Se o amor é cego, a paixão é surda
Dizem que o amor é cego. Se é assim, o que dizer da paixão? É a insensatez absoluta, a alegria desmedida, a entrega total, a vida fazendo sentido. Só não peça ao apaixonado para pensar, para refletir, para ouvir. Aí já seria pedir demais. Escrever sobre futebol apresenta esse desafio. Acho que vale a pena tentar. Pois o futebol também pode servir para revelar, às vezes de forma dramática, quem somos nós, nossos valores e obsessões.
Fica mais fácil usando um exemplo. A seleção de 70. Não há a menor dúvida de que foi um dos maiores, senão o maior esquadrão de todos os tempos. Depois de dois ou três copos, quando começa o eterno debate sobre futebol arte, não há quem não lembre dos passes de Gérson, das arrancadas de Jairzinho, da inteligência de Tostão, dos chutes e dribles de Rivelino, da genialidade absoluta de Pelé, isso para não falar em Paulo César, Clodoaldo… Esses onze seriam a prova cabal de que a técnica e a habilidade estariam acima de tudo. Parêntesis. Sou apaixonado pela seleção de 70 desde os meus dez anos de idade, quando assisti boquiaberto pela televisão preto e branco lá de casa a conquista do tricampeonato. Meu time de botão tinha coladas as cabeças dos jogadores, devidamente recortadas dos jornais.
Fecha parêntesis. Jamais uma seleção foi tão preparada para uma copa do mundo quanto a seleção brasileira em 1970. Houve um planejamento científico de adaptação à altitude seguindo os estudos do maior especialista no assunto à época, o capitão-de-corveta Lamartine Pereira. Um dos nossos preparadores físicos, Cláudio Coutinho, havia feito estágio no laboratório espacial da NASA. A equipe treinou três meses e meio antes de estrear no México. Claro que de nada adiantaria submeter um bando de cabeças-de-bagre a toda esta preparação. Mas também não faz sentido tentar pensar 70 na chave absoluta da oposição futebol-arte x futebol-força e sim com ginga dialética: futebol-arte-força. A esta altura o papo no bar está pegando fogo. Como assim? A turma me exige uma comprovação, o que, felizmente, é impossível quando se trata de futebol.
Mas há elementos para pensar. Dos dezenove gols do escrete canarinho, muitos deles obras-primas para sempre eternizadas pelo videotape, catorze, ou seja, mais de 70%, foram feitos no contra-ataque. O Brasil de 70 venceu todos os seus jogos no segundo tempo. Do primeiro jogo, em que saímos de 1×1 no primeiro tempo para uma vitória acachapante de 4×1 sobre a Tchecoeslováquia até o último, em que uma Itália cansada depois de uma desgastante semifinal com a Alemanha de Beckenbauer conseguiu resistir ao Brasil na primeira etapa (1×1) para depois ser arrasada no segundo tempo. Lembrando que a final, assim como o Brasil e Inglaterra ou o jogo contra o Peru, foi disputada não somente na altitude, mas sob o sol de meio-dia. Ou seja, quem estava mais preparado fisicamente levava uma vantagem fundamental. Tá certo, quem sou eu para ousar dizer isso?
E que tal Gérson, o “canhotinha de ouro”, nosso camisa 8, o maestro daquele time? Quando ele foi perguntado sobre 70 pelos pesquisadores Marco Antonio Salvador e Antonio Jorge Soares, sua resposta, mencionada no ótimo A Memória da Copa de 70(Campinas: Autores Associados, 2009), foi uma verdadeira virada de jogo. Ao invés de exaltar a qualidade do time, ele demonstrou ter visão também fora de campo. Salientou o planejamento feito após nossa desastrosa participação na Copa da Inglaterra em 1966. Para ele, 70 foi fruto de um “trabalho” de quatro anos. Enfatiza o treinamento e o estudo prévio de cada um dos adversários do Brasil. Sabem o golaço de Carlos Alberto, aquele petardo que fuzilou Albertosi e decretou o nosso quatro a um? Pois bem, não foi somente arte. Foi uma jogada pensada por Zagallo a partir da observação do time italiano e treinada antes da partida. Nas palavras de Gérson:
“Nós tínhamos na época, a partir de 69, um esquema e variações dentro desse esquema. Por exemplo: nós trabalhamos uma jogada contra a Itália, que era atrair o lateral-direito, pois sabíamos, através dos taipes dos jogos anteriores, que a defesa italiana acompanhava homem a homem. Então o Zagallo montou um esquema de tirar o lateral deles dali, com o Rivelino trazendo ele para o meio e abrindo o espaço (…) Ali no espaço vazio, entrava o Tostão puxando o quarto-zagueiro, o Pelé puxaria o outro zagueiro central, o Jairzinho entraria pela meia-direita, onde estava vazio, puxando o último lateral, abrindo uma avenida, de onde Carlos Alberto, inclusive, fez gols. Isso foi uma tática criada pelo Zagallo a partir de 70.”
Silêncio no bar. Já tem gente querendo me bater. Afinal, vocês já tentaram conversar com um apaixonado? Imaginem conversar com vários ao mesmo tempo. Se o amor é cego, a paixão costuma ser surda. Mas vamos tentar essa missão quase impossível nessa coluna semanal. Usar o futebol para pensar.