The ball is round, Capítulo 5: O grande jogo e o império informal: a difusão internacional do futebol, 1870-1914 – PARTE B
IV.
Na Suíça, os primeiros jogos de futebol sem regras foram registrados na década de 1850, entre estudantes suíços e ingleses. Muitos jovens ingleses se matriculavam escolas e cursos técnicos na Suíça. Depois, atraídos pelo cenário alpino, pela imensa riqueza, pelo poder dos bancos e das indústrias de engenharia, muitos permaneciam para trabalhara nos novos centros industriais, comerciais e financeiros de Lausanne, Genebra e Zurique. Na Suíça francófona, em Lausanne, surgiu o primeiro clube esportivo do país em 1860, o Lausanne Football and Cricket Club. Em 1869 surgem clubes de futebol em Genebra e em Lausanne. Em 1886, um professor inglês de Biologia e torcedor do Blackburn Rovers ajuda a fundar o Grasshoper-Club, até hoje importante no futebol suíço e que joga com o azul e branco do Blackburn. Em 1895 foi fundada a federação suíça de futebol e um campeonato nacional foi estabelecido em 1898. Na virada para o século XX a maioria dos clubes de futebol mais importantes já haviam sido fundados. Em 1904 a Suíça já era um membro fundador da FIFA.
A neutralidade da Suíça fez com que tanto a FIFA quanto a UEFA sediassem suas organizações naquele país. Pela mesma razão foi o país europeu escolhido para a primeira copa a se realizar após a guerra (não contando a copa de 50 no Brasil), em 1954. Nos anos que antecederam a Primeira Grande Guerra, foram os suíços, juntamente com os britânicos, que exerceram o papel de grandes educadores, viajantes e difusores do futebol europeu. O Barcelona foi fundado por Hans Kamper, suíço nascido em Zurique. Walter Bensemann, filho de um médico alemão judeu, estudou numa escola privada suíça e depois voltou para a Alemanha, onde fundou o Karlsruher SC aos 15 anos de idade. Viajou e trabalhou pela Europa e fundou clubes em outras regiões da Alemanha e em Strasburgo antes de finalmente se estabelecer e criar a primeira publicação alemã dedicada ao futebol, o jornal Kicker, ainda hoje líder do mercado.
Também na Itália os suíços foram decisivos no estabelecimento e sustentação durante os primórdios do futebol italiano. Franz Cali, que foi capitão da primeira seleção italiana, foi educado em Lausanne. Vitorio Pozzo, que fundou o Torino e treinou a seleção italiana na conquista de duas copas do mundo, passou dois anos na Suíça em 1908-9 estudando negócios e línga e jogando regularmente no time reserva do Grasshoper. Expatriados suíços jogavam nos principais clubes do norte da Itália, especialmente no Torino, Internazionale e Genoa.
Enquanto os suíços ajudavam a difundir o futebol no ocidente, o jogo foi difundido para os até então inacessíveis Balcãs graças à contribuição da Europa Central e do núcleo central do Império Austro-Húngaro. Os homens da Europa Central também fizeram o que nem os suíços nem os holandeses conseguiram antes da Primeira Grande Guerra: criar uma forte cultura futebolística popular na qual o jogo era praticado por uma larga porção da escala social e que atraía públicos consideráveis e crescentes. Foi a partir desta base que a Europa Central viria a se tornar a força mais inovadora do futebol europeu no entreguerras. Este sucesso se deveu à concentração do futebol em somente três cidades – Viena, Budapeste e Praga. Viena era o centro da presença britânica na Europa Central, onde um numeroso corpo diplomático, bancos britânicos e companhias de comércio e engenharia criaram uma comunidade britânica significativa. O primeiro jogo ocorreu em 1894 entre o Vienna Cricket Club e um time recrutado junto aos jardineiros escoceses da propriedade dos Rotschild, que jogaram com as cores da família e depois fundaram um clube que ainda existe, o First Viena.
O impacto da presença britânica foi aumentado pelos contatos futebolísticos de Viena com o restante do Império Austro-Húngaro. Em 1897 os membros do Vienna Cricket criaram um torneio que logo foi aberto a clubes de todo o império, embora na prática isso significasse somente Praga, Budapeste e Viena. A competição atraiu bastante interesse e status. As rivalidades entre os estados no interior do império, diante de nacionalismos crescentes, apimentavam os primórdios do desenvolvimento do futebol na Europa Central. A estes poderosos ingredientes para o desenvolvimento do futebol, Viena adicionou mais dois. Primeiro a classe operária vienense criou seu próprio time quando em 1898 os proprietários de uma fábrica de chapéus fundaram o Wiener Arbeiter (trabalhador) FK. Embora no ano seguinte fossem obrigados a mudar o nome para o menos obviamente proletário Rapid Wien, agora estava presente um sólido componente de classe operária à mistura. Em segundo lugar, times britânicos e treinadores britânicos vinham a Viena com grande regularidade. Como na América do Sul, serviam de padrão comparativo, incentivo e modelo. Em 1911, Viena já tinha sua própria liga.
O futebol húngaro começou como um agregado da ginástica nos ginásios de Budapeste no final da década de 1880. O primeiro time a ser organizado a partir dos ginásios foi o Újpest Sport TE. Nacionalistas liberais dissidentes de um ginásio bem conservador criaram o Athletic Club of Budapest em 1888 que depois seria conhecido como MTK, atraindo membros, jogadores e torcedores sobretudo entre os intelectuais e judeus da cidade. Seu eterno inimigo de classe e esportivo, o Ferencváros, surgiu em um subúrbio de classe trabalhadora em 1899. Dois anos depois a cidade tinha treze equipes que disputaram o primeiro campeonato nacional húngaro. Como em Viena, em Budapeste o futebol estava aberto aos pobres urbanos. Mesmo com um país atrasado economicamente, o público e a qualidade eram suficientes para que o Ferencváros construísse um novo estádio em 1911, sendo seguidos pelo MTK que no ano seguinte construiu um estádio ainda maior para 20 mil pessoas.
Em Praga o tchecos havia adotado muito cedo a sua própria versão de ginástica nacionalista: o Sokol, inventado em 1862 para libertar os eslavos da dominação germânica e sua ginástica: o Turnen. Os clubes de Sokol criavam um senso de solidariedade entre os tchecos e desempenharam um papel importante na formação de uma sociedade civil em uma sociedade tcheca em nascimento. O futebol parecia pouco eslavo à primeira vista e portanto começou fora dos ginásios. Mas para os intelectuais tchecos os ventos da modernidade sopravam de Londres e Viena e o Sokol tinha a marca autoritária que ele pegara emprestado do original alemão. E o futebol era o caminho esportivo para o mundo moderno e a independência. O Slavia Prague (1892) era a principal equipe da época e funcionou como um clube esportivo, uma sociedade de língua tcheca, um clube literário e um local de reunião para liberais, nacionalistas, estudantes e intelectuais. O outro time mais importante da cidade, o Sparta, foi criado em 1893 e logo caiu nas graças da classe trabalhadora. Juntos eles formavam a base da liga de Praga, que já funcionava na década de 1890.
A relação entre padrões de urbanização e industrialização por um lado e a chegada do futebol por outro, não é linear, mas nos casos do Leste da Europa e dos Balcãs certamente há uma relação muito forte. Praga, Viena e Budapeste haviam aderido ao futebol abertamente, mas o mesmo não aconteceu em pequenas cidades e nas regiões rurais desses países. Quando o jogo chegar aos Balcãs e ao Leste, serão pequenos grupos de jovens ricos que irão sustentá-lo.
O primeiro país dos Balcãs onde o futebol chegou foi a Grécia, exatamente aonde os laços econômicos com a Inglaterra eram mais fortes. No início da década de 1890, banqueiros britânicos, pastores anglicanos e adidos militares belgas começaram a jogar futebol com gregos de classe alta, muitos dos quais haviam estudado na Inglaterra. As regras estavam disponíveis em grego em 1895 e já havia uma federação grega de futebol em 1899.
Nas províncias iugoslavas do Império Habsburgo, embora haja registro de jogos na década de 1870, na falta de uma colônia britânica significativa, os jogos organizados só começaram vinte anos depois. Tendo começado entre os artesãos e a classe média de Belgrado, rapidamente foram abraçados por estudantes universitários que aderiram em massa ao futebol. Tornou-se um jogo popular entre os nacionalistas e não um jogo aristocrático. Um processo similar de desenvolvimento tardio mas rápido ocorreu nas cidades croatas de Zagreb e Split, que voltaram-se para o futebol com o mesmo gosto. Em um claro paralelo com a onda de nacionalismo crescente e separatismo, a Croácia, ainda uma província Habsburgo, criou sua própria federação nacional de futebol em 1912 e seu primeiro campeonato em 1913.
A Romênia, apesar do seu aparente atraso e de sua localização no extremo leste, também adotou o futebol com rapidez. O primeiro jogo foi registrado em 1888 e em 1890 Iuliu Weiner, que havia sido educado na Inglaterra, retornou a sua cidade (Arad) com o kit padrão do entusiasta: uma bola, um livro de regras e o entusiasmo do convertido. Na capital, Bucareste, e nos campos de petróleo de Ploiesti, o futebol também se desenvolveu graças à presença de comunidades significativas de britânicos, americanos e alemães. A federação nacional romena foi criada em 1909 e logo um campeonato nacional. De início o futebol ainda era uma espécie de hobby bizarro de estrangeiros, estudantes e adolescentes.
As últimas áreas do Leste da Europa nas quais o futebol se desenvolveu eram Polônia e Bulgária. Na Polônia a presença britânica era mínima afora da cidade têxtil de Lódz onde gerentes ingleses e trabalhadores parecem ter introduzido o futebol. A situação política da Polônia era complicada, porque o território estava dividido entre a Alemanha, a Rússia e o Império Austro-Húngaro. Qualquer forma de organização polonesa independente era tratada com suspeição e certo desprezo por alemães e russos. Nas terras do Império Austro-Húngaro o controle era menor e foi ali, em Cracóvia, que se formaram os primeiros times poloneses, formados por estudantes e jovens de classe média. A formação de uma federação polonesa e de uma liga polonesa ocorreriam somente depois da reorganização do mapa político após a Primeira Guerra Mundial.
A Bulgária só se libertou do Sultanato Otomano depois da Guerra de Independência em 1908. Até então o país estava sob o domínio de uma classe dirigente turca que tratava o futebol com desgosto político e teológico, oficialmente desencorajando a prática do jogo como seus superiores em Istambul. Preocupada em buscar pessoal treinado para suas escolas, a Bulgária contratou professores suíços na década de 1890 e um deles, George de Regibus, foi o primeiro a trazer uma bola para o país em 1896. Mesmo assim, a capital Sofia só foi ter seu primeiro time de futebol em 1912. Era muito tarde. Porque a Guerra dos Balcãs (1912-3) e a Primeira Guerra Mundial fizeram cessar o desenvolvimento do futebol búlgaro, que só seria retomado na década de 1920.
V.
O dinamismo do futebol na América do Sul e na Europa Central no final do século XIX tinha muitas fontes, mas dois elementos foram comuns a ambas culturas futebolísticas: a rápida passagem do jogo dos pés das elites para os pés dos pobres urbanos – e, como consequência, a emergência de poderosas identidade coletivas ligadas a clubes de futebol. Em ambas regiões, o futebol era bastante concentrado em determinadas cidades e as rivalidades futebolísticas giravam em torno de etnicidade, classe e vizinhança. Na Itália e na Espanha (e em certa medida em Portugal, cujas taxa de urbanização e de industrialização eram mais lentas), as classes trabalhadoras não ganharam acesso ao futebol como jogadores ou público de massa até depois da Primeira Guerra Mundial. Ao invés de representar as divisões de classe da sociedade, as fontes emocionais e culturais dos primórdios do futebol no Mediterrâneo Ocidental baseavam-se em identidades regionais e urbanas. Em Portugal as rivalidades futebolísticas alcançaram força máxima na oposição entre norte e sul, Porto e Lisboa. Na Itália, elas eram provenientes de conflitos entre os expatriados e a burguesia urbana italiana no interior das cidades ou entre regiões e cidades; na Espanha, política e futebol começaram a cristalizar como um conflito entre as forças do centralismo de Castela e os nacionalistas étnicos, linguísticos e ocasionalmente separatistas da Catalunha e do País Basco.
É totalmente inesperado que o futebol tenha conseguido mobilizar tais energias sociais no Mediterrâneo Ocidental, que até o final do século XIX era praticamente um deserto esportivo. As aristocracias rurais de Itália e Espanha gostavam de caça e tiro. Nas cidades da Espanha as touradas haviam se tornado parte da vida urbana, mas tinham um ethos mais próximo de destas e jogos de pequenas cidades e aldeias. Os espanhóis pouco se preocupavam com o preparo físico: foi somente em 1919 que o exército espanhol adotou um treinamento físico.
Na Itália as coisas eram um pouquinho melhores, pois a aristocracia era menos rural do que na Espanha e oferecia mais apoio e patrocínio ao esporte em geral e ao futebol em particular. Quando o futebol apareceu não sofreu nenhuma concorrência de outros esportes (que não eram praticados) e foi abraçado pela pequena elite de jovens de classe alta ansiosos para participar de alguma atividade física, jogadores com tempo e energia para gastar.
Na Espanha, a Copa do Rei, surgida em 1902, foi disputada por cinco clubes, provenientes das três regiões que moldariam o futebol espanhol ao longo de sua história: Athletic Bilbao do País Basco; Barcelona e Espanyol da Catalunha; e New Madrid FC e Madrid FC, que em cerca de uma década se tornaria o Real Madrid. Se somarmos o Valência e o Atlético de Madri, formado por migrantes bascos, temos praticamente todos os vencedores do campeonato espanhol em sua história. O futebol em Madri começou numa escola de elite, onde havia quem tivesse estudado na Inglaterra. Mas de início as regiões que desenvolveram o futebol na Espanha eram as mesmas que estavam sofrendo grandes transformações sociais e econômicas: voltadas para fora e normalmente situadas na costa.
O País Basco era uma delas, pois era um polo industrial, com uma economia baseada no ferro, no aço e na construção de navios. Bilbao, uma cidade portuária voltada para o Atlântico, tinha mais contatos com a Inglaterra do que qualquer outra região da Espanha. Operários e técnicos ingleses já disputavam partidas em Bilbao no início da década de 1890. Muitos jovens de Bilbao haviam sido educados na Inglaterra e conheciam o futebol. O Athletic Bilbao foi criado em um café no ano de 1901. Na sua primeira década de existência o clube ganhou quatro Copas do Rei. O clube sempre esteve ligado ao nacionalismo basco, apoiado fortemente por empresários que também apoiaram o Athletic Bilbao, permitindo que a agremiação tivesse um estádio (La Catedral) já em 1913. Neste momento já havia se adotado, ao menos informalmente, a política de utilizar somente jogadores bascos, formados pelo próprio clube.
Como o País Basco, a Catalunha possuía sua própria linguagem, tinha uma consciência clara da sua distância para a Espanha e para a identidade espanhola, estava em conflito com Madri e no final do século XIX experimentou uma espécie de boomeconômico e industrial. Entretanto, a maior parte da burguesia catalã era consideravelmente mais conservadora do que a burguesia basca e ficou inicialmente chocada diante de qualquer atividade esportiva que envolvesse a exibição de um pedacinho do corpo. Sendo assim, foi uma mistura de estrangeiros e migrantes de outras regiões da Espanha que iniciou o futebol na região. O FC Barcelona, por exemplo, foi criado por um suíço, Hans Kamper, que depois de colocar um anúncio no jornal conseguiu juntar um bando de britânicos que juntamente com ele criaram o clube.
O nacionalismo catalão ia a todo o vapor, ajudado pela fraqueza do Estado espanhol depois da perda de parte do seu império ultramarino: Filipinas e Cuba para os Estados Unidos em 1898. Em 1901 é criada a Liga Catalã e uma federação de futebol própria três anos depois, ambas antes das suas correspondentes nacionais. Logo o escudo do Barcelona adquire a cruz de São Jorge, padroeiro da Catalunha e as faixas verticais amarelas e vermelhas da bandeira nacional da Catalunha.
A potência das identidades regionais na vida espanhola torna-se clara pelo que ocorre no futebol nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, pois à medida em que o esporte se difundiu, mais cidades e regiões adquiriram um focos de identidade cívica relacionado a seus clubes: na Galícia, Deportivo La Coruña foi fundado em 1906; em 1905 a cidade de Sevilha adquiriu um clube do mesmo nome, seguido em 1907 pelo Betis. A fraqueza da centralização fica patente na demora em criar uma federação nacional, o que só ocorre em 1913. Uma seleção nacional só entra em campo em 1920.
Na Itália, vários fatores prejudicaram ou ao menos atrasaram o desenvolvimento do futebol. O país só foi unificado em 1861 e de início não havia uma máquina administrativa bem organizada. Como consequência, o estado italiano não conseguiu introduzir a educação física nas escolas ou nas forças armadas. As duas instituições verdadeiramente nacionais eram frontalmente contra o esporte: o catolicismo e o socialismo. Ambos suspeitavam das consequências sociais do esporte. Este vácuo foi preenchido pelas intensas e duradouras identidades locais, pelas rivalidades entre cidade e no interior das cidades que vieram a dominar o futebol italiano.
A Igreja Católica italiana tinha uma organização capaz de fazer desenvolver o esporte e estava bastante preocupada com a formação dos jovens. Mas inicialmente ela considerava o esporte, assim como a política, uma distração maligna dos rigores da prece e do estudo. Mas como os jovens queriam praticar esporte aos poucos a Igreja criou uma teologia esportiva católica bem restrita. A ginástica, repetitiva e disciplinada, era aceita. Já o futebol era anglo-saxão, logo protestante e inaceitável.
Já o movimento socialista italiano esteve sempre um passo à frente da classe operária, o que o prejudicou. Na verdade, até a primeira década do século XX nem havia classe operária a organizar. Já que ainda não havia questões sérias de organização industrial e de luta econômica, os socialistas passaram a se interessar por questões de cultura, ideologia e lazer. A maioria dos ativistas era contra os esportes. Em um congresso do Partido Socialista em 1910, o esporte competitivo moderno foi desprezado como um espetáculo degradante e explorador, que contribuía para a degeneração do povo. Os mais pragmáticos afirmavam que o partido tinha que aceitar o esporte, tentando torná-lo ideologicamente mais íntegro.
Na ausência do Estado, da Igreja e do Socialismo, o futebol italiano foi criado nas cidades mais industriais e cosmopolitas do país como Gênova, Turim e Milão por um pequeno grupo de homens de negócio britânicos e suíços, por homens de negócios italianos, aristocratas entusiasmados e estudantes entediados de classe alta. Entre a classe alta das cidades, a popularidade do futebol começou a crescer. Mas isto era um fenômeno sobretudo do norte da Itália, pois no sul o processo foi bem mais lento. Começou a se dar a formação de clubes dissidentes em cidades grandes como resultado de disputas no interior da burguesia, o que acirrou as intensas rivalidades presentes nos clássicos entre cidades.
Rebeldes e dissidentes dos clubes do norte foram uma ameaça bem maior do que os clubes do sul, que demoraram a participar do campeonato nacional. Em Turim, Torinese e Ginnastica, clubes formados por cavalheiros estrangeiros, foram desafiados pelos jovens do Juventus. Em Milão, o anglófilo AC Milan logo teve que enfrentar o dissidente Internazionale. A chama do nacionalismo italiano no futebol foi inflamada ainda mais quando a federação italiana decidiu banir Milan, Genoa e Torino, que insistiam em por em campo jogadores estrangeiros. Numa solução de compromisso, revogou-se a medida em troca da adoção do nome calcio para o jogo. Na opinião de Goldblatt, foi uma vitória simbólica baseada numa história inventada.
VI.
Se a articulação de industrialização, urbanização e contatos comerciais com a Inglaterra fossem os únicos determinantes do ritmo de desenvolvimento do futebol em uma nação, então a França e a Alemanha com certeza deveriam constar entre as principais culturas futebolísticas às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Todavia, em ambas, embora o futebol fosse um elemento estabelecido da cena esportiva, não era de forma alguma tão difundido, organizado ou popular como era em nações menores da Europa Ocidental ou da América do Sul. Na França, o ciclismo era o esporte mais popular e comercializado. Tratando-se de esporte de inverno, tanto em termos de participação quanto em termos de presença de público, o rugby era ligeiramente superior ao futebol. Na Alemanha, a ginástica Turnen continuava a ser o esporte nacional não-oficial; o futebol existia à sua sombra. A despeito do crescimento de uma nova e vasta região industrial nos subúrbios de Paris e da intensa industrialização do Ruhr e da difusão geográfica da indústria manufatureira em ambas economias, o futebol praticamente não havia alcançado os corações e os pés da classe operária francesa ou alemã.
Na França, o esporte moderno havia nascido do trauma da derrota militar na Guerra Franco-Prussiana em 1870. A superioridade germânica era atribuída à fraqueza de corpos e mentes dos franceses em contraste com os alemães, fortificados por sua disciplinada ginástica nacional. Sendo assim, surge todo um movimento de clubes de ginástica franceses, com nomes denotando nacionalismo: La Revanche, LaPatriote, Le Régénératrice… Os eventos normalmente começavam com uma declaração pública de ódio aos alemães antes do início das atividades e rotinas que eram bastante semelhantes àquelas praticadas por academias do outro lado do Rio Reno.
Mas era o ciclismo o grande esporte nacional francês. No final da década de 1870 já havia um circuito semi-profissional de corridas. A bicicleta, ao ser aperfeiçoada, se transforma em um meio simples e eficiente de transporte. Em 1893 havia 130 mil bicicletas na França, eram 3,5 milhões em 1914. Logo as competições de ciclismo recebem o influxo proveniente da publicidade e de patrocínios. Em 1903 é criado o Tour de France, perfeito para um país com uma população bastante dispersa e no qual a população rural utilizava bastante a bicicleta.
Como já se disse aqui, antes da Primeira Guerra Mundial, o rugby era mais popular em França do que o futebol. Enquanto os nacionalistas de classe média adotavam a ginástica, o campesinato e as classes baixas das cidades ligavam-se ao ciclismo, foi a jovem elite anglófila ds metrópoles que abraçou os esportes ingleses. O Barão de Coubertin, por exemplo, o fundador do Movimento Olímpico, era um dos aristocratas franceses que acreditava que a sobrevivência da nobreza francesa dependia da adoção de algumas das estratégias da mais bem sucedida aristocracia britânica. O esporte oferecia um domínio em que a herança marcial da nobreza e sua sua evidente superioridade moral poderiam florescer e ser transmitidas ao novo componente burguês das classes dominantes francesas. Os esportes ingleses também seriam capazes de tornar mais robustos os jovens frágeis e hiper-intelectualizados provenientes dos liceus.
E são exatamente os estudantes de prestigiosos liceus franceses que criam os primeiros clubes: o Racing Club (1882) e o Stade Français (1883). Só que não eram clubes de futebol, eram clubes de rugby, havendo também quem praticasse remo e corrida. O rugby era tão popular à época que a final nacional de 1911, apimentada pela rivalidade entre Bordeaux e Paris, foi assistida por 28.000 pessoas.
Enquanto isso, o futebol andava vagarosamente. Em 1872 já havia sido jogado em Le Havre por jovens ingleses formados em Oxford e Cambridge. Mas os dois primeiros clubes de futebol só serão criados em 1891, o White Rovers, formado por escoceses que viviam em Paris e o Standard Athletic Club, formado por ingleses também residentes na capital francesa. Logo se formou o Le Club Français, formado por estudantes franceses. E agora Racing Club e Stade Français aderem também ao futebol. Em 1894 já se disputava um campeonato “nacional” com seis clubes, todos de Paris.
Uma vez começado o processo, clubes começam a pipocar por toda a França, mas sobretudo nas regiões mais industrializadas ou que tinham conexões mais significativas com a Inglaterra e a Suíça. Por volta de 1900 já havia mais de cem clubes, concentrados em Paris, nos portos do Canal da Mancha, nas regiões industriais em volta de Lille e Lens e no sudeste em Marselha, Nîmes e Sète. A França, todavia, era muito maior do que isso, com zonas rurais e regiões que desconheciam o futebol. Somente depois da Primeira Guerra é que o futebol torna-se realmente nacional e parte da cultura francesa.
Na Alemanha, os jogos com bola ingleses chegaram através de britânicos expatriados e um punhado de educadores alemães de classe alta no início da década de 1870. Os primeiros clubes de futebol formados foram o Hannover em 1880, cidade que tinha forte ligação com a Inglaterra e em Bremen, que tinha vínculos comerciais muito fortes com a Grã-Bretanha. As regras do jogo foram traduzidas em 1891 e por volta de 1900 havia cerca de 200 clubes e 10 mil jogadores regulares. Eram predominantemente da elite de classe alta e da baixa classe média com ocupações burocráticas. A partir de 1891, com uma reforma trabalhista que livrou os funcionários, técnicos, vendedores e mecânicos não-especializados do trabalho aos domingos, estas categorias estavam liberadas para jogar futebol. O mesmo não podia ser dito da classe operária, que continuou presa ao antigo horário de trabalho semanal.
Os social-democratas germânicos e seus aliados nos sindicatos suspeitavam sobremaneira dos esportes burgueses. Sua modalidade de marxismo super-ortodoxo e guerra de classes tornava impensável qualquer relação com a florescente cultura futebolística. Já os burocratas estavam mais próximos das elites que praticavam o futebol e tinham vontade de imitá-las, elevando seu status. Os novos clubes de futebol do final do século XIX imitavam os costumes e modas dos clubes aristocráticos, adotavam a etiqueta linguística da sociedade polida e buscavam o reconhecimento e status que as vitórias e as medalhas ofereciam.
A difusão e o significado do futebol na Alemanha eram limitados pela oposição tanto da Igreja Católica quanto das Igrejas Protestantes quanto a jogos disputados aos domingos. E também pela quase ausência da classe trabalhadora, jogando ou assistindo. O fator mais relevante, todavia, foi a oposição dos defensores do movimento de ginástica nacional. Ele nascera, na verdade, como reação a duas derrotas para Napoleão em 1806, que levaram a uma ampla reforma do exército alemão, que dentre outras coisas insistiu numa melhora do condicionamento físico e da coordenação dos recrutas. O meio para isso foi a introdução da educação física nas escolas. Para enfrentar esse desafio, Friedrich Ludwig Jahn inventou o Turnen, uma forma de ginástica distintamente alemã. Não era um esporte e sim uma alternativa ao esporte. Era um sistema de exercícios físicos que não era orientado para a competição, eficiência ou performance individual e sim para um empreendimento nacional coletivo de renascimento físico, espiritual e moral. O Turnen capturou a imaginação das classes médias germânicas, que na metade do século XIX eram o apoio principal do movimento de unificação e de reforma da Alemanha. Por todo o mundo de língua alemã o Turnen se difundiu criando uma rede de organizações que constituíam uma sociedade civil de classe média. Ele gerava um local de encontro, uma fonte de identificação e solidariedade e nos grandes festivais eles criavam uma arena pública na qual as tradições inventadas do novo nacionalismo germânico podiam ser mostradas.
Inicialmente os adeptos do Turnen se referiam aos esporte ingleses com desdém. Aos poucos, à medida em que o futebol se torna mais popular, os argumentos e críticas têm que se tornar mais sofisticados. Um dos ideólogos do Turnen, Otto Heinrich Jager, em 1898 escreveu uma polêmica contra o futebol, que ele chamava de “A doença inglesa”. Jager achava que era um jogo sem disciplina moral, física ou espiritual, desprovido de propósito sério e um incendiário descontrolado do individualismo grotesco. Isso no momento em que as relações entre Alemanha e Inglaterra não iam nada bem, por conta de disputas de território na África e em outras regiões. O fato de ser proveniente da Inglaterra e seu aparente desrespeito pela ordem tornava o futebol profundamente subversivo e suspeito em alguns círculos.
Para contrabalançar isso, a federação alemã de futebol (DFB), fundada em 1900, germaniza a linguagem do futebol (goal torna-se Tor, por exemplo). O documento de fundação da DFB enfatiza tanto o patriotismo quanto a utilidade imperial do futebol, descrevendo o jogo como dois grupos de onze guerreiros em estado de guerra. O principal objetivo sendo declarado como mover uma bola de couro no território inimigo. A DFB também tentou, da mesma forma que os italianos, demonstrar uma origem alemã, completamente mítica, de jogos de futebol desde a Idade Média até o tempo presente.
O primeiro campeonato nacional foi realizado em 1903, de forma caótica. Karlsruhe, favorito, foi alijado da final por um telegrama falso que avisava que o jogo havia sido suspenso. No dia da final, demorou uma hora e meia para se achar uma bola em condições de ser utilizada. O público? Apenas 500 pessoas. Em 1904 não houve torneio. Mas em 1905 houve e a final contou com a presença do Príncipe Imperial, ajudando a elevar o tão decaído status do futebol até então. Na década que antecedeu a primeira guerra mundial, o futebol cresceu em importância, aceitação e popularidade. Em 1910, o exército e a marinha introduzem o futebol em seus programas de preparação física e estabelecem competições internas e externas. Nas fronteiras do esporte, já estavam surgindo as primeiras equipes operárias, assim como clubes de jovens de classe operária na região do Ruhr. Somente quando estas zonas forem incorporadas ao futebol alemão é que o jogo deixará de ser um esporte de uma minoria e uma curiosidade amadora.
VII.
No Leste da Europa, finalmente o futebol chega à Rússia tzarista e à Turquia Otomana. Os dirigentes de ambos, paranóicos acerca do seu relativo atraso econômico e militar, encaravam a cultura européia com medo, ódio e suspeita. Mas também com fascinação e um reconhecimento prático de que a sua sobrevivência dependia da imitação dos centros mais adiantados.
Na Rússia, apesar do gosto que a aristocracia tinha por esporte (iatismo, remo e tênis, dentre outros), havia uma barreira social entre ela e as novas classes urbanas. A classe média abraçou a ginástica e o ciclismo (profissional e com público), enquanto o futebol era visto como algo bizarro. Para variar, o futebol era mantido por uma comunidade de expatriados britânicos e outros europeus em São Petesburgo, cidade que era chamada de janela para o Ocidente. Ali se formaram os primeiros clubes, como o Viktoria em 1894, composto por britânicos e alemães. Em 1896 as regras do jogo são traduzidas para o russo e o primeiro jogo organizado entre clubes ocorre no ano seguinte. Em 1903 já havia três clubes em São Petesburgo, número que dobra no ano seguinte. No intervalo das partidas, tomavam chá inglês. Usavam a língua inglesa para descrever o jogo e os jogadores ingleses eram as estrelas do nascente futebol russo. Por outro lado, havia ressentimento e suspeita dos russos em relação aos estrangeiros.
Por exemplo: em 1903, o time russo Sport protestou fortemente que nenhum dos seus jogadores e, na verdade, nenhum jogador russo houvesse sido escolhido para jogar em uma seleção de São Petesburgo. Depois, em um jogo contra o Nevsky, um clube de uma fábrica inglesa, um dos jogadores do Sport, Christov, foi expulso e banido por um ano por reagir a um carrinho violento do jogador inglês Sharples. A imprensa esportiva russa, indignada, alegava que Sharples, tentara estrangular Christov e exortava os clubes russos a se unirem e formarem uma liga própria. Mas serão os clubes ingleses que sairão da liga, criando uma exclusiva, para depois retornarem à liga principal em 1911. Doravante, somente clubes russos venceriam as competições.
Em Moscou, localizada no interior, sem acesso ao mar, a entrada do futebol foi mais lenta. Lá o futebol organizado só começou em 1894 com um supervisor de fábrica inglês chamado Harry Charnock e que era um torcedor apaixonado do Blackburn Rovers. Ele cria um time aberto à participação dos operários russos, em parte para tentar afastá-los do seu lazer predileto em dias de descanso: beber vodka. Não é surpreendente que o OKS Moska jogasse nas cores azul e branca do Rovers. Ao contrário de São Petesburgo, em Moscou a divisão era de classe social e não entre estrangeiros e russos. De um lado, a elite, nativa e estrangeira, com seus clubes exclusivos, jogando entre si. Do outro, o futebol jogado nos subúrbios (Dachas) com clubes organizados por trabalhadores.
A novidade é que nas dachas, pela primeira vez, havia um sistema de transportes para os pobres e as classes médias, fator fundamental para a organização do futebol junto às classes baixas. De fato, foi criada uma liga suburbana para cada uma das cinco linhas de transporte à disposição. Já se falava que os jovens estavam deixando de lado os bailes para participar das competições. Nas dachas o futebol era jogado no verão, exatamente na época em que os camponeses, após a colheita, passavam um tempo na cidade. Depois, levavam o futebol consigo para as zonas rurais.
Havia muitas barreiras à participação da classe operária: sua sistemática exclusão social, o horário de trabalho muito alongado, sua pobreza material e enfraquecimento físico, a ausência de transportes e locais para jogar. A paranóia da máquina tzarista, aumentada depois da tentativa de revolução em 1905, suspeitava de toda e qualquer organização da classe trabalhadora, inclusive de clubes esportivos, vistos como um perigo revolucionário. Os árbitros de futebol eram proibidos de apitar jogos de trabalhadores. Operários da região sudeste de Moscou chegaram a jogar em cemitérios, antes de serem expulsos pela Igreja. Tudo isso só vai levar a uma radicalização do movimento dos trabalhadores, que no campo do futebol explodirá em protestos ou na formação de organizações clandestinas ou alternativas.
O Dikei, ou futebol selvagem, isto é, sem regulação se espalhou por todos os terrenos baldios de Moscou e São Petesburgo. Na segunda década do século XX as autoridades perceberam que sua estratégia falhara e finalmente os trabalhadores tiveram permissão para formar seus próprios clubes e para ingressarem nas organizações futebolísticas existentes, bem como para formar suas próprias ligas.
Agora o futebol passava a ser visto como parte da modernização que englobava a economia, a política e a sociedade. De acordo com a imprensa, era a única esfera em que o país estava fazendo real progresso. Neste momento o jogo já alcançava cidades provincianas como Odessa, Kiev e Kharkov e havia jogos entre estas cidades. Em 1911 tinha ocorrido um jogo público entre mulheres, o que era surpreendente, dada a sua posição na sociedade russa. Mas na verdade, as mulheres representavam 30% do público dos jogos, que agora eram assistidos por multidões entusiasmadas, enquanto os placares eram transmitidos por telégrafo.
Em 1912, depois que são resolvidas as intermináveis disputas entre Moscou e São Petesburgo, é criada uma federação russa de futebol. Mas o futebol russo ainda tinha um longo caminho a percorrer: quando enfrentaram a Alemanha perderam de 16 a 0.
No Império Otomano havia uma antipatia ainda maior pela modernidade ocidental. Em um esforço desesperado para conter as consequências corrosivas de ideologias estrangeiras, o regime estabeleceu uma imensa rede de vigilância, espiões e censura. Idéias ocidentais perigosas e seus defensores eram impiedosamente caçados, enquanto os elementos indígenas e islâmicos da cultura otomana eram elogiados.
O primeiro jogo de futebol foi disputado por volta de 1890 por pessoas da comunidade britânica residente em Izmir. Logo foi adotado também pela colônia grega e depois pela colônia judaica e por outras minorias, incluindo franceses, italianos e armênios. O problema para o sultanato seria o vírus esportivo alcançar também a população muçulmana. Em termos teológicos, o futebol era condenável por vários motivos: tirava a atenção dos estudantes dos seus estudos e do estudo do Corão; o uso de shorts levava à exposição do corpo; a cabeça do neto de Maomé havia sido chutada por seus assassinos, este último item tornava o futebol uma blasfêmia.
De nada adiantou. Havia algo de irresistível no jogo para os jovens turcos altamente educados. Apesar da repressão, em 1905 é formada a Liga de Istambul. O primeiro clube já fora criado dois anos antes, o Besiktas, que tinha a proteção de um conselheiro do sultão. Depois veio o Galatasaray, formado por alunos de uma escola de elite em 1905. E o Fenerbahçe em 1907, criado por estudantes turcos de uma prestigiosa escola francesa.
Em 1908 morre o sultão e ocorre uma reforma política com uma abertura ao Ocidente, o que beneficia o futebol, havendo a criação de novos clubes e de novas ligas. Agora até os muçulmanos têm sua liga a Liga da Sexta-Feira. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, somente em Istambul havia cerca de 5 mil jogadores e o público das partidas mais importantes era substancial.
http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/the-ball-is-round-capitulo-5-o-grande-jogo-e-o-imperio-informal-difusao-internacional-do-futebol-1870-1914-parte-b/