/ROSIANA 088 – A riqueza e a complexidade do universo linguístico de Rosa em Grande sertão

ROSIANA 088 – A riqueza e a complexidade do universo linguístico de Rosa em Grande sertão

“Por um lado, subjaz a esse discurso um parentesco muito grande com o falar sertanejo(ou falares sertanejos); o leitor com ele familiarizado nota-o imediatamente.” (71)

“Acontece, todavia, que Guimarães Rosa explora ao máximo as possibilidades do modelo, mediante este salto definitivo que representa a escolha do narrador-personagem. Tudo, então, se torna convincente como linguagem. Fica eliminado o contraste canhestro, tão praticado pela prosa regionalista, entre o diálogo que reproduz o falar e o não-diálogo que reproduz a prática letrada do autor.” (71)

“A isso, Guimarães Rosa escapa colocando a totalidade do romance num só fluxo de fala.” (72)

“Mas, por outro lado, o discurso de Grande Sertão: Veredas escapa também dos limites do falar sertanejo. É bem verdade que existe em seu vocabulário um farto aproveitamento de regionalismos, e não só sertanejos;” Palavras que parecem estranhas e inventadas (‘vuvú vavavá de conversa ruim’) estão consignadas em dicionários: (72)
vuvu é um regionalismo popular de Minas Gerais significando briga, conflito, confusão evavavá é brasileirismo para barulho de vozes, algazarra, agitação, alvoroço, atropelo, azáfama. (73)

Também aproveita extensamente arcaísmos, característicos da língua brasileira do sertão, que às vezes parecem inventados: ‘que joliz havia de ser era se meter um balaçõ no baixo da testa do Hermógenes’, em que joliz parece uma combinação do francês joli + feliz mas é um arcaísmo registrado em dicionário como alegre, amável. (73)

“Mas não é menos verdade que há também palavras inventadas pelo autor, embora muito menos do que supõe o leitor desavisado, e estrangeirismos da autoria dele, tanto de línguas vivas como de línguas mortas.” (73) P.ex. esmarte.

Usa da liberdade proporcionada pela língua de alterar a afixação e de fazer novas derivações, o que ocorre em outros textos e também na vida real, p.ex. “No cearense Dona Guidinha do Poço ocorrem sem estranheza talentuda, musculenta, folhiço, falaço, bondadosa, tristor, acelêro, etc.” (73)

“Tudo isso aponta para um escritor que ama as palavras, que é leitor de dicionários, e que se move num universo linguístico – contemporâneo e passado – muito mais amplo do que aquele a que estamos habituados.” (73)

Guimarães Rosa tem portanto, um pé na linguagem do sertão e o outro pé na linguagem do mundo. Se, de um lado, explora as possibilidades do falar sertanejo, de outro explora campos linguísticos eruditos que nada têm a ver com o sertão. Se, de um lado, a matéria que põe em jogo é a matéria do sertão, de outro lado extrai as consequências máximas do imaginário do sertão; assim, coisa inédita na literatura brasileira, transforma seu romance numa demanda; e permite que as andanças dos jagunços ganhem visos de proezas de cavaleiros andantes, de luta do bem contra o mal. Se, de um lado, seu romance é o mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira, por outro lado também é a mais profunda e mais completa idealização da mesma plebe. Se, por um lado, o falar sertanejo permite e justifica que o livro se arme como uma discussão metafísica sobre Deus e o Diabo, aceita-se esta discussão porque esses são conceitos que estão ao alcance do narrador-personagem para efetuar a tentativa de demarcar os limites entre a liberdade humana e a necessidade imposta pelo sistema de dominação. Mas, por outro lado, o contingente erudito da linguagem usada pelo escritor permite e justifica que Deus e o Diabo sejam, ao fim e ao cabo, concepções muito mais requintadas e que derivam tanto de Heráclito como do budismo.” (74)

“A inegável sedução da linguagem carrega nela, a um só tempo, o sentir empático do escritor face ao homem do sertão e seu viver, e uma vasta experiência na tradição letrada que o escritor não põe em dúvida. Seguramente, o pé esquerdo de Guimarães Rosa está solidamente fincado no sertão; mas não menos seguramente, seu pé direito está alhures.” (74)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
(1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.