelos nobres para distribuir gêneros ou dinheiro ao povo. O mesmo dicionário informa que também tem o sentido de donativo, auxílio, gorjeta, propina e até de esmola. Mesmo que Zé Bebelo tenha recusado este oferecimento, seô Habão já colocara o bando e o seu chefe no seu devido lugar.
A decisão de fazer o pacto será reforçada ao conhecer melhor seô Habão. Riobaldo tenta se aproximar, de forma subserviente, dizendo que ele tinha recolhido o título de capitão que estava no chão da casa do Valado. Seô Habão ignora aquilo, seus pensamentos tinham apenas uma direção e comenta, de forma desumana, que a peste no Sucruiú tinha acabado e que ele estava “ciente” (linguajar administrativo-jurídico) de que tinham morrido “só dezoito pessoas…”. Continua, perguntando a Riobaldo se tinha havido muito estrago nos canaviais. O que restava ainda daria para moer cana e para colocar o pessoal do Sucruiú para fazer rapadura. A rapadura, aliás, seria vendida para os do Sucruiú, que por ela pagariam com “trabalhos redobrados” numa espécie de moto-contínuo da exploração. Isso era dito com uma voz “sem calor nenhum”.
Riobaldo compreende, então, que seô Habão, se pudesse, transformaria todo o bando de Zé Bebelo em seus jornaleiros “para capinar e roçar, e colher”. O que ele queria era ter todos como escravos, era essa a “natureza dele”. Em suma, era um homem que “cumpria sua sina”, a qual era “reduzir tudo a conteúdo”. Se alegrava com a repetição (ou acumulação): “vinte, trinta carros de milho”, “os mil alqueires de arroz”. Era um outro tipo de dono, que não dava ordens com o carisma e a autoridade de um chefe de jagunços, mas “de maneira costumeira e surda”. E era obedecido por “Cada pessoa, cada bicho, cada coisa”.
Vou encurtar a prosa. Decerto Rosa não queria fazer discurso político, coisa a que era avesso. Mas não há a menor dúvida de que podemos reconhecer em seô Habão traços do capitalismo tupiniquim: antes de mais nada a herança do passado escravista (“seô” é uma corruptela de “sinhô”). Ele é o dono da terra e, por isso, o dono do poder que dispõe de homens armados a seu serviço. Completam o quadro a indiferença brutal quanto às condições dos trabalhadores, a exploração selvagem, sem peias. E, também, elementos mais gerais, como a acumulação e a busca do lucro.
Creio que o elemento central da lógica capitalista é a transformação de tudo e de todos em mercadoria. Ora, nada explicita melhor o caráter anticapitalista do “causo de seô Habão” do que a ideia de que ele buscava “reduzir tudo a conteúdo”. Quando Riobaldo toma a decisão final de fazer o pacto, logo depois de conhecer o fazendeiro, ele se pergunta: “Pensei naquele seô Habão que nem um transtorno?”.
É por isso que Willi Bolle afirma, em seu livro grandesertao.br que Riobaldo não fez um pacto com o diabo, e sim com a classe dominante.
Marcos Alvito, 20 de agosto de 2021