/Para ler Grande sertão: veredas – Parte 1 – Sertão três em um

Para ler Grande sertão: veredas – Parte 1 – Sertão três em um

Algumas observações gerais sobre Grande sertão: veredas

A primeira coisa que se deve ter em mente é que GSV não é um romance realista, nem tampouco regionalista. Em outras palavras, Rosa não está querendo descrever ou retratar a realidade. Embora o romance se passe no sertão mineiro, não é sobre o sertão mineiro. A boa arte literária, aliás, como ensina Antonio Candido, consiste em deformar a realidade de modo a expressar melhor uma característica da mesma. Rosa conhecia detalhadamente a realidade do sertão, sua geografia, sua fauna e flora, seus homens e costumes. E isto aparece no livro, pois ele estudou e pesquisou muito acerca dessa realidade. Mas essa realidade é apenas o pano de fundo, a história que ele quer contar é outra.

Quem melhor explica isso é o filósofo paraense Benedito Nunes (2013: 132). Ele diz existirem três sertões na obra. O primeiro sertão é o sertão de Minas propriamente dito: “o sertanejo e o sertão, a linguagem e as relações humanas e sociais do sertão”. Neste sertão-sertão a questão central é a sobrevivência.

Mas há um segundo sertão: “o da aventura humana, sob os grandes paradigmas da viagem e do combate”. Neste sertão, que todos nós trilhamos, a grande questão é a da existência. Aqui entra o bordão “Viver é negócio muito perigoso” e também a ideia de travessia, dos percursos que somos obrigados ou escolhemos fazer.

Por fim, há um terceiro sertão: “o do destino metafísico e religioso, sob o paradigma da escolha entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Demônio. Aqui a questão fundamental é a transcendência, aquilo que está além do que supõe a nossa vã filosofia, ou sociologia…

É claro que estes três planos estão entrelaçados, misturados, articulados em GSV. Em certa altura o próprio Riobaldo, conversando com o “doutor” (parece até o próprio Rosa), admite que o que está contando é confuso e “entrançado”.

De início, é possível que vocês tenham alguma dificuldade de leitura, coisa que o próprio Rosa prezava, ele queria leitores atentos, que exercessem o trabalho que a leitura de um texto com conteúdo exige. Mas logo essa dificuldade vai se transformar em um enorme prazer. Prometo!

Uma outra questão importante é a seguinte: em que época se passa o romance. Lendo GSV, se tem a nítida impressão de que o tempo em que ele se passa é impreciso. Rosa dá poucas pistas, talvez para acentuar o caráter transcendente da história que Riobaldo está contando, cujo valor vai além da época e do espaço em que transcorreu.

De qualquer forma, há pistas suficientes para localizar a ação na Primeira República ou República Velha (1889-1930). A principal é a notícia da passagem da Coluna Prestes por Minas Gerais, o que ocorreu na década de 20.

Mas afora este ancoramento histórico, muitas vezes se percebe 
um ar, uma moldura medieval e principalmente a apresentação de certos personagens remetendo a modelos medievais. É o caso de Medeiro Vaz, o próprio cavaleiro andante a guerrear incessantemente em nome da defesa da honra e da justiça. E de Joca Ramiro, chamado de “um imperador em três alturas”. Quem primeiro percebeu este aspecto foi Manuel Cavalcanti Proença em seu belíssimo
Trilhas no Grande sertão.

Isso se enquadra no que Antonio Candido chama de “paradoxo literário”: Rosa “deforma” a realidade para realçar a presença desse imaginário medieval no sertão.

Marcos Alvito