ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr
(1992) Grande Sertão: Veredas, roteiro de leitura. São Paulo:Ática.
SEXTA SEQUÊNCIA
Após o pacto, Riobaldo assume a chefia do bando com o nome de Urutú Branco e em uma atmosfera de alegria exaltada. Sua nova presença de espírito o leva a substituir às convenções dos antigos chefes uma re-encenação parodística das regras jagunças. A representação da guerra é distorcida pelas imagens, símbolos e metáforas da feminidade e da sexualidade. O desregramento carnavalesco chega a um limite na presença do velho fazendeiro Ornelas, verda-
012: deiro ‘pater familias’ cuja autoridade impressiona e inquieta o chefe sem limites. Seu mando portará doravante a marca do reconhecimento da autoridade pacífica e respeituosa [sic] da vida e dos direitos alheios. Na busca da Ordem, parece ser necessário ir até o fundo da desordem. Daí a pergunta: o que está no fundo da desordem?
SEXTA SEQUÊNCIA: ‘O que está no fundo da desordem?’
[pp. 424-484 da Nova Fronteira; pp. 606-694 da Nova AGUILAR em pdf]
69: Riobaldo sai modificado da cena do pacto. As neblinas noturnas se dissiparam e ele percebe o mundo em uma clareza acentuada que dá um novo valor à sua vida:
E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente. (GSV p. 321)
Tudo se tinge de riso e de ironia, a realidade aparece realçada pelo tom de paródia do relato de Riobaldo, repentinamente ‘falante’ e gozador.
A subversão das convenções pela ‘alegria estrita’
O que distingue a fala de Riobaldo agora é sua presença de espírito, a resposta imediata que combina instantaneamente analogias de imagens e sons, sem preocupação com a conveniência lógica do dito; ‘eu me espiritava só para arrelias e inconveniências’ (p. 323) – diz Riobaldo desta sua disposição à paródia. Pondo-se, porém, em pers-
70: pectiva as ironias que o narrador relata, nota-se que elas visam sobretudo a racionalidade postiça de Zé Bebelo e a religiosidade inconsequente dos jagunços. Zé Bebelo promete ordem, paz e a constituição da lei, mas no fundo ‘gosta prático da guerra’; os jagunços rezam e invocam Deus, mas agem como bichos ferozes, agindo nas sebaças e tentando limpar-se de toda misericórdia.
A nova clareza do seu olhar faz com que Riobaldo veja sem nenhuma ilusão atenuante a duplicidade e o engano destes comportamentos. No mesmo espírito, ele corta também uma queixa sentimental de Diadorim que lamenta a separação irremediável dos amigos:
Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu […] Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu… Por que é que separação é dever tão forte? … (GSV p. 324)
Riobaldo tem a resposta a esta pergunta – ele percebeu a paixão da guerra que mantém Diadorim (como também Zé Bebelo) prisioneiro – ele sabe, porém, que o amigo é inacessível a este tipo de verdade e cala-se:
Mas Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome rodeante: Joca Ramiro – José Otávio Ramiro Bettencourt Marins, o Chefe, o pai dele? Um mandado de ódio. (GSV p. 324)
Ele procura apenas confirmar que esta emoção e ternura, esta vontade de amar que Diadorim manifesta agora, são apenas momentâneas. Para tanto, ele menciona o objeto predileto do ódio de Diadorim, o Hermógenes, causando uma imediata mudança de ânimo:
Ele [Diadorim] acinzentou a cara. Tremeu, aos pingos, no centrozinho dos olhos. Revi que era o Reinaldo, que guerreava delicado e terrível nas batalhas. Diadorim, semelhasse manivel, mas diabrável sempre assim, como eu agora estava contente de ver. (GSV p. 324)
71: O mesmo olhar claro, distanciado e cruel leva agora Riobaldo a criticar a campanha de Zé Bebelo que confessa seu erro:
[…] foi então que me disse que o extravio nosso tinha sido mais completo; porque a gente tinha vindo em má rota, em vez da Virgem-Mãe para a Virgem-da-Laje. […] Em outras ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me perturbar. Mas, dessa viagem, eu achava até divertido. (GSV p. 324)
A reinvenção da sensualidade erótica no universo jagunço
Tudo torna-se jogo, brincadeira, carnaval – o perigo não existe, como se a vida tivesse sido transformada em um grande campo de experimentação onde os valores e as significações podem ser livremente invertidos, torcidos, potencializados. É esta disposição de lunático ou de delirante perseguindo seus palpites e impulsos (e não projetos racionais e conscientes) que permite a Riobaldo avançar no meio de um rebanho agitado de cavalos. Ele escolhe o mais fogoso – o cavalo gateado do fazendeiro seô Habão – fazendo- dobrar-se instantaneamente à sua vontade. A descrição desta doma miraculosa sublinha o lado sensual e erótico do reconhecimento da autoridade de Riobaldo pelo animal:
Barzabú! – xinguei. E o cavalão, lão, lão, pôs as pernas para adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor. Me obedecia. (GSV p.325)
Não há figura mais completa da sensualidade do que um cavalo (já tradicionalmente associado à luxúria) que se assemelha a um gato. De novo, são os jogos literais – a disposição de sons, letras, sílabas e raízes etimológicas –
72: que asseguram o desdobramento fonético desta atmosfera sensual. A transformação de cavalo em cavalão e a repetição rítmica desta desinência lão, lão criam a impressão do movimento rítmico próprio da carícia; a partícula ‘mor’, na qual ressoam simultaneamente as significações ‘amor’, ‘maior’ e ‘em baixo’, completa este quadro.
Parece ser consequência natural desta façanha que seô Habão, o proprietário, presenteie imediatamente seu melhor cavalo ao estranho domador. E Riobaldo batiza solenemente esta encarnação da sensualidade erótica:
Nome que dou a ele, d’ora em diante, conferido é este – que que aprender, aprende! que é: o cavalo Siruiz… (GSV p. 326)
É importante ressaltar que este nome – o do jagunço Siruiz que faz parte da reminiscência marcante do primeiro encontro com os jagunços – estabelece um traço de união entre dois princípios contraditórios na vida de Riobaldo. Um é o lado erótico e amoroso que desempenha um papel importantíssimo na sua economia emocional, o outro, o aspecto violento e selvagem que Riobaldo fará seu ao seguir o apelo fascinante do amigo Diadorim.
Entretanto, o batismo solene modifica o primeiro nome do cavalo – Barzabú -, nome que os jagunços dão a este cavalo, retomando o grito de doma. O fato de que neste nome ecoe ‘Belzebu’ e, portanto, ‘Zé Bebelo’, faz com que sua substituição anuncie assim secretamente a substituição do regime zebebeliano pelo regime de Siruiz. O que significa este jogo de substituições?
Ora, o leitor já sabe que Zé Bebelo é um defensor da castidade guerreira que desvia as energias sexuais para a destruição sangrenta (a ‘regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem’). O nome Siruiz, ao contrário, é associado tanto ao jagunço Siruiz como à canção do mesmo nome. Esta canção assume, no percurso da narração, três versões. A primeira (p. 93) fala da vida regrada na cidade antiga e venerá-
073: vel de Urubú; na segunda versão (p. 241), este clima pacífico é deslocado pela evocação da aridez do Chapadão, da brabeza do rio Urucúia, do mundo sombrio e da perdição. A terceira e última versão (p. 350) confunde na primeira estrofe o convite às armas e o convite ao amor (‘Hei-de às armas […] Hei-de amor…’).
Ora, é precisamente esta fusão-confusão dos dois aspectos extremos – destruição mortífera e odiosa de um lado, animação vital e amorosa de outro – que será a marca pela qual a campanha de Urutú Branco se distingue da campanha de outros chefes.
A guerra sob o signo da feminidade e da sexualidade
Os elementos tipicamente femininos – terra e água – eram os ‘parceiros’ simbólicos de Riobaldo na segunda metade do pacto. Nota-se agora, na sexta sequência do romance, um acréscimo muito significativo de símbolos, emblemas e motivos tradicionalmente ligados à feminidade. O cavalo, a serpente e a onça (bichos ligados ao complexo feminino), os nomes da Virgem, canções e gestos de teor erótico, mas, sobretudo, as marcas da lua (símbolo do ciclo feminino e vital) proliferam no texto, imprimindo a esta sequência uma nota carnavalesca e bagunçada.
O comportamento de Urutú Branco assemelha-se ao de um lunático que faz e desfaz, manda e desmanda. Tendo dado as ordens para preparar uma festa, reunindo os homens e trazendo as mulheres e ‘as músicas’, Urutú branco já muda de ideia:
Ah, não, Festa? Eu já estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela porção de homens, e formar todos de guerreiros. (GSV p. 335)
074: Tudo se passa como se o chefe que ‘demuda’ como a lua estivesse suspenso entre dois impulsos contraditórios. Um visa a excitação física e sensual da dança e da música que medeiam o contato e união com as mulheres. Nota-se, neste contexto, que Riobaldo lamentou, durante a sua estadia no bando de Hermógenes, a ausência dos instrumentos e da música – ausência esta que provocou ‘o peso ruim do corpo’, o mal estar e o desequilíbrio das forças físicas e psíquicas. O outro representa a agitação violenta, os impulsos agressivos da destruição e da ‘sede de sangue’ que Riobaldo descobriu serem igualmente seus durante sua vida com os jagunços.
O procedimento ‘bagunçado’ e maluco da campanha de Urutú Branco é criticado por Diadorim que reprocha a seu amigo querer apenas ‘dansação e desordem’. Ora, as ‘maluqueiras’ aparentes tornam-se compreensíveis quando consideradas como uma luta de tendências opostas.
Na literatura medieval e renascentista, este combate entre tendências espirituais que se enfrentam na mente de um mesmo sujeito chama-se ‘psicomaquia’ e cada tendência aparece como um personagem objetivo e real agindo sobre o sujeito. Este tipo de representação não corresponde mais à concepção moderna do sujeito humano, visto, desde Freud, como um sujeito dividido. Ora, a moderna teoria do sujeito não concebe mais o indivíduo como habitado por forças opostas. A clivagem decorre do fato da dupla existência do ser humano enquanto corpo (dotado de energia) e linguagem.
O corpo é, em consequência, determinado pela linguagem – pelo registro dos signos, isto é, pelas palavras ou gestos que formam os discursos regendo o tecido social: regras da família, do Estado, da justiça, etc. O corpo não é mais visto como uma realidade independente e separável do ‘espírito’ ou da linguagem. Ao contrário, todas as necessidades físicas precisam de representações simbólicas (ao nível da linguagem, dos discursos e das leis) para pode-
075: rem adquirir presença e realização. A humanidade (aquilo que distingue o homem do animal) aparece assim como um problema de escritura, de inscrição do meramente material (as energias) no registro dos signos ordenados (linguagem, discursos regendo a comunidade).
A ‘invasão’ dos símbolos femininos nesta sequência da narrativa pode, portanto, ser vista como a manifestação de um desejo obscuro do chefe Urutú Branco ou, em linguagem psicanalítica, como o retorno das inscrições inconscientes que constituem a sua personalidade.
Riobaldo nunca abriu mão das suas reminiscências do universo das madrinhas e das mães, isto é, dos discursos que asseguram às mulheres e a todos os elementos ligados à feminidade um lugar simbólico, um valor. Parece que a dificuldade – e, portanto, as ‘maluqueiras’ – decorre do fato de que o universo dos jagunços, regido pelos antigos chefes – Joãozinho Bem-Bem, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, etc. – exclui totalmente deste universo as mulheres, de forma que não há lugar para as representações simbólicas do feminino. Esta é a razão por que a pequena Deodorina precisa transformar-se em ‘maninel’ (ser entre fantasma e louco, segundo o Dicionário Aurélio) e por que o nome da mãe torna-se um tabu radical. Durante o julgamento na Fazenda Sempre Verde tomamos conhecimento, da boca de Joca Ramiro, de que a única ofensa que merece a morte seria dizer ‘o nome da mãe’.
Neste sentido, é altamente significativo que o primeiro gesto do novo chefe Urutú Branco, antes mesmo der retomar as andanças do bando pelo chapadão, consiste em deslocar seô Habão (cuja avidez é tão estéril quanto a violência jagunça), encarregando-o de levar um mimo de amor para Otacília. Urutú Branco é, assim, o primeiro chefe que reconhece oficial e publicamente seu vínculo com uma mulher amada. Ele tampouco não fará jamais um segredo da sua predileção pelo ‘amor geral’, pelos prazeres eróticos suaves, demorados e ternos que se distinguem das des-
076: cargas fugazes do estupro e do onanismo praticados pelos outros jagunços.
O narrador insiste em ressaltar essa inovação capital da campanha de Urutú Branco:
Meu direito era contrariar as regras todas do chefe que antes fora; para mim, só mesmo o que servia era à solta a lei da acostumação. (GSV p. 339)
Este direito à inovação é reivindicado imediatamente após o relato dos objetivos – inteiramente inusitados – da nova campanha. Se os jagunços reclamavam-se antigamente de Cristo, da Virgem Maria e de causas messiânicas, Urutú Branco corta-lhes a palavra (aliás hipócrita) retificando:
Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda valia… E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua cama ou rede!… (GSV p. 337)
O bando de Urutú Branco aparece, assim, semelhante aos Lupercas (o bando mítico dos fundadores de Roma, Rômulo e Remo), cuja principal tarefa consistia no rapto das Sabinas a fim de introduzir no mundo estéril dos guerreiros (Roma) a força vital das mulheres.
O final da sexta sequência ressalta muito claramente esta função benfazeja das mulheres cuja presença significa todo tipo de plenitude – tanto material como espiritual. O episódio relata o encontro amoroso de Urutú Branco com as donas do Verde Alecrim, Hortência e Maria da Luz. Estas moças aparecem um pouco como divindades pagãs, deusas da terra, da fertilidade e da plenitude alegre, que emprestam suas terras aos moradores e são, em troca, servidas por estes. No entanto, elas tampouco recusam a ‘terra’ do seu corpo, acolhendo na sua alcova com uma divina liberdade os homens que passam pelo Verde Alecrim. Esta
077: generosidade viabiliza trocas proveitosas para todos, fazendo do Verde Alecrim uma região de harmonia e paz.
O relato de Hortência e Maria da Luz evoca, de um lado, o relato da terra natal de Riobaldo no ‘Monte Alegre’ atrás do ‘Verde’, onde ele passou a infância feliz com a mãe Bigrí, de outro, ele faz lembrar o mito da Idade de Ouro. Este mito, que se tornou um lugar-comum literário, relata a plenitude dos tempos primordiais, quando os homens viviam em harmonia com o resto do universo, sem portanto necessitarem fazer nenhum esforço. As foices e enxadas, diz o relato mítico, trabalhavam sozinhas e os homens precisavam apenas abrir a boca para receber as comidas mais deliciosas. É este mito que ressoa nas determinações aparentemente malucas de Urutú Branco de nada prever, de caminhar sem preparativos – só com a ‘lei da acostumação’ (p. 339) -, esperando que o mundo forneça o necessário.
Com esta mesma disposição, ele prepara seu grande lance – a segunda travessia do Liso do Sussuarão -, onde seu bando encontra tudo e mais do que o necessário: água e sombra, frutos e caça. Recusando-se de levar provisões, Urutú Branco parece conjurar o retorno dos tempos felizes do deus Saturno:
Para que eu carecia de tantos embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as fôices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua […] (GSV p. 383)
O devaneio que faz surgir o mito da Idade de Ouro é o ponto alto, o extremo oposto, do trabalho regrado e assíduo pelo qual o homem reconhece sua finitude e ao mesmo tempo que faz recuar suas limitações. Esta medida que Urutú Branco procura desesperadamente no fundo dos seus excessos, aparecerá na figura do fazendeiro Ornelas.
078: As ‘alturas’ de Urutú Branco e seu encontro com a Lei Soberana
Os excessos ‘malucos’ com os quais Urutú Branco redescobre ou reiventa a lei dos ‘antigos’ – isto é, a violência destruidora e fertilizante dos guerreiros míticos – condicionam uma exaltação quase delirante do chefe. Este tem a sensação de ser carregado para as alturas, de ser mais alto do que ele mesmo, de se ultrapassar a si mesmo. Sua ‘bizarrice’ impressiona o bando que se submete incondicionalmente ao seu mando. Urutú Branco surpreende-se com tanta docilidade, já que ele mesmo não compreende claramente o sentido dos seus próprios gestos impulsivos.
Sua aceleração exaltada encontra um limite na parada da Fazenda da Barbaranha, do fazendeiro Ornelas*. É nesta parada que Urutú Branco, que existia ‘em altos’, topa com um homem que irradia dignidade e cuja ‘soberania’ deixará uma impressão marcante:
Apreciei a soberania dele, os cabelos brancos, os modos calmos. Bom homem, abalável. (GSV p.342)
* Cujo nome completo inclui Josafá:
Significado do Nome Josafá Josafá: Significa “Jeová (Deus) é juiz” ou “Reinou em Judá”. Josafá ou Josefat é a forma abreviada do nome Jeosafá, surgiu a partir do hebraíco Yehôshaphat, que significa literalmente “Jeová julga” ou “Jeová é o Juiz”.
Significado do nome Josafá – Dicionário de Nomes Próprios
www.dicionariodenomesproprios.com.br/josafa/
O chefe exaltado percebe imediatamente a autoridade (soberania) do fazendeiro, mas considera o velho de cabelos brancos ainda ao modo dos jagunços – como homem indefeso e vulnerável (abalável).
Ao sentar à mesa, no entanto, Urutú Branco é como que atingido pelas ‘ponderadas maneiras’ do ‘cidadão que representava’ (p. 343). E, repentinamente, o chefe sem limites parece esbarrar em uma barreira invisível, sentindo-se incapaz de aceder à delicadeza destas maneiras comedidas e refinadas. Mergulhando em uma espécie de desamparo diante desta outra maneira de ser, o chefe destemido sente voltar o medo. Tudo se passa como se Urutú Branco tivesse se encontrado com seu outro, com um princípio diametralmente oposto ao seu próprio.
079: Urutú Branco – o rei do ‘palpite’ e do ‘faro’, isto é, dos impulsos quase instintivos, cuja travessia maluca visa desvendar a verdade maligna da existência jagunça – encontra-se, de repente, face a face com o ‘cidadão’ Ornelas – ‘soberano’ na arte de representar um papel social. Em outras palavras, ao chefe de jagunço que vive de maneira imediata os seus desejos inconscientes e pulsionais, responde um ‘homem sistemático, sestronho’, modelo da moderação que sabe suspender e camuflar sua emoções espontâneas em função das exigências da pequena comunidade (a família e a casa) que ele representa simbolicamente.
O diálogo destes dois homens é vivido por Urutú Branco como uma luta, o enfrentamento do homem valente, sutil e forte com o homem justo cuja força e soberania consiste essencialmente na dignidade e na abstração que ele é capaz de fazer de exigências e de vaidades pessoais. Urutú Branco fica desconcertado de ver este velho comer quase nada, abstendo-se ao mesmo tempo de vangloriar-se conversas de proezas passadas. O que mais espanta o chefe, que se sentia transportado às alturas, é a sensação de vaidade ao compreender que seô Ornelas nunca tenha ouvido falar no nome de Hermógenes, nem sequer no de Zé Bebelo. Todos os esforços de Urutú Branco, suas artes de astuta ‘cobra voadeira’, aparecem assim à luz da ilusão e da irrealidade:
Ao que – isso era um fato possível? Ele não sabia. De Zé Bebelo, nem do Ricardão, nem do Hermógenes, ele não sabia nem a preposição. Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais era ilusão de haver e não se saber. (GSV p. 346)
A distância ‘ponderada’ de seô Ornelas diante das vaidades do mundo o faz aparecer como o digno representante de vida regrada segundo leis que ultrapassam o querer impulsivo – aqueles impulsos que constituem, em contraste, o elemento de Urutú Branco. ‘Eu queria tudo, sem nada’ – comenta o narrador introduzindo o devaneio da Idade de Ouro (p. 382-3).
080: A representação dos limites simbólicos
A sociabilidade cerimoniosa de seô Ornelas modera e apaga o impacto imediato dos sentimentos e das emoções. Às ‘artimanhas’ do sentir impulsivo opõem-se as ‘artes’ da conversação civilizada. Urutú Branco parece se perguntar se a atitude de alguma maneira abstrata deste representante de artifícios culturais (dos quais ele se sente incapaz) possa pertencer a um homem vivo. São as emoções fundamentais da vida que ele põe à prova ao mostrar, de maneira provocante, seu interesse pela menina-neta do fazendeiro:
Mas, nos tons do velho Ornelas, eu tinha divulgado um extravago de susto, recuante, o leve medo de tremor. Isso foi o que me satisfez. Aquele homem, visconde e portoso em tudo, ah, pelo mulheriozinho de sua casa ele não encobria o comprado, eh, sua família dele. (GSV p.345, grifos nossos)
A cena mostra que Urutú Branco e o velho Ornelas são figuras de deois tipos diferentes de chefe. Ao chefe de jagunços opõe-se o chefe de família. Na cena seguinte, espécie de sonho acordado no qual Urutú Branco cogita a possibilidade, perfeitamente real, de raptar a menina, o chefe selvagem termina se dobrando à Ordem representada com tanta dignidade por seô Ornelas. Ele substitui ao desejo impulsivo do rapto um vínculo simbólico e legítimo com a menina e com sua família.
Menina, tu há de ter noivo correto […] Não vou estar por aqui, no dia, para festejar. Mas em todo o tempo, vocês, carecendo, podem mandar chamar minha proteção […] – igual eu fosse padrinho legítimo em bodas! (GSV p.346)
A imposição física e imediata que caracteriza a existência de jagunços cede aqui a um laço simbólico, criador de vínculos legítimos que regulam as relações entre gerações (pais-filhos-netos) e categorias distintas de parentesco (filiação biológica e simbólica).
081: Riobaldo encontra então na casa de seô Ornelas o que ele deixou de encontrar tanto em seu próprio padrinho (que falhou em legitimar sua paternidade), como com os ‘pais’-chefes – Zé Bebelo e Joca Ramiro. Na relação fantasmática e subjetiva com o Menino-Diadorim não se realiza nenhum vínculo objetivo, isto é, definido segundo regras válidas universalmente. A amizade com Diadorim permanece ‘minha neblina’ – relação enigmática que escapa a toda determinação. Frustra-se, assim, a esperança que surgira no encontro com o Menino e que se renovou no reencontro com Reinaldo:
O que entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. (GSV p. 109)
Quando Diadorim expressa mais tarde o desejo de que Riobaldo fosse um parente seu, este já sabe que isto é impossível: ‘Parente não é o escolhido – é o demarcado’ (p. 323) -, pensa ele, com tristeza resignada.
Saindo da casa de seô Ornelas, Urutú Branco parece esforçar-se para introduzir nos costumes da violência jagunça as figuras da representação social que ele percebeu no velho fazendeiro. Nestes jogos, cada pessoa não age apenas segundo sua própria intimidade, mas representa um papel social. A perturbação de Urutú Branco frente ao fazendeiro deve-se, aliás, a sua sensação aguda de não saber responder ‘como em teatral’ (p.344), isto é, segundo conveniências e regras artificiais, determinadas pelas relações simbólicas da sociedade – regras estas que visam precisamente atenuar os choques imediatos entre os indivíduos com seus desejos e impulsos subjetivos.
Nos dois episódios imediatamente subsequentes à saída da Fazenda Barbaranha – os encontros com Constâncio Alves e com o Homem do Cavalinho (p. 355 ss. e 361ss.) – , Urutú Branco esforça-se para encontrar argumentos alta-
082: mente artificiais visando atenuar e suspender seus decretos impulsivos que determinaram espontânea e gratuitamente a morte dos dois viajantes pacíficos. Riobaldo, o menino sem pai legítimo, começa a dar-se as suas próprias regras. Ele renasce como outra pessoa – fato que se anuncia na cena da mulher em trabalho de parto (p. 353), a quem ele dá não somente dinheiro, mas também um nome para o seu filho. Este nome é o seu próprio – Riobaldo.
No fundo da desordem, Riobaldo descobre a exclusão da mulher e a negação do corpo que impedem um reconhecimento do outro sexo e da própria sexualidade. Os ‘pais’ violentos e perversos do sertão recusam às mulheres o seu lugar devido. Perturbando, assim, o sistema de relações, eles deixam de ser verdadeiros pais (i.e. representantes simbólicos da paternidade) e todos os vínculos regrados desmoronam. O que resta é a mistura inextrincável entre as coisas e uma luta permanente de todos contra todos (aquilo que Hobbes denomina de ‘estado de natureza’).
Neste mar de paixões imediatas, Riobaldo navega – travessia perigosa nos ‘fundos fundos’ do sertão e da alma humana – a fim de descobrir, paradoxalmente, uma regra que venha limitar os excessos da paixão:
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era só uma coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo […] a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num papel… (GSV p.366)
Este papel é magnificamente assumido por seô Ornelas, cujas maneiras ponderadas parecem imprimir um novo rumo à campanha de Urutú Branco.