O melhor emprego do mundo – um ano de futebol na Inglaterra
Durante mais ou menos um ano eu tive o melhor emprego do mundo: ir a jogos de futebol na Inglaterra, o que era um sonho de criança. Na verdade, não foi só isso, eu entrevistei pessoas, fiz muito trabalho de campo, indo a partidas com torcedores e com a polícia e também estudei muito a história do futebol inglês. A pesquisa resultou no livro A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra (Rio de Janeiro: Apicuri, 2014), dividido em duas partes. A segunda parte, mais antropológica, apresenta a cultura do futebol inglês: os fanzines (publicações dos torcedores), a importância do pub, as desventuras de um torcedor da quinta divisão (eu, no caso), as estratégias da polícia contra os hooligans e, é lógico, relatos de idas a Old Trafford e a Anfield Road (onde dei sorte para o Liverpool duas vezes), sem falar numa visita ao Paraíso (como os torcedores do Celtic chamam seu estádio) e a vários estádios das divisões mais baixas do futebol inglês para sentir as várias dimensões do jogo. Sem falar no futebol feminino, no rugbi, nas apostas e no esporte inglês mais aristocrático: o críquete. Esta parte tem 32 breves crônicas.
A primeira parte do livro, bem menor, trata da história do futebol inglês em oito pequenos capítulos e foi sobre ela que demos a aula inaugural do curso 7 Leituras para pensar o futebol na Livraria Al Farábi, no centro do Rio de Janeiro. Dividimos a aula (como faremos sempre) em 7 pontos bons para pensar:
01 – Os violentos jogos de football
A matriz do esporte mais praticado, visto, debatido, amado e odiado do mundo veio da Inglaterra, mais precisamente da Idade Média, onde havia vários jogos com o nome de football. Os jogos não tinham regras e opunham dois grupos, duas aldeias, por exemplo, que tinham por objetivo (goal) levar uma bexiga de animal inflada de ar até um determinado ponto do território do adversário (como a igreja). Chegando lá a festa da vitória era tão violenta quanto o jogo, que felizmente só era praticado uma vez por ano, como um ritual, normalmente na Terça Feira Gorda, uma espécie de despedida antes da trégua da Quaresma. Era tão comum alguém morrer nestas disputas que os legistas da época já tinham a rubrica “Death by football”(morte por futebol). As autoridades, mais do que torcerem o nariz, tentaram impedir o jogo, proibi-lo, mas ele já era uma paixão popular e de nada adiantaram os éditos reais banindo o football ou as ameaças das autoridades religiosas de que quem o praticava arderia no inferno. Este aspecto de desobediência virava subversão aberta quando se organizavam jogos como estratégia para agrupar uma multidão a protestar contra aumentos de preços ou contra a expulsão dos camponeses de suas terras durante o processo dos cercamentos.
02 – Com que regra?
Uma personagem de Shakespeare chama a outra de “vagabundo jogador de futebol” e é curioso que um jogo tão perseguido e estigmatizado tenha se tornado o esporte mais popular do planeta. O processo se deu da seguinte forma:
“Tudo passou pela transformação de um jogo rural violento e selvagem em um esporte praticado nas escolas mais aristocráticas da Inglaterra. Os professores tinham enorme dificuldade em conter pupilos originários de uma camada social superior. Os filhos da aristocracia desrespeitavam abertamente e eventualmente agrediam seus mestres. Às vezes até botavam fogo na escola. Eram o terror da região em torno: estupravam camponesas, destruíam pubs, batiam nos aldeões. Entre eles mesmos havia muita violência: os calouros eram tratados pelos veteranos como escravos, partindo até mesmo para o abuso sexual. Os diretores tiveram uma brilhante ideia: dirigir esta energia excessiva e destruidora para a prática de uma atividade física. Acontece que o football que existia até então não servia, era apenas um jogo, ou seja, não tinha regras. Usando o pátio do colégio como campo, aos poucos o football foi se transformando em um esporte, embora de início as regras fossem transmitidas oralmente e variassem de escola para escola. E é claro que durante muito tempo os calouros serviram apenas para marcar a linha lateral. Jogar era privilégio dos veteranos. De qualquer forma, a tática funcionou e aos poucos os diretores conseguiram pacificar um pouco suas escolas. Eram totalmente apoiados pela Igreja, que à época professava a doutrina da “Cristandade Musculosa”, também conhecida por “Corpo são e mente sã”. Cansar os meninos era uma maneira de evitar os pecados.”
Quem diria que o bom e velho football, antes maldito, era agora abençoado pela Igreja e pelos diretores de escolas aristocráticas… Mas agora havia um problema: cada escola tinha sua regra e quando queriam se enfrentar tinham que combinar com que regra, às vezes jogando o primeiro tempo na regra de Rugby (uma escola no norte da Inglaterra) podendo carregar a bola com as mãos e o segundo tempo em uma regra em que só se podia usar os pés. Quando se chegava à universidade, o problema piorava: tinham que adotar uma única regra. Nessa altura, segunda metade do século XIX, já havia clubes por toda a Inglaterra, cada um jogando por uma regra, uma enorme confusão.
A solução viria em uma tarde de terça-feira, 8 de dezembro de 1863, em um pub onde vinte e cinco clubes de futebol de Londres se reunem e fundam a Football Association (FA), elaborando depois de algumas reuniões 13 regras para o football que acabaram por ser adotadas em toda a Inglaterra e depois em todo o planeta. Era um esporte muito diferente do que conhecemos: de início não havia um número de jogadores fixo, inexistia goleiro, bem como juiz, a bola só podia ser passada para trás e todos os jogadores poderiam pegar a bola no alto com as mãos, recolocá-la no chão e chutá-la. Como não havia travessão, qualquer bola chutada, à altura que fosse, desde que entre as traves verticais, era gol, ou melhor, goal.
03 – A máquina de fazer dinheiro
O football já era uma febre em todas as regiões da Inglaterra por volta de 1870, mas ainda faltava algo. As partidas eram todas o que chamamos hoje no Brasil de amistosos, combinados entre duas equipes. A Football Association tem a grande ideia de criar a primeira competição futebolística da história em 1871: a FA Cup (Copa da Inglaterra), disputada até hoje. Aí é que o football deslancha e se cai no gosto dos operários. Os trabalhadores ingleses viviam um momento de fortalecimento da sua identidade de classe, para a qual o novo esporte vai ser tão importante quanto o encontro e a bebedeira no pub com os amigos e colegas, a ponto de ser chamado por Eric Hobsbawn de “a religião laica da classe operária”. Soma-se a isto uma melhora das condições de vida graças à luta política empreendida via sindicatos e partidos, que resultou em ganhos salariais e na conquista da chamada “semana inglesa”, em que o sábado à tarde passava a ser livre. Daí a tradição, ainda hoje relativamente mantida, dos jogos de futebol na Inglaterra se realizarem aos sábados, três da tarde, dando tempo aos operários de receberem o pagamento semanal ao meio-dia, darem uma passadinha em casa e ficarem bebendo nos pubs perto do campo até a hora do jogo.
Há um florescimento do football e como era de se esperar em uma sociedade capitalista, ele começa a fazer dinheiro:
“São criados clubes por toda a parte, sobretudo no norte industrial, onde os operários representam um público fiel e entusiasmado. Para se manterem, os clubes logo cercam seus campos, instalam bilheterias e erguem as primeiras arquibancadas de madeira embora a maioria dos espectadores assistisse ao jogo de pé nos terraces, normalmente com degraus cavados em uma pequena elevação de terra, onde o ingresso era mais barato. Para atrair mais público, os clubes logo começam a “contratar” jogadores, fazendo pagamentos por debaixo do pano ou tornando os melhores jogadores empregados do clube.”
Começa a haver um conflito entre os dirigentes da FA, em sua maioria adeptos da ideologia aristocrática do amadorismo, do “esporte pelo esporte” e os presidentes dos clubes do norte da Inglaterra, industriais e comerciantes, para quem a profissionalização do jogo já era uma realidade com a contratação de jogadores em um esquema de “amadorismo marrom”.
Depois de uma ameaça de revolta geral dos clubes, que chegaram a pensar em criar uma nova associação de futebol, a FA recua e aceita o profissionalismo em 1885, com algumas restrições. Só que manter um clube com jogadores profissionais, recebendo salário toda semana, era praticamente impossível sem uma competição fixa. A FA Cup, apesar de ser um sucesso, era (e é) uma competição eliminatória, incerta, de “mata-mata” (inspirada nos campeonatos de brigas-de-galo). É aí que se dá o segundo pulo do gato do futebol inglês: a criação do primeiro campeonato nacional do mundo, organizado pela recém-criada Football League (Liga de Futebol):
“Dentro do espírito racional e empresarial da classe industrial e comercial do norte da Inglaterra, a solução não tardou a surgir. Em 1888, doze clubes*, a maioria do norte da Inglaterra, criam a Football League (Liga de Futebol), doravante responsável pela organização de um campeonato por pontos corridos e partidas de ida e volta. Era algo até então inédito no futebol, inspirado nas competições entre os Condados (regiões em que é dividida a Inglaterra) existentes no cricket. Ao contrário da F.A. , dirigida sobretudo por profissionais liberais e membros da elite, os criadores da Football League eram empresários, homens de negócios que haviam subido na vida. A Football League e seu campeonato são um sucesso: em 1892, quatro anos depois da sua criação, já há 28 clubes divididos em duas divisões.”
04 – O jogo do povo – futebol e classe operária
Com a FA Cup muito bem estabelecida e já tradicional e o sucesso estrondoso do campeonato nacional criado pela Football League, atraindo massas de espectadores cada vez maiores, no início do século XX o football supera o críquete em popularidade e começa a ser chamado de “The People’s Game” (o jogo do povo). Não é fácil explicar isso, mas qualquer explicação tem que passar pelo seu papel junto à classe trabalhadora:
“Em uma época de grandes transformações, com milhões de pessoas migrando do campo para as cidades e tendo que reconstruir suas vidas, seu círculo de amizades e seu sistema de valores, o futebol era crucial. Ele permitia estabelecer novos vínculos, sobretudo entre os homens, recriando identidades e solidariedades em torno de um clube que passava a representar uma comunidade determinada. Jogado ou assistido, o futebol era o principal lazer dos trabalhadores, mas ia muito além disso. Nele estavam inscritos valores específicos da classe operária, como o espírito de equipe e a dureza necessária para enfrentar os desafios do dia-a-dia. Cimentava os laços masculinos e permitia marcar ainda mais as diferenças de gênero, pois as mulheres eram praticamente excluídas desse universo.”
Até a forma de jogar irá se modificar devido à enorme adesão da classe operária: depois do surgimento da regra do impedimento em 1866 (inicialmente com três jogadores, número que cai para dois em 1925), agora é permitido passar a bola para frente. Se de início a tática era pegar a bola e sair driblando, o que refletia os valores individualistas da classe dominante, agora vai se adotar o jogo de passes, coletivo, mais de acordo com a cultura da classe trabalhadora, que valorizava a solidariedade. Se antes o time era um bando formado por indivíduos isolados, agora há uma especialização de funções semelhante ao que ocorria na fábrica. O resultado:
“Essa identificação quase perfeita entre o futebol e a classe operária refletia-se em um crescimento extraordinário do público presente aos estádios. Entre 1911-2 e 1938-9, a média de público nos jogos da primeira divisão da Football League passou de 17.000 para 30.600.”
A rede de ferrovias que cruzava a Inglaterra de ponta a ponta facilitava a movimentação de jogadores e torcedores. Muitos clubes, aliás, foram criados por ferroviários, como o próprio Newton Heath, em 1902 rebatizado por seu novo proprietário – um dono de cervejaria que salvara a agremiação da falência – com o nome mais “marqueteiro” de Manchester United. O football tinha também uma outra aliada e sócia muito poderosa: a imprensa. Jornais diários vendiam cada vez mais graças ao futebol e vice-versa, o futebol era cada vez mais divulgado por por eles e por publicações especialmente dedicadas ao esporte, que surgem já no final do século XIX.
05 – O fim da época de ouro: casa, automóvel e televisão
Há quem pense que a época de maior público do futebol inglês seja a partir da Premier League, nada disso. Nos anos que se seguiram ao fim da 2a. Guerra Mundial, houve um mar de público jamais igualado, em parte para matar a “fome de bola” já que as principais competições (exceto as regionais) haviam sido interrompidas durante o conflito. Na temporada de 1948-49 o público total das divisões da Football League alcança o recorde de 41 milhões de ingressos vendidos. Para se ter uma ideia, o público total da bilionária Premier League gira em torno dos 30 milhões.
Na verdade, a partir da década de 50 houve uma queda do público presente a todos os esportes, não só do futebol, por causas ligadas às mudanças que ocorriam na sociedade inglesa:
“Estava em curso um processo de transformação da sociedade no pós-guerra. Após anos de austeridade e restrições, a economia européia e a inglesa em particular entrariam em uma época de prosperidade que duraria até meados da década de 1970. Sobe o valor real dos salários e aumenta enormemente o consumo de bens e mercadorias. Na Inglaterra, cada vez mais as pessoas eram proprietárias de suas casas. O número de automóveis particulares nas ruas multiplica-se (…) Em 1950, era raro alguém ter televisão em casa, mas em 1961 ela já estava presente em 75% dos lares. Maior renda significava a possibilidade de outras formas de passar o sábado à tarde, antes reservado ao futebol. E os avanços da condição feminina também exerciam pressão sobre os homens para ficarem em casa.”
Neste processo de “privatização do lazer”, que continua até hoje, diga-se de passagem, aos poucos o público do futebol vai se transformar em telespectador de futebol, ou torcedor de poltrona, se preferirem. As primeiras transmissões, restritas à final da Copa da Inglaterra, que contava com a presença da Família Real a cumprimentar os jogadores desde 1914, se deram de forma tímida no início da década de 50. Mas em 1953 a audiência já alcança um número espetacular para a época: dez milhões de pessoas. A televisão não vai tardar a entender que o futebol tinha potencial para virar sua principal atração, transformado em mais um show da telinha. O marco desse processo é a criação de um programa dominical noturno com gols e melhores lances em 1963 e até hoje em cartaz, mais de meio século depois: o ‘Match of the Day’.
Não por acaso, o show havia sido criado dois anos depois da retirada do teto salarial que impedira até então uma maior desigualdade entre clubes de maior e menor torcida, o que ocorrera em 1961:
“Com salários livres e cada vez menos presos aos clubes, os melhores jogadores tendem a ser contratados pelos clubes mais poderosos, normalmente das grandes cidades. Os jogadores, por sua vez, começam a ser transformados pela televisão e pelos jornais e revistas em “estrelas”, ajudando a vender produtos. Antes heróis da classe operária, encarnando os valores coletivos da classe, os jogadores passam a ser representados como indivíduos ligados à riqueza e ao consumo hedonista. Antes o ídolo era uma figura com Stanley Matthew, o lendário ponta-direita que jogou até os 50 anos, não bebia, era um decente e respeitável pai de família. Agora a imprensa cultivaria George Best, cuja única semelhança com Matthews era a posição em que jogava. Best, um gênio com a bola no pé, era tão famoso que chegou a ser chamado de “o quinto Beatle”.”
Em uma declaração bombástica, típica de popstar, George Best, cuja carreira praticamente terminou aos 28 anos, teria dito: “Gastei quase todo o meu dinheiro com bebidas, mulheres e carros, o resto eu desperdicei…”
06 – Os hooligans e a grande crise do futebol inglês
Uma outra grande mutação da sociedade inglesa também ocorreu entre o final da década de 50 e início da década de 60: a emergência da juventude como protagonista da História. Estes novos atores vão transformar o cenário dos estádios e do futebol inglês:
“A juventude cada vez menos se conformava ao papel antes a ela reservado. Há todo um “estilo” jovem que busca acentuar as diferenças através de um uso de formas particulares de vestuário, uso da linguagem, apresentação pessoal, gostos musicais e comportamento em geral. Esse “poder jovem” começa a estar presente também nos estádios de futebol, um teatro perfeito para encenar atos de diferenciação e de rebeldia. Até meados da década de 1950, o público dos estádios podia ser dividido em dois grandes grupos: nos terraces atrás do gol e nas laterais, ia a classe operária, assistindo aos jogos de pé. Nas arquibancadas cobertas e com assentos localizadas junto ao centro do gramado, a classe média e os diretores (na tribuna de honra).Não havia até então espaços distintos para os torcedores das duas equipes, não eram segregados, separados por cercas ou pela polícia. Misturavam-se sem problema por todas as áreas.”
A juventude, que começa a lotar os trens para as partidas “fora”, adota os ends (atrás do gol, com ingressos mais baratos) como seu lugar de preferência e dali operam uma verdadeira revolução na maneira de torcer:
“Ali começam a torcer de uma maneira bem mais expressiva e fanática ou, na visão dos mais velhos, de uma forma menos respeitável e educada. Começam a usar canções da música popular e logo começam a desafiar o grupo de jovens que vinha torcer pelo time adversário. Ciosos do seu território, esses grupos de jovens começam a se comportar de forma tribal, o que passa a incluir as tentativas de tomada do end oposto, resultando em conflito e violência.”
O resto, é história: começa a ocorrer invasões de campo, a imprensa começa a noticiar e a explorar o tema da violência dos grupos de jovens, eles começam a ser vigiados pela polícia, os clubes começam a transformar os estádios em espaços divididos e cercados, enfim, está armado o cenário para a eclosão do hooliganismo. O sucesso midiático da violência no futebol afasta o público tradicional dos estádios e começa a atrair grupos cada vez mais violentos e exibicionistas, certos que estão de virarem manchete. Muitos desses torcedores professam uma ideologia de direita, ultra-nacionalista e xenófoba, em uma época de grandes transformações no mundo e na Inglaterra.
O auge deste circo de horrores, se dá no auge do neoliberalismo:
“Tudo isso ocorre sobretudo na década de 1980, quando a Inglaterra está sofrendo uma recessão econômica profunda, um grave processo de desindustrialização e desemprego, tudo isso agravado pela política neo-liberal de Margaret Thatcher, primeira ministra da Inglaterra desde 1979: privatização de empresas estatais, guerra aos sindicatos e ao Estado de Bem-Estar social, com cortes de verba na educação, na saúde e nos serviços públicos em geral.”
A melhor explicação para o hooliganismo foi dada, a meu ver, por Richard Holt, em Sport and the British:
“Para ele, o hooliganismo é resultado de um conjunto articulado de processos. A defesa do território e da comunidade era uma característica das classes populares há vários séculos: o futebol tradicional jogado entre as aldeias é um bom exemplo disso. Tornar-se “homem” entre os jovens da classe trabalhadora era um aprendizado que envolvia bebida, brincadeiras verbais e brigas, eventualmente envolvendo dois grupos distintos, cada um deles afirmando sua masculinidade, o pertencimento a um território e a solidariedade coletiva. Este comportamento era ao mesmo tempo estimulado e controlado pelos homens mais velhos. As disputas entre as turmas de jovens ficavam restritas ao bairro e não causavam maiores problemas. A partir da década de 1950, começam a se esgarçar as solidariedades de classe e muitas comunidades inclusive desaparecem diante das transformações econômicas e das reformas urbanas que põem abaixo bairros inteiros. Cada vez menos os jovens irão seguir as carreiras dos pais e mesmo quando o fazem não mais se conformam a uma posição subordinada que lhes barra o acesso a bens de consumo cada vez mais desejados.
O futebol e seus “rituais de sábado à tarde” irão proporcionar a estes jovens o pertencimento a um novo tipo de comunidade, uma identidade definida pelo clube e um território próprio a defender (o end). Alguns valores da classe trabalhadora, como a rudeza (hardness) e o apego ao local serão retrabalhados e elaborados em novas formas. O skinhead, por exemplo, com suas pesadas botas de operário e cabeça raspada para diferenciar-se dos estudantes de classe média com seus cabelos longos, pode ser visto como uma caricatura agressiva da figura do trabalhador. Todo aquele que vem de fora, seja o torcedor do outro clube ou o imigrante paquistanês ou indiano é visto como um inimigo.”
Este tipo de configuração (como diria Norbert Elias, que estudou o hooliganismo), só poderia resultar em tragédia. E em um renascimento em bases muito diferentes…
07 – Premier League S.A.
1989, ano da maior tragédia do futebol inglês, com a morte de 96 torcedores esmagados em Hillsborough, estádio do Sheffield United, em uma semifinal da Copa da Inglaterra. A partir daí a sociedade inglesa chegou a um consenso de que era preciso modificar totalmente o seu futebol. Como é de praxe na ilha, convocou-se um magistrado para realizar uma investigação e propor mudanças. Lord Taylor fez um trabalho admirável, viajando por toda a Inglaterra, realizando entrevistas e pesquisando profundamente o problema, até publicar em 1990 o que seria conhecido como Relatório Taylor. Conclui, entre outras coisas, que a tragédia de Hillsborough não havia sido causada pelos hooligans do Liverpool e sim pela incompetência da polícia e da administração do estádio.
Taylor propõe várias mudanças em seu documento. Sobretudo defende a cultura torcedora e é contra a criminalização da totalidade da torcida por causa de uma minoria violenta que poderia muito bem ser contida. Ele advoga uma maior participação dos torcedores nas decisões e a manutenção de preços baixos que permitissem aos trabalhadores continuar frequentando os estádios. Infelizmente, esta parte do relatório foi esquecida:
“Em nome do conforto e, principalmente, da segurança dos torcedores, Taylor propõe o fim dos terraces, tornando obrigatória a colocação de assentos em todos os estádios das quatro primeiras divisões da Inglaterra dentro de no máximo quatro temporadas (em 1994-95). Posteriormente a norma foi alterada e continuou obrigatória somente para as duas primeiras divisões. Taylor admitia que a capacidade dos estádios seria reduzida, mas pedia que os torcedores não fossem penalizados financeiramente. Infelizmente, embora a maioria das propostas encaminhadas por Taylor tenha sido seguida, não pode-se dizer o mesmo do “espírito” do relatório. Muitas das mudanças foram implementadas em nome da segurança mas, na prática, tentando transformar o torcedor em consumidor, para atrair preferencialmente famílias de classe média, com maior poder aquisitivo e comportamento mais passivo.”
O football, que já fora camponês, escolar e operário, agora era novamente retirado das mãos do povo, por clubes que estão mais interessados no lucro do que em manter a histórica ligação entre os clubes e seus torcedores.
“Os clubes (…) irão aproveitar as mudanças de forma a elitizar o futebol. Agora a classe trabalhadora, o coração do futebol inglês, não será mais bem vinda. Nos estádios reformados ou nos novos e modernos estádios construídos de acordo com as normas o preço das entradas vai subir assustadoramente de forma a afastar os “indesejáveis”. Agora a classe trabalhadora, antes o coração e a alma do futebol inglês, não será mais bem vinda. Na verdade, o público deixa de ser tão importante, porque cada vez mais o futebol passa a ser um produto fabricado para a televisão.”
A Premier League, que de início era chamada de Premiership, vai ser criada em 1992, rompendo com a estrutura solidária e distributiva da Football League, em que os recursos, inclusive os provenientes da televisão, eram divididos entre seus 92 clubes. Faz-se um novo contrato milionário e logo bilionário com uma rede de tv a cabo que estava à beira da falência e o campeonato inglês da primeira divisão torna-se o principal produto da televisão mundial, planetária. Da aldeia medieval à aldeia global.
Em A Rainha de Chuteiras este processo é descrito assim:
“Com os novos recursos e uma audiência mundial, contratam-se técnicos e atletas estrangeiros, melhorando o nível técnico e gerando maior interesse junto ao público. Havia apenas onze jogadores não-britânicos na primeira temporada em 1992-93, tornam-se 66 em 1995-96 e 400 em 2000-1, ano em que a Premier League já era transmitida para 141 países e tinha uma audiência acumulada de 1,3 bilhões de pessoas. O futebol inglês, antes fechado sobre si próprio, passava a ser vendido como uma mercadoria valiosa no mercado global da indústria do lazer.
Alguns clubes, obviamente os gigantes, com maior apelo e glamour, não perdem a chance de se transformarem em corporações transnacionais, como é o caso principalmente do Manchester United, que passa a adotar uma estratégia de “conquista” do mercado asiático (…)
Para os torcedores o preço dos ingressos não para de subir, aumentando 300% somente entre 1992-99, mas o público de maior poder aquisitivo agora passa a frequentar o “novo futebol”, glamourizado pela televisão e transformado em um produto “respeitável”, um ramo privilegiado da indústria do entretenimento.
Os clubes maiores, com estádios com maior capacidade e mais torcida, tendem a ficar cada vez mais ricos. Nem mesmo dentro da Premier League a divisão de recursos provenientes da televisão é igualitária: os clubes com mais jogos retransmitidos recebem mais recursos. Tudo passa a ser motivado pelo lucro, sem nenhum respeito pela tradição. Ou seja, agora o futebol inglês passava a ser dirigido pelas “forças do mercado”, que sempre tendem a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.”