The ball is round, Capítulo 2: O jogo mais simples: a Grã-Bretanha e a invenção do futebol moderno
(da série Leituras para pensar o futebol)
No primeiro capítulo, vimos que havia uma forte tradição secular nas Ilhas Britânicas, desde a Idade Média, de um jogo turbulento, praticamente sem regras e extremamente violento, praticado sobretudo pelos camponeses. Este jogo, que podemos chamar de futebol das multidões, estava em forte declínio no início do século XIX. De um lado a religião Puritana condenava o jogo como ímpio e proibia toda e qualquer atividade aos domingos. Os metodistas criticavam a desordem social, a periculosidade e a violência descontrolada do futebol. A nova classe dos industriais e os homens de negócio em geral temiam pela propriedade e pela disciplina de trabalho. Até mesmo os artesãos especializados, desejosos de marcar uma distância social entre si e o proletariado rural ou a nova massa de trabalhadores chegada às cidades, condenavam o jogo como bárbaro e idiota. Em inúmeras cidades e regiões o futebol será proibido por lei. Com uma tal gama de opositores, não é de se estranhar que ao final do século XIX o futebol informal e tradicional estivesse não somente em declínio mas verdadeiramente desaparecendo.
O futebol, como sabemos, sobreviveu, mas foi dotado de regras e se transformou em um esporte. Mas como isso aconteceu? Curiosamente, ele foi preservado e aperfeiçoado em instituições extremamente elitistas: as “public schools”. Ao contrário do que parece dizer o nome, eram escolas privadas para os filhos da aristocracia e da alta burguesia. No início do século XIX elas eram instituições problemáticas, brutais e ocasionalmente anárquicas. Os filhos da elite não respeitavam professores provenientes de classes inferiores e havia um estado contínuo de guerra civil, em que da indisciplina logo se passava à rebelião e à ocupação da escola. Em 1797 o exército teve que ser chamado para aplacar uma revolta em Rugby e em 1818 a milícia teve que entrar em Winchester com as baionetas afixadas. Aliás, era a sexta visita que faziam à escola em cinquenta anos. Os “meninos” gostavam de matar pássaros cantantes, caçar patos, jogar pedras, matar os cachorros da vizinhança e arrancar os olhos dos cavalos que puxavam carroças. E de brigar, obviamente. Entre si e também com as pessoas da localidade mais próxima: marinheiros, açougueiros e trabalhadores em geral. Foi neste processo de “mistura” com as classes populares que os rapazes das “public schools” descobriram o futebol tradicional, jogado nas ruas, que com seu caráter anárquico e violento, logo caiu no gosto dos estudantes.
Foi assim que o futebol logo se tornou uma febre entre os alunos das escolas mais exclusivas da Inglaterra. Em Eton, a escola mais tradicional e prestigiosa do país, já se jogavam duas formas de futebol desde a metade do século XVIII. Em cada escola havia uma regra própria, inclusive adaptando o jogo ao espaço disponível. Concomitantemente a isso, surge uma proposta de reforma do ensino das “public schools”, formulada por Thomas Arnold, que foi diretor de Rugby entre 1828 e 1848. Ele queria transformar aqueles meninos através de disciplina, orações e aprendizagem racional, literalmente civilizando-os e dotando-os de uma masculinidade mais apropriada a cavalheiros do Império. Falar é fácil, mas como fazê-lo?
Foi aí que entrou o futebol. Não havia como educar os rapazes sem ter um mínimo de controle sobre eles. Quando a direção da escola e os professores começaram a organizar e coordenar os jogos, passaram a estar novamente no topo de uma hierarquia, que tinha ainda os alunos mais velhos e terminava nos calouros. Cada um com seu papel. Ao mesmo tempo, o futebol desgastava os estudantes, queimando seu excesso de energia e hormônios. Sem o dizer, os professores também acreditavam que o exercício físico regular poderia ter um efeito profilático contra o que eles viam como males, mas deles não falavam, o homossexualismo e a masturbação.
Esta pedagogia da bola, digamos assim, encontrava apoio no ambiente cultural da época vitoriana. Havia toda uma preocupação com os exercícios físicos, que à época eram associados à saúde mental e moral. Nações saudáveis precisam de elites saudáveis, era o que se pensava. Isto era chamado de “Cristandade Muscular”. Jogar esportes de equipe era visto como a melhor forma de se alcançar a tripla saúde: física, mental e moral. Estas disputas permitiriam misturar e unir as classes que compunham a elite: a aristocracia fundiária e a alta burguesia. Mas, sobretudo, os jogos eram vistos como capazes de modelar o caráter. Havia também quem destacasse o processo de endurecimento, adquirindo uma certa rudeza considerada necessária à classe dominante vitoriana em sua tarefa de conquista imperial e hegemonia global. Ao mesmo tempo, o esporte seria capaz de ensinar lições essenciais de cooperação e competição essenciais a esta elite.
Sendo assim, na métade do século XIX o futebol era parte central do currículo das “public schools”. Em cada escola, as regras já estavam razoavelmente estabelecidas, embora sem ter sido colocadas por escrito. A primeira escola a fazer isso será Rugby em 1845. Logo os meninos deixavam de ser meninos, se formavam e iam para as principais universidades do país, como Oxford e Cambridge, bem como para as Forças Armadas. Para lá eles levaram seu entusiasmo pelo esporte e cada um levou na cabeça a regra de sua escola. Aqui havia um problema a resolver: com que regra se iria jogar quando havia jovens de escolas que jogavam sobretudo com os pés como Harrow e Eton e outros de escolas que jogavam sobretudo com as mãos como Rugby e Marlborough? A Universidade de Cambridge formulou uma primeira tentativa de regra geral do jogo ainda em 1846. Mas o debate era interminável e chegou até a imprensa. Ninguém queria abrir mão da sua forma de jogar.
Enquanto não se chegava ao acordo para uma regra em comum, o futebol se espalhava pela Grã-Bretanha e por todas as classes, de alto a baixo da hierarquia social. A partir de 1830, chega às províncias e surgem praticantes a partir de clubes de críquete, pubs, escolas menores, unidades militares e grupos de trabalhadores. Chega até o norte da Inglaterra, atravessa a fronteira e logo há times na Escócia. Na segunda metade do século XIX há uma explosão de clubes de futebol. Os dois maiores centros eram Londres, no sul da Inglaterra e Sheffield, no norte, esta última um núcleo tão importante que muito cedo teve sua própria Associação de Futebol e regras codificadas e colocadas por escrito antes mesmo da Football Association.
Finalmente, em novembro de 1863, foi feita uma reunião na Freemasons’ Tavern, na região central de Londres, que mudaria para sempre a história do futebol. Ninguém à época tinha ideia disso, eram apenas representantes de onze clubes da área de Londres se reunindo para tentar estabelecer a tão sonhada regra comum. Chamaram a si mesmos de “Football Association”, talvez percebendo que havia uma enorme carência de organização. Eles continuaram a se reunir durante dois meses até formularem aquilo que vai ser a primeira regra geral do futebol e que mesmo depois de muitas modificações ainda hoje rege o esporte em todo o planeta. Logo ficou claro que havia uma divergência intransponível. De um lado, aqueles que defendiam a persistência do jogo com as mãos, em que alguém abraçava a bola e saía correndo com ela. De outro, aqueles que queriam um jogo primordialmente jogado com os pés. Os primeiros, sentindo-se não contemplados, oito anos depois (1871) irão formar a “Rugby Football Union”. A regra proposta pela “Football Association” não foi adotada imediatamente em todo o país, houve resistências: as “public schools” preferiram continuar com suas regras próprias, nas províncias alguns clubes também relutavam em abandonar sua forma de praticar o jogo, as regras de Sheffield estavam bem estabelecidas e havia até quem preferisse jogar um tempo com cada regra. Mas o fato é que ao fim e ao cabo as regras da “Football Association” acabaram por ser adotadas em toda a Grã-Bretanha.
Já havia uma regra. Mas ainda não havia nenhum tipo de campeonato. As partidas eram todas o que hoje chamamos de “jogos amistosos”, um clube convidando o outro para jogar. Em 1871, a “Football Association”, que todos na Inglaterra conhecem como FA, irá inventar a primeira competição organizada pela entidade e a competição de futebol mais antiga do mundo: a Copa da Inglaterra (“FA Challenge Cup”). Cinquenta clubes podiam participar por serem membros da FA, mas apenas quinze se inscrevem. O custo das viagens deve ter desestimulado a maioria dos clubes. De qualquer forma, até mesmo um clube escocês participa: o Queen’s Park, aliás o primeiro clube a ser fundado naquele país. A final, que foi disputada em um estádio de críquete, atraiu duas mil pessoas.
Uma partida em 1871 era bem diferente de hoje. As dimensões do campo podiam ser consideravelmente maiores segundo as regras da FA. Elas estabeleciam que o campo podia ter até 91 metros de largura e até 182 metros de comprimento (contra 118 hoje). Não havia nenhuma marcação de cal, somente bandeiras para marcar as extremidades. As duas traves não tinham travessão, mas uma fita entre elas. A marcação das linhas laterais e de fundo só ocorreu em 1882, bem como a linha do meio de campo, para marcar de onde se dava a saída e até onde (naquela época) o goleiro poderia pegar a bola com a mão. A linha do pênalti e o próprio pênalti só vieram em 1887. A grande área propriamente dita, só foi criada em 1902. A meia-lua da grande área só foi acrescentada em 1937.
De início, havia um juiz de cada time e eles só se manifestavam quando havia dúvidas de marcação entre os jogadores. Na década de 1870 foi adicionado um terceiro árbitro para resolver no caso dos dois juizes não concordarem entre si. Em 1891 este terceiro juiz torna-se o controlador efetivo do jogo, mas ainda só intervinha quando solicitado por um dos capitães. Em 1899, o juiz passa a apitar independentemente dos jogadores e são criados os bandeirinhas, não mais ligados às equipes. De início, os uniformes eram copiados do críquete: calças longas, camisas de flanela e botas pesadas. Aos poucos os uniformes de futebol irão tomar uma forma própria. Curiosamente, como não havia numeração nos uniformes, que só se torna obrigatória na Inglaterra em 1938, de início os jogadores eram identificados pelas cores dos seus bonés.
De início, a tática das equipes era massivamente ofensiva. Escalavam-se dois defensores, um meio-campista e sete atacantes. Ninguém passava a bola, passar era considerado o último recurso e até mesmo uma desonra. Não havia cruzamentos nem tampouco bolas altas lançadas sobre a área. Basicamente o jogador pegava a bola e tentava ir com ela até o gol, era o chamado “dribbling game”. Valia sair derrubando os adversários no caminho, o jogo era ainda bem mais físico do que hoje. Valia dar tranco e empurrar inclusive o goleiro. Com a introdução da regra do impedimento, à época obrigando o jogador a ter pelo menos três adversários à frente dele, o jogo vai se mover na direção do passe, o “dribbling game” vai ser abandonado.
Com a supremacia do jogo de passes bem estabelecida, logo as equipes irão adotar uma disposição tática mais equilibrada. Do 2-1-7, passarão ao 2-3-5, recuando dois atacantes para torná-los meio-campistas. Agora as equipes começam a jogar também pelas laterais e a fazer cruzamentos e a lançar bolas altas para o cabeceio.
De início, como era de se esperar, o futebol experimentou a hegemonia dos “old boys”, isto é, dos ex-alunos das “public schools”. Durante as oito primeiras edições, a FA Cup (Copa da Inglaterra) teve finais exclusivamente entre clubes formados basicamente por “old boys”. Em 1882, pela primeira vez, um clube operário do norte da Inglaterra chega à final: o Blackburn Rovers. Perdem para os Etonians por um magro 1×0, mas a supremacia dos “old boys” estava perto de acabar. O futebol estava fervendo em todas as regiões da Inglaterra e na Escócia também. No norte do país, onde se concentravam as indústrias, os clubes se multiplicavam. Em muitas cidades, haviam sido exatamente “old boys” que haviam levado o entusiasmo e o conhecimento do jogo para escolas e novos clubes.
Um fator inesperado do crescimento do futebol junto à classe operária foi o papel desempenhado pela Igreja. Religiosos que eram também esportistas, utilizaram o futebol para tentar atrair as comunidades de classe trabalhadora. Os trabalhadores por sua vez, aproveitavam a organização e o encontro proporcionados pela igreja e organizavam partidas de futebol e depois, clubes. O Aston Villa surgiu assim, bem como o Wolverhampton Wanderers, o Bolton e o Everton, entre outros.
Em Gales, o futebol iria se desenvolver sobretudo nas grandes cidades do sul, Cardiff e Swansea. No restante do país, predominava o rugby. Na Irlanda, o futebol foi prejudicado pela disputa entre católicos nacionalistas e protestantes pró-Inglaterra. O futebol, embora logo tenha feito algum sucesso em Belfast e em algumas cidades do sul, logo foi encarado como um esporte anglófilo. Jogá-lo passou a ser equivalente mais ou menos a uma traição, a uma colaboração com o inimigo. Os irlandeses preferiram criar uma associação dedicada a esportes que eles viam como nativos. Já a Escócia adotou uma outra tática: usou o futebol para derrotar os ingleses no seu próprio “campo”. Mas isto também se relaciona ao fato de que a Escócia foi a nação que mais se beneficiou do Império Britânico, provendo homens para muitas instituições incluindo o exército e o serviço público. Goldblatt acha que os galeses, por outro lado, preferiam jogar rugby para se distinguirem dos ingleses mas sem romperem completamente com a norma cultural anglófona, caminho que foi escolhido claramente também pelos neozelandeses e brancos sul-africanos. Já os irlandeses, os norte-americanos e os australianos preferiram marcar sua oposição, separação e distância.
Em seguida, o autor passa a enumerar os motivos pelos quais o futebol era tão atraente para tanta gente, as razões do sucesso do esporte. Para ele o futebol mais era barato e fácil de organizar, jogar e aprender do que qualquer um desses esportes de equipe. Além disso, o futebol é jogado mais facilmente e com menos perigo para os participantes em superfícies de baixa qualidade; para trabalhadores que não podiam perder um dia de pagamento isto não devia ser um fator pouco considerável na escolha do jogo de chute versus o jogo de carregar a bola com as mãos. O futebol teria uma divisão de trabalho de jogo mais flexível, o que o tornaria atraente. E o mais importante: a elite que participava do jogo, ao contrário da elite do rugby, por exemplo, ao invés de tentar manter o jogo como exclusivo, era entusiasta da sua popularização.
Com a entrada avassaladora dos trabalhadores, o futebol se transforma completamente. Ao contrário dos “old boys”, os operários não tinham tempo livre para treinar. Logo, é natural que os melhores jogadores dentre eles comecem a receber pagamentos que lhes permitem um afastamento parcial ou total do trabalho manual para se dedicarem totalmente ao esporte. Esta nova revolução começou, como era de se esperar na região industrializada, no norte da Inglaterra. Ali os clubes começaram a contratar jogadores profissionais, sobretudo escoceses, os mestres do jogo de passes. O profissionalismo ainda não havia sido aceito pela FA, sendo assim o pagamento era feito “por debaixo do pano”: pagamentos em dinheiro não registrados, empregos fictícios nas firmas etc. A FA tentou uma espécie de “solução de compromisso” permitindo o pagamento a jogadores que haviam perdido horas de trabalho para poderem participar de partidas. Mas pagamento de salário bem como a contratação de jogadores de outros clubes era algo firmemente proibido.
Alguma hora o caldeirão iria transbordar. Em 1884, Preston North End, importante clube do norte da Inglaterra, e que contratava amplamente profissionais escoceses, vence o clube londrino Upton Park em um jogo da Copa da Inglaterra. Os perdedores reclamam junto à FA quanto à utilização de profissionais por parte do Preston North End. O Preston não nega ter utilizado profissionais, em um desafio aberto à FA. Para piorar a situação, trinta e um clubes do norte da Inglaterra, todos eles pagando jogadores, ameaçam sair da FA e fundar uma associação própria. É o fim do amadorismo de faz-de-conta. Em 1885 a FA acolhe o profissionalismo. Mas estabelece condições e continua a demonstrar um enorme preconceito: o primeiro jogador profissional que jogou pela Inglaterra vestiu camisa azul enquanto todo o time jogou de branco.
Como resume muito bem Goldblatt, é como se a classe dominante tivesse dado os anéis para não perder os dedos: a classe média e a classe trabalhadora foram incorporadas ao jogo, mas sob o controle e de acordo com os termos estabelecidos pela elite.
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