/ROSIANA 083 – Os catrumanos e a visão apocalíptica da miséria

ROSIANA 083 – Os catrumanos e a visão apocalíptica da miséria

O sertão comparece, neste romance, como o substrato que fundamenta a fabulação ficcional. A partir daí, e desenvolvendo os caminhos possíveis, o escritor chega até a vislumbrar, receoso, um rumo de transformação assustador. Em bela página, que suponho única no romance brasileiro, Guimarães Rosa constrói uma visão apocalíptica com as virtualidades da miséria. Partindo do contato com os catrumanos, estágio mais baixo de vida humana que os jagunços encontram, mesmo num meio onde predominam os ‘mínimos vitais’, Riobaldo começa a refletir sobre o ponto a que poderia chegar o miserável se a ordem das coisas fosse rompida. Diz então: ‘De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo!’ Intui que a miséria excessiva está aquém de qualquer possibilidade de convivência, de qualquer padrão moral, de qualquer romantização: ela é feia, suja, perigosa. Sente a ânsia do miserável pela posse, pelo gozo imediato, mesmo ao preço da destruição total. E a partir daí desenrola sua visão, que lembra a das maltas assoladoras dos fatos franceses de 1789: ‘E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mís e centos milhentos, vinham se desentocando o formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer (67)
usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteiras de Januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem – Deus me diga?’ Este quadro fantasmagórico e tremendo mostra a plebe rural desencadeada, monstro coletivo que avança para tomar tudo o que lhe foi negado por séculos de miséria e opressão. O horror da visão leva o narrador a abstrair os conteúdos dela, para com eles construir uma alegoria negativa: ‘Nem me diga o senhor que não – aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade.’ ” (68)
GALVÃO, Walnice Nogueira.
(1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva. pp. 67-68.