The ball is round, Capítulo 3 – Uma vida bem mais esplêndida – o futebol industrial e a Grã-Bretanha da classe trabalhadora, 1888-1914
(da série Leituras para pensar o futebol)
I.
A primeira grande transformação do futebol foi descrita no capítulo anterior: entre 1840 e 1870 o jogo folclórico, anárquico e desorganizado foi formalizado e codificado nas public schools com propósitos pedagógicos, tornando-se o esporte preferido de uma juventude de “bem-nascidos”. No último quartel do século XIX, o futebol irá passar por outra enorme transformação: será amplamente adotado pela classe trabalhadora, que doravante vai constituir a massa de jogadores e de espectadores do novo esporte. Goldblatt chega a dizer que os trabalhadores “colonizam” o futebol. A tal ponto que no início da Primeira Guerra Mundial o futebol já se tornara o esporte mais popular da Inglaterra desbancando o cricket.
Claro que a avaliação deste caso de amor da classe trabalhadora britânica com o futebol variava. Para o teórico marxista Karl Kautsky, enquanto “a emancipação da sua classe parece para eles um sonho tolo”, “… futebol, boxe, corrida de cavalos são que os move profundamente e aos quais eles dedicam todo o seu tempo livre, seus poderes individuais e seus meios materiais.” Em suma: o futebol seria pura alienação que afastaria os trabalhadores da conscientização que precederia a revolução. Sabemos que até hoje esta posição tem seus defensores.
Para o autor, todavia, quem chegaria mais perto de explicar o fenômeno seria o romancista J.B. Priestley, ao afirmar sobre o futebol:
“Ele te transformava em um membro de uma nova comunidade, todos irmãos, juntos por uma hora e meia, pois você não somente havia escapado da maquinaria estridente desta vida menor, do trabalho, do salário, aluguel, da caridade, pagamento por doença, cartões de seguro, esposas resmungonas, crianças doentes, maus patrões, trabalhadores preguiçosos, mas você havia escapado com a maioria dos seus amigos e vizinhos, com metade da cidade, torcendo juntos, um dando tapa no ombro do outro, trocando julgamentos como os Senhores da Terra, depois de abrir caminho pela roleta na direção de uma outra vida completamente mais esplêndida.”
Como a citação mostra, é claro que o futebol era, sim, uma forma de fuga do trabalho monótono, da miséria e da incerteza. Mas não era um circo outorgado de cima como uma forma de controlar a classe trabalhadora. Também era criação da base, dos próprios trabalhadores. Era um espetáculo que combinava a excelência individual e coletiva, que exigia uma mistura de entrega e inspiração, força física e técnica. E que oferecia a oportunidade de afirmação de uma solidariedade que entrelaçava o cívico e a base classista.
Esta tomada do futebol pela classe trabalhadora coincidiu com o amadurecimento do processo de industrialização e urbanização da Inglaterra. E o avanço da industrialização potencializou a relação entre a classe trabalhadora e o novo esporte. Primeiramente pelo aumento salarial, da ordem de 30% em média no último quartel do XIX, permitindo que sobrasse um dinheirinho para o ingresso e o pub. Além disso, este período viu o nascimento da chamada “Semana Inglesa”, em que os trabalhadores conquistaram o direito a não trabalhar nas tardes de sábado, que irão tornar-se o horário tradicional do futebol inglês.
Há outros fatores importantes que estão ligados ao avanço industrial e urbano e que alavancaram o futebol. O principal, sem dúvida, é a construção de uma rede ferroviária interligando as cidades e facilitando os jogos entre clubes, ao permitir o transporte dos jogadores, embora de início ainda fossem muito caros para serem utilizados por torcedores, exceto em trajetos mais curtos e mais baratos. No interior das cidades, usava-se muito o trem urbano, a bicicleta e os bondes, puxados a burro ou elétricos. O Tottenham Hotspur escolheu ficar em White Hart Lane devido à proximidade de uma estação ferroviária e o Chelsea construíu Stamford Bridge por causa de a uma estação de metrô localizada muito perto. O Arsenal se mudou do sul para o norte de Londres porque Highbury ficava perto de uma estação de metrô.
Um outro elemento é que o processo de industrialização, tendo percebido os industriais que os processos de fabricação mais técnicos necessitavam uma classe trabalhadora minimamente preparada, apoiaram a escolarização da classe trabalhadora e alguns anos de ensino formal tornam-se obrigatórios. Isto, somado à melhora das condições de vida, criou um público de leitores para jornais, revistas e até mesmo anúncios, ajudando a sustentar e divulgar o jogo, além de criar uma maior profundidade cultural.
II.
Tudo parecia ir muito bem, mas os clubes de futebol enfrentavam um sério problema. Não havia um calendário, inexistia qualquer tipo de competição regular ao longo do ano. Os clubes convidavam uns aos outros para partidas, cancelando a participação caso houvesse um adversário mais importante. Às vezes se enfrentavam forças tão desiguais, aquilo que em inglês se chama “mismatch”, que havia goleadas estrondosas deixando a partida sem graça, pela ausência de competitividade, o que sem dúvida afastava o público pagante. O pior é que havia contas a pagar: o salário dos jogadores, as despesas de manutenção do clube e do estádio e por aí vai.
Em outros esportes, como o beisebol nos Estados Unidos ou até mesmo cricket na própria Inglaterra, o problema já havia sido resolvido com a criação de uma liga, com uma autoridade central responsável pela elaboração de uma tabela competitiva, regular e bem estruturada para um conjunto de clubes. Foi o escocês William MacGregor, um homem de negócios que pertencia à diretoria do Aston Villa, que propôs a criação da Football League, escrevendo para diretores dos principais clubes e marcando uma reunião no Royal Hotel em Manchester em abril de 1888. Doze clubes formaram a Football League no seu início, seis do norte da Inglaterra (Accrington, Blackburn Rovers, Bolton Wanderers, Burnley, Everton e Preston North End) e seis da Inglaterra Central (Aston Villa, Derby County, Notts County, Stoke City, West Bromwich Albion e Wolverhampton Wanderers). Nenhum do sul da Inglaterra, nenhum de Londres, por exemplo. O formato inventado pela Football League até hoje é o modelo seguido por quase todos os campeonatos do mundo: os clubes jogam entre si, com partidas de ida e volta, sendo campeão o que totalizar mais pontos.
Logo os outros clubes estavam loucos para entrar na Football League. Em 1892, apenas quatro anos depois do seu surgimento, já havia sido criada uma segunda divisão, havendo agora um total de 28 clubes pertencendo à Football League, que congregava naquele momento as principais equipes da Inglaterra. Em 1898, há a introdução de outro mecanismo que também será adotado em todo o mundo: a subida e descida de divisão de acordo com a colocação no campeonato. Em 1905, cada uma das duas divisões foi alargada para vinte clubes e o campeonato passou a ser bem mais longo. Já havia clubes do sul, mas eram apenas quatro: Arsenal, Clapton Orient, Chelsea e Bristol City. Até 1914 os campeões da liga vieram exclusivamente das grandes cidades do norte industrializado.
Também a FA Cup era basicamente uma festa dos nortistas, que ano após ano disputavam a final entre si. Já havia até mesmo uma tradição dos trabalhadores das cidades do norte com times fortes: eles economizavam durante o ano todo para poder pagar a viagem a Londres, de preferência com direito a comemoração pela conquista da taça. A imprensa londrina não escondia seu descontentamento, estranhamento e até mesmo preconceito diante das multidões de operários vindos do norte e que eram vistos como rudes e descontrolados. O fato é que o futebol servia também para marcar diferenças e reafirmar identidades. Boa parte do sucesso do jogo se deve ao orgulho cívico que ele proporcionava aos torcedores de times que literalmente representavam cidades inteiras.
Como afirma Goldblatt:
“Somente o futebol, dentre todas as manifestações da cultura urbana da classe trabalhadora, na Grã-Bretanha do fim do XIX, fornecia uma oportunidade para a reunião de pessoas cuja origem, identidade e objetivos variava de acordo com a vizinhança, a ocupação industrial, empregadores, pertencimento a sindicatos – unindo-os em torno de uma localização geográfica e uma identidade maiores mas compreensíveis.”
Além disso:
“O trabalhador e a família trabalhadora, estavam finalmente começando a levantar os seus olhos das preocupações mais paroquiais e imediatas para assumir horizontes mais amplos e reivindicar seu lugar de direito na cultura nacional. Nada poderia fazer isso com maior precisão, simplicidade e imediatismo do que torcer pelo seu clube local na liga nacional e na Copa da Inglaterra.”
III.
O público do futebol, predominantemente operário, estava disposto a enfrentar frio, chuva, neve e estádios precários para assistir e torcer pelo seu clube. Os números demonstram isso. Do surgimento da Football League em 1888 até o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 o crescimento foi impressionante. Se a final de FA Cup de 1888 teve 17 mil pessoas presentes, em 1912 o público subiu para mais de 120 mil pessoas. Em 1914, o público total das partidas da 1a. divisão da Football League alcançou 9 milhões. Naquele ano, somando o a FA Cup, as divisões da Football League e algumas ligas semi-profissionais, o público do futebol alcançou 15 milhões.
Começa então uma era de construção de estádios, sobretudo entre 1889 e 1910. Além de proporcionar um mínimo de conforto e de segurança ao público, o estádio era sobretudo uma forma dos clubes obterem renda, cobrando ingressos. O modelo inicial de estádio era bem simples. Junto à linha central era construído um pavilhão ou uma arquibancada onde ficava o público mais “seleto”, pagando ingressos mais caros. No restante do estádio, havia a construção de uma elevação de algum tipo, normalmente de terra, proporcionando uma visão melhor aos torcedores. Eventualmente, clubes construíam terraços feitos de madeira. A maioria destes estádios eram construídos bem no coração das cidades, cercados de uma comunidade de classe trabalhadora.
Quanto à composição do público, Goldblatt avalia que apenas 10% fossem de classe média, sendo os 90% restantes feitos de uma mistura do que os contemporâneos chamavam de “os rudes e os respeitáveis”. Havia uma predominância da baixa classe média, sobretudo da classe trabalhadora especializada, encarnada em jovens solteiros. Inicialmente as mulheres não pagavam, mas depois que elas começaram a comparecer em número relativamente grande (2.000 para ver o Preston North End em 1884) os clubes acabaram com a gratuidade. Há indícios da presença também de membros de gangues dos bairros mais violentos, mas não eram uma característica regular da multidão que ia assistir ao futebol nesta época.
O público era muito barulhento, com gritos e xingamentos cruzando os ares, sem falar nas canções entoadas atrás dos gols. Matracas e tambores, além de outros instrumentos, eram utilizados nos terraços e músicas, piadas e slogans provenientes do repertório do music hall logo foram incorporados. O boné achatado era peça obrigatória. A partir do fim do XIX, especialmente em jogos importantes e da Copa da Inglaterra, insígnias e faixas com as cores do clube começaram a aparecer. Os torcedores costumavam parar no pub para uma bebida antes do jogo e até mesmo durante ele, o que era permitido. De uma maneira geral, embora houvesse incidentes violentos, o público era muito bem humorado, bem comportado e se auto-policiava, além de tolerar um baixo padrão de conforto e o desleixo das autoridades para com ele. O mais marcante é seu interesse apaixonado e o prazer delirante que o futebol proporcionava.
A fome pelo futebol para além dos 90 minutos, estimula o surgimento de uma imprensa especializada, que alcança grandes tiragens. O Athletic News, por exemplo, estava nas bancas às 2as. feiras com a cobertura de todos os jogos da Football League e vendia 170 mil exemplares. A partir de 1907, com o desenvolvimento da tecnologia para tirar fotos de pessoas em movimento, a cobertura fica ainda mais atraente. É claro que logo os anunciantes percebem o potencial mercadológico do futebol. Logo jogadores e times estão sendo usados em publicidade voltada para a venda de cigarros, por exemplo.
IV.
Em uma analogia com a indústria, pode-se dizer que o clube era a unidade de produção. Com uma diferença: enquanto na indústria a tendência era à concentração do poder e da produção na mão de grandes corporações, beirando o monopólio, a estrutura clubística tendia à multiplicação das agremiações. Legalmente, de início os clubes eram classificados como organizações voluntárias e de caridade. Mas à medida em que cresciam e necessitavam contrair empréstimos, sobretudo para a construção de estádios, eles se transformam em companhias privadas limitadas, com acionistas privados proporcionando parte do capital. Não tinham ações negociadas na bolsa. Participar, visto como um ato de amor ao clube, não era tão caro: em 1915, 37% do total de acionistas eram trabalhadores manuais. Mas como não se organizavam, apenas 20% dos diretores vinham da classe trabalhadora e 80% eram compostos pelas camadas mais ricas, que normalmente detinham porções maiores das ações.
Clubes não davam lucro e a própria FA preferia assim, tendo desestimulado o investimento interessado nos clubes ao fixar em somente 5% o total de dividendos que poderiam ser pagos anualmente. O que levava então os membros das camadas mais altas a participarem na direção? Eventualmente, no caso daqueles que estavam nos setores da hotelaria ou da cerveja, havia benefícios indiretos, pois podiam fornecer a clubes e torcedores, mas isto era uma exceção e não a regra. A maioria estava ali pelo entusiasmo verdadeiro em jogar, assistir e organizar. Havia, é verdade, benefícios não-materiais: o prestígio e o status auferidos por um cargo de direção em uma instituição tão querida localmente.
Quanto aos jogadores, a mão-de-obra, eles eram menos de 5.000 na Inglaterra em 1914. Normalmente eram provenientes da mesma classe que ocupava os terraços: a classe trabalhadora especializada. Não ganhavam fortunas, mas bem acima do que ganhava o estrato mais pobre da classe trabalhadora. Mas a experiência de ser jogador de futebol era algo fabuloso para eles: estavam fazendo o que realmente gostavam com uma supervisão mínima e muito pouco controle comparado ao que havia na fábrica, pois nessa época havia poucos treinadores com alguma autoridade e nenhuma tentativa de sistematizar o treinamento.
Nem tudo eram flores, todavia. Os clubes prendiam os jogadores através do sistema do passe, em que o jogador só poderia se transferir para outro clube se este pagasse o passe ao clube que na prática era dono do jogador. Este sistema foi pensado pelos administradores do futebol de forma a impedir uma escalada dos salários e a concentração dos talentos em alguns clubes mais ricos. Para complementar, a FA fez o serviço sujo para os clubes ao estabelecer um teto salarial de 4 libras por semana. Claro que os melhores jogadores acabavam recebendo “por debaixo do pano”.
A vida de jogador de futebol era precária da mesma forma que a de outros trabalhadores. Quase nada era previsto para ajudar os jogadores que terminavam a carreira. Não havia nenhum sistema de pensões e o problema das contusões dependia de relações paternalistas. Muitos jogadores passavam a viver na sarjeta, com problemas de alcoolismo, embora alguns fossem recontratados por seus ex-clubes em funções humildes. Alguns poucos, que haviam conseguido poupar, tornavam-se donos de um pequeno comércio como um pub, uma loja ou algum tipo de hospedaria. Seja lá como for, muito dificilmente um jovem de classe trabalhadora, em tendo a chance de se tornar jogador de futebol, deixaria de fazê-lo.
V.
A contribuição escocesa para o futebol inglês e, consequentemente, para o futebol mundial, foi imensa e valiosa. Já citamos o fundador escocês da Football League, William MacGregor, bem como a predominância de jogadores profissionais escoceses no último quartel do XIX. Boa parte dos estádios construídos neste período foi a partir de projetos do arquiteto escocês Archibald Leich. Na Escócia ocorreu o primeiro jogo internacional, contra a Inglaterra, em 1872. E foi lá também, em Inverness, que se disputou em 1888 o primeiro jogo de futebol feminino.
Goldblatt afirma que não havia região da Escócia (e talvez do planeta) mais apaixonada por futebol do que Glasgow nesse período. Ele cita George MacDonald Fraser: “os homens de Glasgow, jogavam, dormiam, comiam, bebiam e viviam futebol sete dias por semana”. Basta dizer que em 1914 Glasgow possuía os três mais grandiosos estádios de futebol do mundo: Ibrox (Rangers) comportava 75 mil, Celtic Park (Celtic) 63 mil e Hampdem Park, o maior estádio do mundo à época, 120 mil pessoas.
Ao contrário da Inglaterra, onde o futebol durante algum tempo foi monopolizado pela aristocracia, na Escócia o esporte rapidamente chegou às massas. Glasgow se desenvolveu tanto neste período que era chamada de “segunda cidade do Império Britânico”. Estaleiros, engenharia, metalúrgicas, ferrovias, indústria química e vidro fizeram com que a classe trabalhadora aumentasse enormemente. Os novos trabalhadores eram de diversas origens: das terras altas, protestantes das terras baixas, irlandeses católicos e irlandeses do norte protestantes. Com isso havia uma série de comunidades distintas que buscavam no seu time de futebol uma fonte de identidade, alívio e entretenimento. O outro lado da moeda é que criava também a possibilidade de rivalidades e oposições profundas e temíveis.
Facilitava o desenvolvimento do futebol em Glasgow a existência de um sistema de transportes (bondes e ônibus) bem estruturado, permitindo o acesso aos estádios por parte dos torcedores. Acostumados a verem suas equipes confrontarem seus adversários com frequência, os torcedores rapidamente irão estabelecer uma forte conexão emocional com seus clubes.
E foi em Glasgow que surgiu uma das rivalidades mais amargas e permanentes do futebol mundial e uma das mais fortemente entrelaçadas com divisões religiosas e sociais: o clássico Rangers versus Celtic. Desde o início o Rangers, ou melhor, seus torcedores, adquiriram a reputação de maus esportistas, falta de senso de humor e de pouca preocupação com as regras comuns. Quando participaram de um jogo beneficente com o Dumbarton em 1883 para as famílias de um desastre marítimo, os Rangers exigiram ter suas despesas pagas. Seus torcedores também eram difíceis: na inauguração de Ibrox eles invadem o campo ao verem o Rangers apanhar de 8×1 para o Preston North End. À época os Rangers congregavam uma porção significativa dos homens de negócios protestantes, bem como da classe trabalhadora protestante residente no distrito de Govan. Mas, por ironia do destino, será somente depois do surgimento de um rival apropriado que o Rangers irá tornar-se um grande clube.
Este clube será o Celtic, fundado em 1887 por uma aliança de homens da Igreja Católica, profissionais em ascensão e donos de pubs. Tinha dois objetivos. Por um lado arrecadar recursos para alimentar os católicos pobres da região. Por outro, permitir que jogadores católicos pudessem estar num clube católico. Antes da Primeira Guerra Mundial o clube acaba por se tornar o ícone esportivo da comunidade irlandesa de Glasgow. As instalações do clube eram emprestadas para a Igreja e para organizações católicas para procissões, missas etc. Mas o Celtic, de acordo com Goldblatt, nunca esteve explicitamente fechado aos protestantes. A rivalidade e a animosidade entre os dois clubes só se tornou mais acirrada perto de 1914, quando a Questão Irlandesa se torna mais presente na política britânica e depois que uma firma irlandesa abre um estaleiro em Govan e só contrata trabalhadores irlandeses protestantes.
Ainda na década de 1880 já havia notícias em Glasgow de garrafas sendo lançadas contra juízes e jogadores, afora lama e pedras. Os trabalhadores dos estaleiros de Glasgow gostavam de arremessar parafusos. Mesmo assim eram os torcedores de clubes de outras cidades, dos Hearts e do Aberdeen, que tinham a pior fama. Na Inglaterra, aliás, já haviam sido registrados os primeiros episódios de hooliganismo com palavrões, uma briga ocasional e uma variedade de objetos sendo lançados nos jogadores, policiais e sobretudo nos árbitros. Mas havia ainda muito pouca briga ou desordem generalizada. De qualquer forma, as classes dirigentes já estavam com temor da multidão e do futebol.
VI.
Em 1900, em Bournemouth, um pastor afirmou: “O jogador de futebol profissional é uma monstruosidade. Deus não criou uma vida para ser gasta chutando uma bola de couro por aí. Isso é uma perversão do sentido da vida dado por Deus.” O pastor não estava sozinho na sua condenação do futebol. O movimento dos escoteiros, por exemplo, criado em 1908 com a tarefa de criar uma raça imperial em forma, saudável e disciplinada, desprezava abertamente as massas que apenas assistiam sem participar, caracterizadas como semi-corcundas e fumantes.
Dentre os marxistas, por sua vez, havia uma corrente presente no movimento sindical que estabelecia uma equivalência entre a mania por futebol e uma falta definitiva de uma consciência de classe mais aguda. Já os que eram contra as bebidas alcóolicas, viam com maus olhos a cerveja antes, durante e depois dos jogos. A mesma escola de pensamento condenava o fato do jogo atrair apostas. E havia por fim os conservadores que eram contrários a toda e qualquer manifestação da emergente cultura popular de massas: o music hall, os folhetins baratos e a Football League tudo num só pacote.
Enquanto isso, a realeza, com faro político, abraçava cada vez mais o futebol. Em 1892 o Príncipe de Gales é convidado e aceita se tornar o padroeiro da FA Cup. Em 1901, a FA Cup é interrompida por um mês em respeito à morte da Rainha Vitória. George V, que não era nenhum fã do esporte, torna-se o primeiro monarca a assistir um jogo de futebol, estando presente a Inglaterra versus Escócia em 1912. Esta estratégia populista da realeza, fez com que dois anos depois, em 1914, ele fosse assistir à final da FA Cup.
Neste período o Império Britânico estava presente em todo o mundo e o futebol foi com ele. Seus navios mercantes e militares, seus engenheiros, banqueiros, professores e viajantes ajudaram a espalhar o jogo pelo mundo. A hegemonia inglesa e escocesa no futebol era incontestável. O time britânico ganhou a competição de futebol nas Olimpíadas de 1908 e 1912. Mas também se consideravam superiores a ponto de ver o restante do mundo com um certo desprezo. Quando a FIFA é criada em 1904, a Inglaterra não desempenha qualquer papel.
Em uma época em que a luta das mulheres por seus direitos era efervescente, como na questão do direito ao voto, é claro que tudo isso também aparece no futebol. Na Inglaterra o jogo é praticado por mulheres das public schools e das universidades, a mesma aliança presente no movimento sufragista. Em 1895 o primeiro jogo de futebol feminino da Inglaterra é organizado pela British Ladies Football Association, entre uma equipe do norte e outra do sul. Elas saem viajando pelo país e em Newcastle chegam a ter um público de 8 mil pessoas. O establishment masculino reage, é claro. Primeiro tentando ignorar o fenômeno. Depois, afirmando que a prática era deletéria para a saúde feminina, o que não convence ninguém. Por fim, na prática proibindo as mulheres de jogar, quando em 1902 a FA proibe qualquer clube a ela associado a ter times femininos ou apoiá-los. Isto significava que de uma tacada só todos os campos da Inglaterra estavam vedados à prática do futebol feminino.
Dentre os jogadores profissionais, houve tentativas de criar uma associação desde 1897, mas que só foram frutificar com a formação APFU dez anos depois, em 1907. Dentre os muitos pontos de disputa entre jogadores e seus empregadores, os principais eram dois. Primeiramente, o direito dos jogadores de levarem suas disputas aos tribunais ao invés de serem resolvidas internamente. A segunda era o direito do sindicato de afiliar-se ao movimento sindical mais amplo, desta forma conseguindo acesso ao poder, ao status e às reservas financeiras do restante da classe trabalhadora organizada. Os clubes chegaram a preparar um grupo de amadores para servirem de fura-greve no caso dos jogadores entrarem em greve. Ao final, os jogadores capitularam. Esta derrota condenou os jogadores profissionais britânicos a um teto salarial bem pequeno e a contratos altamente restritivos por mais meio século.
VII.
A torrente de protestos políticos que ameaçava quebrar o consenso e os compromissos da Inglaterra liberal do início do século XX foi contida, senão erradicada, com o advento da Primeira Guerra Mundial. O nacionalismo surgiu uma força que ninguém supunha. E os esportes foram conclamados a desempenhar o seu papel. O rugby, por exemplo, imediatamente cessou suas atividades e só retornou findada a guerra. No caso do futebol, a FA e a Football Association avaliavam que a guerra terminaria antes do Natal. E que sendo o futebol uma distração e uma recreação perfeita não haveria motivo para interromper o calendário.
Desde o início, as autoridades do futebol concordam em ceder estádios para treinamento militar e armazenamento de munições, bem como em servirem de palco para jogos beneficentes visando arrecadar recursos. Mas o principal papel do futebol neste momento será na atração de novos voluntários para participar da guerra. Com estádios cheios de jovens da classe trabalhadora, este vai ser um instrumento fundamental para a arregimentar novos soldados.
Mas nem isso acalma os mais conservadores e belicosos, que exigem o abandono do futebol durante a guerra. Além da retórica raivosa dos patriotas, a Football League tinha que enfrentar as realidades do tempo de guerra. Cada vez mais homens partiam para a guerra, muitos morriam. Os públicos diminuíam, bem como a renda dos clubes e sua capacidade de pagar aos jogadores. As viagens de trem eram dificultadas pelas requisições militares. Só deu para terminar a temporada. O Everton foi o campeão da Primeira Divisão. O Sheffield United derrotou por 3×0 o Chelsea na final da FA Cup. Este foi o último jogo disputado durante a guerra.
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