Foto: Rio São Francisco, ao fundo a cidade de São Francisco. Foto: Marcos Alvito
SETE RIOS DO GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Um presente preparado por ZéBebeloAlvito para o Querido Bando do Rosa
O narrador e protagonista da história tem rio no nome. Ele mesmo admite ter uma natureza fluvial, de fluxo incessante: “Em mim, apelido quase que não pegava. Será: eu nunca esbarro pelo quieto, num feitio?”. O primeiro grande fato de sua vida, acontecido no encontro com o Menino, deu-se na travessia de um rio. Na obra os rios são como divindades, por isso não se diz que um rio tem a cor preta ou morena, se diz que ele é preto ou moreno. Todo curso d’água, sobretudo a vereda, é sagrado e um pequeno córrego (“corguinho”) é capaz de dar uma ordem a Riobaldo, que não ousa desobedecer. O rio Pandeiros “tem cachoeiras que cantam” e suas águas são chamadas de “santas”. Sem dúvida o rio é a metáfora central do livro e da própria vida, Rosa retoma Heráclito ao dizer que também as pessoas nunca estão terminadas, estão sempre se transformando:
“O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.”
Por tudo isso e muito mais que não cabe agora dizer, resolvi elaborar este humilde presente para vocês acerca de sete rios do Grande sertão: veredas. Os sete rios são:
de-Janeiro
São Francisco
das Velhas
Abaeté
Paracatu
Carinhanha
Urucúia
Todos eles podem ser visto no mapa que ilustra esta postagem
de-Janeiro
O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de- Janeiro em canoa – ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto, mais alto, onde não dá febre de maresia. A descida do barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia vem e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. Dezembro dando, é certo.
Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. E é rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses – em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto, exato. Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção para o mato da beira, em pé, paredão, feito à régua regulado. – “As flores…” – ele prezou. No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo; porque se estava no mês de maio, digo – tempo de comprar arroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou. Nhambu?
São Francisco
E tanta explicação dou, porque muito ribeirão e vereda, nos contornados por aí, redobra nome. Quando um ainda não aprendeu, se atrapalha, faz raiva. Só Preto, já molhei mão nuns dez. Verde, uns dez. Do Pacari, uns cinco. Da Ponte, muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E uns sete por nome de Formoso. São Pedro, Tamboril, Santa Catarina, uma porção. O sertão é do tamanho do mundo.
Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão.
“O Rio Paracatu está cheio…” alguém disse. Mas Zé Bebelo atalhou: – “O São Francisco é maior…”
Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-janeiro, quase só um rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu pedi, ansiado.
o canoeiro cantou, feio, moda de copla que gente barranqueira usa: “… Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar um gole d’água, mas pedir tua benção…” Aí, o desejado, arribamos
na outra beira, a de lá.
Nisto que na extrema de cada fazenda some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros
Assim um uso correntio, apontar os dentes de diante, a poder de gume de ferramenta, por amor de remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco – piranha redoleira, a cabeça-de-burro.
Olhe: légua e outra, daqui, vereda abaixo, tigre canguçu estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, um que foi desse rio de São Francisco, foguista de vapor; depois cá herdou uns alqueires.
A guerra era a igual. E ali dava de se sentir o faltoso e o imperfeito, como no mais acontece, em quantidade maior. O São Francisco não é turvo sempre?
Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes.
E, no mais, nem ouvia, apesar de toda a cortesia de respeito, quando se falava em Joca Ramiro, no Hermógenes e no Ricardão, em tiroteios com os praças e na grande tomada, por quinhentos cavaleiros, da formosa cidade de São Francisco – que é a que o Rio olha com melhor amor.
Somente que me valessem, indas que só em breves e poucos, na idéia do sentir, uns lembrares e sustâncias. Os que, por exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigri minha mãe me ralhando; os buritis dos buritis – assim aos cachos; o existir de Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o manuelzinho-da-croa; a imagem de minha Nossa Senhora da Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar água na praia do Rio de São Francisco, com bilhas na rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tristezas; e a minha Otacília.
Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme…
Das Velhas
Mas o Reinaldo me instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegrias do ar em meu pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade.
Mistério que a vida me emprestou: tonteei de alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas – percebi para sempre. O manuelzinho-da-croa.
Reprazia, para mim, um dia reverter para o rio das Velhas, cujos campais de gado, com coqueiral de macaúbas, meio do mato, sobre morro, e o grande revôo baixo da nhaúma, e omimoso pássaro que ensina carinhos – o manuelzinho-da-croa…
Abaeté
Descemos por umas grotas, no meio de serras de parte-vento e suas mães árvores. O pongo de um ribeirão, o boqueirão de um rio. O Abaeté não era; se bem fosse que parecia: largo rio Abaeté, no escalavrado, beiras amarelas.
Mas, então, quando se estava de volta, m’embora vindo, peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando léguas para cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O senhor sabe – o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu já pensava.
Paracatu
Rio Paracatu
Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas… É vida!…
“É briga enorme… É um homem… Vou indo pra longe,para a casa de meu pai… Ah, é um homem… Ele desceu o Rio Paracatu, numa balsa de buriti…”
“O Rio Paracatu está cheio…” alguém disse. Mas Zé Bebelo atalhou: – “O São Francisco é maior…”
entre o Fazendão Felício – que é na beira da estradamor para esse poente todo – e o Porto velho da
Remeira, no rio Paracatu – aonde, menos dia, mais dia, todo o mundo acaba vindo chegando.
A virar o ar, viemos; em caminho não se descansou um dia. Agora eram os brejos da beira do Paracatu.
E já se estava antefrente do Paracatu – que também recovava o pouco e escasso. Esbarrei não, nem examinei o adiante. Demiti meu cavalo n’água. Os outros me acompanharam. Assim atravessamos.
Carinhanha
Rio Carinhanha
O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas… É vida!…
Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa… Dali para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e doPiratinga filho do Urucuia – que os dois, de dois, se dão as costas. Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes. Por lá, sucuri geme.
Mesmas vezes eu ria. Homem dorme com a cabeça para trás, dois dedos no queixo. Era o Pitolô. Um Pitolô, sei lá, cabra destemido, com crimes nos maniçobais perto para cima de Januária; mas era nascido no barranco. No Carinhanha, rio quase preto, muito imponente, comprido e povooso. Ademais que ele contava casos de muito amor; Diadorim às vezes gostava. Mas Diadorim sabia era a guerra.
Urucuia
Rio Urucuia à altura da cidade do mesmo nome. Foto: Marcos Alvito.
Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem,
fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia.
O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas,
almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta.
De em de, sempre, Urucuia acima, o Urucuia – tão a brabas vai… Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do chão um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado foge de lá, por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador –donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas… É vida!…
Beiras nascentes do Urucuia, ali o poví canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no
revoredo, o saci-dobrejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo quente, a rola-vaqueira… e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas.
Dali para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do Piratinga filho do Urucuia – que os dois, de dois, se dão as costas. Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes. Por lá, sucuri geme.
Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim, depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada. Viemos pelo Urucuia. Meu rio de amor é o Urucuia.
Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia.
– “Casa-comigo…” – Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de mim os olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era de sentimento. Ou não era? Daquele curto lisim de dúvidas foi que minou meu mais querer. E o nome da flor era o dito, tal, se chamava – mas para os namorados respondido somente. Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem: – “Dorme-comigo… “Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de mim e eu dela gostei. Ah, a flor do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo de menino pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar.
Fiquei esperando o que ela desse em resposta. Nem nada não acreditava? Mas Otacília mudou para séria a feição do rosto, não queria mais de minha vida só assim meiamente indagar. Os de todos lindos olhos dela estavam me assinalando o céu com essas nuvens. Eu tinha renegado Diadorim, travei o que tive vergonha. Já era para entardecendo. Vindo na vertente, tinha o quintal, e o mato, com o garrulho de grandes maracanãs pousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o sol dourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas peças nuvens sem movimento. Mas, de parte do poente, algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, como que com
eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucuia, e nesse céu sertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar raias feito de ferro quente e sangues.
Da outra banda, João Vaqueiro e o Fafafa fossem levando os cavalos para um lugar para cima da barra, no Urucuia, chamado o Olho-d’Agua-das-Outras. Lá a gente se encontrava.
O sertão nunca dá notícia. Eles serviram à gente farta jacuba. – “Por onde os senhores vieram?” – o patrão indagou. – “Viemos da Serra Rompe-Dia…” – respondemos. Mentiras d’água. Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de São Felipe. O barqueiro não acreditou, deu o zé de ombros. Mas levou a gente travessia fácil, frenteando a boca do Urucuia. Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas. E ainda por ele entramos, subindo légua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em caminho para se encontrar com o sol. E descemos num pojo, num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor – roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-de-sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi meus Gerais!
Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes.
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele.
Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci – aquele Siruiz – eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor:
Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p’ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.
Urucuia – rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão…
Assim que, então, os de lá – os judas – não deviam de ser somente os cachorros endoidecidos; mas, em tanto, pessoas, feito nós, jagunços em situação. Revés – que, por resgate da morte de J oca Ramiro, a terrível que fosse, agora se ia gastar o tempo inteiro em guerras e guerras, morrendo se matando, aos cinco, aos seis, aos dez, os homens todos mais valentes do sertão? Uma poeira dessa dúvida empoou minha idéia – como a areia que a mais fininha há: que é a que o rio Urucuia rola
dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno.
Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a
caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti
revira altas palmas.
Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucuia é um rio, o rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas, marimbus, a sombra separada dos buritizais, ele. Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um buraquinho d’água mata minha sede, uma palmeira só me dá minha casa. Casinha que eu fiz, pequena – ô gente! – para o
sereno remolhar. O Urucuia, o chapadão derredor dele. Estas árvores: essas árvores. Conversa, Zé Bebelo: conversa, com as marrecas chocas, no meio das varas do juncal. Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre. O que eu fui, o que eu fui.
Aonde é que jagunço ia? À vã, à vã. Tinha minha vontade, de estar em toda a parte. Mas, quadrando que primeiro, mais para o norte: para o Chapadão do Urucuia, aonde tanto boi berra. Que eu recordava de ver o rio meu – beber em beira dele uma demão d’água… Ah, e essas estradas de chão branco, que dão mais assunto à luz das estrelas. Eu pensei, eu quis.
Vai, viemos, viemos. Esses dias em ondas. Sei só as encostas que subi, a festo. O Chapadão: céu de ferro. E era a lua nova. Aquelas pedras brancas, que de noite tanto esfriam. As caraíbas estavam dando flor. Por ponto de meu corpo, medi o enrolar dos longes ventos. Aí se viu, em seus couros, um vaqueiro pessoalmente. A esse, perfiz: – “Amigo o amigo, aqui é aqui?” Ao que ele confirmou: – “Aqui, o senhor, meu senhor, os senhores estão nos andares do rio Urucuia…”
Desgarrei da estrada, mas retomei meus passos. O senhor segurado não acha? Ao que tropecei, e o chão não quis minha queda. De hoje em dia, eu penso, eu purgo. Eu tive pena de minhas velhas roupas. E rezo. Para a minha reza, Deus dá as costas, mas abaixa meio ouvido. Rezo. Queria ver ainda uma igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino, no estado do Chapadão. Como que algum santo ainda não há de vir, das beiras deste meu Urucuia?
Lampeiro, o Quipes entrado em boas roupas, montado num bom cavalo amarelo, pitando maço de cigarros de fábrica; rico feito um Mascarenhas. Arte que puxava um burro e uma burra, adestros, e tinha comprado coisas: até trempe e caçarolas, e açúcar real e chocolate em pó. Ao fagueiro, pujante, mesmo. – “Ara, veja, como passou? E dond’ é que soube de nós?” – eu em atiço perguntei. – “Ao que pois, Tatarana: em faltas de notícia, formei meu pião por aí… Já estive em Ingazeiras, na Barra-da-Vaca, no Oi- Mãe, em Morrinhos… O Urucuia não é o meio do mundo?” – assim ele se temperou.
Tirante que não pedi conselhos. Mas não houvesse; mas, pedir conselho – é não ter paciência com a gente mesmo; mal hajante… Nem não contei meus projetados. O Rio Urucuia sai duns matos – e não berra; desliza: o sol, nele, é que se palpita no que apalpa. Minha vida toda… E refiro que fui em
altos; minha chefia.
Afirmo que não colhi a grã do que ele disse, porque naquela hora as idéias nossas estavam descompassadas surdas, um do outro a gente desregulava. E o tom mesmo de sério que ele
impunha rumou meu pensamento para outros pontos: o Urucuia – lá onde houve matas sem sol nem idade. A Mata-de-São-Miguel é enorme – sombreia o mundo… E Diadorim podia ter medo? –
duvidei.
Aí eu aí desprezava o ofício de jagunço, impostura de chefe. Sei quem é chefe? Só o gatilho de arma-de-fogo e os ponteiros do relógio. Sensato somente eu saísse do meio do sertão, ia morar residido, em fazenda perto da cidade. O que eu pensei: … rio Urucuia é o meu rio – sempre querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e quando; mas ele vira e recai claro no São Francisco…
– “… Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia… O Urucuia, perto da barra, também tem belas croas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os
pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garça rosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher… E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?…” Podia ser? Impossivelmente
O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo. Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta… O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?… Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.
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