/The ball is round, Capítulo 7: As regras do jogo: o futebol internacional e a política internacional, 1900-1934 – Parte A

The ball is round, Capítulo 7: As regras do jogo: o futebol internacional e a política internacional, 1900-1934 – Parte A

 

The ball is round, Capítulo 7: As regras do jogo: o futebol internacional e a política internacional, 1900-1934 – Parte A

Marcos Alvito

(da série Leituras para pensar o futebol)

I.

No primeiro terço do século XX, as elites americanas e europeias pensavam o futebol e a política internacional a partir de três diferentes visões: de que futebol e política internacional deveriam ser separados; de que o esporte era guerra ou ao menos a política por outros meios; e por fim, de que o esporte poderia servir a uma utópica política de paz. No grande arco da história mundial entre a fundação da FIFA em 1904 e a Copa do Mundo de 1934, a visão “olímpica” do futebol, na verdade de qualquer esporte, como um pacificador universal, foi reduzida a frangalhos. A política nacionalista esmagou estas esperanças, sequestrando tanto a realização de competições esportivas quanto o significado de que foram investidas diante do público doméstico e na arena política internacional. A posição britânica – de que a política simplesmente não era apropriada ou relevante para o jogo – fosse qual fosse o seu real valor, tornou-se impossível de sustentar diante de oponentes que crescentemente revestiam os jogos de futebol e o talento futebolístico de um peso cultural e político.

Os “olímpicos” tinham seus apoiadores dentre as elites do mundo industrializado, e um eleitorado majoritário dentre os esportes que continuavam resolutamente amadores como o atletismo. Muitos dentre os fundadores da FIFA compartilhavam esta visão de pacifismo e universalismo que empolgava o Comitê Olímpico Internacional. Entretanto, a carnificina da Primeira Guerra retirou boa parte do seu otimismo; cinco olimpíadas (1896-1912) não pareceram ter freado nem um pouco as rivalidades entre impérios que eventualmente devastaram a Europa. Quando o exercício grotesco de propaganda que foi a Olimpíada de Berlim em 1936 aconteceu, já havia desaparecido qualquer resíduo de esperança de que o espírito olímpico fosse suficientemente poderoso para neutralizar as paixões patológicas do nacionalismo.

Na Inglaterra, sobretudo antes do final da década de 1920, havia um consenso geral entre as burocracias do futebol e do Ministério do Exterior (Foreign Office) de que futebol e política não se misturavam nem deviam ser misturados. O críquete, mais próximo à classe social e aos corações esportivos da elite diplomática, era visto como um cimento cultural vital para fundir o Império e as colônias, mas o futebol não tinha tal papel. Todavia, estava se tornando cada vez mais óbvio para observadores políticos e esportivos que nem todo mundo pensava assim. A Inglaterra podia se apegar a sua visão de um esporte amistoso e despolitizado, mas se os seus oponentes – estes outros, estes europeus – não o faziam, então o jogo estava perdido. Quando o cônsul britânico em Turim fez um relatório ao Ministério do Exterior em 1928 sobre o significado social do futebol, ele argumentou que na Europa Continental se pensava com “um diferente ângulo mental”.

Embora a América do Sul e a Europa Continental tivessem seus próprios pequenos grupos de olimpianos e a sua própria versão de ‘mantenham a política longe do futebol’, foram os proponentes do ‘esporte como política por outros meios’ que vieram a ditar as regras do jogo. Antes da Primeira Guerra, como temos visto, nacionalistas e forças armadas em toda a Europa viram a participação massiva como um instrumento de regeneração, sobrevivência racial-biológica e vantagem militar. O esporte frequentemente era descrito na linguagem militar para fazer com que ele parecesse apropriado ao treinamento militar. Agora, quando a guerra real começasse, o esporte providenciaria as metáforas para a sua condução. O triunfo do modelo ‘esporte como política’ no futebol internacional era em parte o resultado da política do pós-guerra – ultranacionalistas, mais notadamente os fascistas europeus, constantemente alcançavam poder e influência nas décadas de 1920 e 1930. E a recusa britânica em assumir uma liderança decisiva na criação do futebol internacional deu aos fascistas espaço para jogarem.

A grande onda de britânicos aventureiros, voltados para o exterior, que difundiu o futebol por todo o mundo no final do século XIX não teve correspondente internamente por uma hierarquia futebolística aventureira e voltada para o exterior. Na verdade, as condições peculiares dos primórdios do futebol britânico e do relacionamento da nação com a política internacional europeia produziu o contrário: uma elite que tendia ao isolacionismo e a uma arrogância extrema muito mal mascarada. A precoce e compreensível comercialização do futebol britânico deu a ele uma vantagem inicial sobre outros países que criou-se um abismo em termos competitivos. A já morna relação entre o futebol britânico e a FIFA antes de 1914, tornou-se ainda mais fria por conta das feridas e suspeitas produzidas pela Primeira Guerra.

Embora as associações de futebol britânicas depois retornassem a participar da arena mais ampla, elas não estavam dispostas naquele momento a acabar sendo envolvidas em assuntos europeus. Em certo sentido isso foi libertador, porque a ausência britânica abriu o palco global a novos poderes futebolísticos: tanto a América do Sul quanto a Europa Central foram inovadores decisivos no desenvolvimento do futebol internacional. Mas havia um preço a pagar também. No vácuo deixado pela ausência britânica, e a despeito das melhores intenções da FIFA e do seu liberalismo progressista, sincero e cavalheiresco, o futebol internacional se tornou profundamente politizado, um processo que atingiu seu apogeu no entre guerras na Copa do Mundo da Itália de 1934. Em retrospecto, talvez isso fosse inevitável, porque o futebol internacional amadureceu exatamente no momento em que a política ultra nacionalista de massa estava no auge na Europa e na América do Sul. Mais finamente sintonizados com a manipulação do gosto popular, mais prontos e preparados para intervir na cultura de massa do que os impérios europeus decadentes do fim de século, os novos ditadores e populistas das décadas de 1920 e 1930, que desenvolveram um interesse ativo e próximo no jogo, não havendo ninguém para contê-los.

II.

O futebol internacional nasceu em 1872 e suas origens são bastante regionais. É somente na geografia do futebol (e do rugby) que Inglaterra versus Escócia é um encontro internacional. Nos quatro anos seguintes, só houve jogos entre Inglaterra e Escócia, até que em 1876 os galeses enfrentaram os escoceses pela primeira vez, enquanto o primeiro jogo de uma seleção irlandesa foi em 1882. No final do século XIX, a Grã-Bretanha sozinha fazia as regras dentro e fora do campo. Em 1882 os representantes das federações da quatro Home Nations se reuniram e criaram a International Association Football Board (IAFB) que se tornaria o corpo legislativo máximo do futebol mundial. A International Board como a conhecemos no Brasil, imediatamente insistiu no uso de um travessão fixo e sólido para substituir a corda ou fita que se utilizava até então. E organizou o primeiro torneio de futebol internacional: o Home Championships, obviamente com as quatro nações que constituem a Grã-Bretanha. Foi jogado pela primeira vez em 1884 e vencido pela Escócia. O ponto alto da competição era o confronto entre Inglaterra e Escócia. Em 1906, com times predominantemente profissionais, esta partida atraiu 100  mil pessoas ao Hampden Park para verem a Escócia vencer por dois a um. Pouco antes do início da Primeira Guerra o mesmo duelo teve um público de 127 mil pessoas.

Seleções inglesas amadoras de vários tipos jogaram nas Olimpíadas de 1908 e 1912 e fizeram breves excursões na Europa Ocidental e na Escandinávia antes de 1914. Estas equipes foram vistas por seus adversários como representantes oficiais do futebol inglês, mas a FA não lhes atribuiu o status de jogadores da seleção inglesa. Uma equipe inglesa incluindo profissionais e considerada oficial pela FA não jogou sua primeira partida antes de 1908 quando destroçou os austríacos em Viena e os húngaros em Budapeste. Eles repetiram o feito no ano seguinte e foi só. A Inglaterra não jogaria novamente no exterior até 1920. Com os escoceses, galeses e irlandeses era ainda pior. Eles não jogaram nem uma vez no exterior neste período. Em compensação, os clubes amadores ingleses eram muito requisitados e aproveitaram a chance das excursões ao exterior, sobretudo na Europa Central e Ocidental, mas no caso do Wanderers até Moscou. Ao ver que os amadores haviam sido capazes de atrair um significativo público pagante, os clubes profissionais seguiram pelo mesmo caminho. Trinta clubes profissionais ingleses e escoceses jogaram no exterior na década que antecedeu a Primeira Guerra, excursionando pela Europa e América do Sul. Só o Tottenham Hotspurs, do norte de Londres, fez oito excursões entre 1907 e 1914, incluindo uma à Argentina e Uruguai.

As outras federações de futebol foram menos reticentes em relação a jogos internacionais do que a britânica. Na América do Sul, Argentina e Uruguai começaram a se enfrentar – oficialmente – em 1901. Logo depois, Áustria e Hungria em 1902. Os dois confrontos criaram um espetáculo público e uma rivalidade igual ou maior do que o choque entre Inglaterra e Escócia. Com a formação da FIFA em 1904, os franceses, os holandeses, os belgas e os suíços ingressaram no circuito do futebol internacional, seguidos pelos escandinavos e, pouco antes de começar o tiroteio, pela Rússia czarista. Ao lado desta rede emergente de futebol internacional, o início do século XX também assistiu ao desenvolvimento do futebol transnacional. Nos espaços culturais e políticos ainda não dominados pela estados-nação centralizadores e ciosos de suas fronteiras, a cena internacional do futebol estava cheia de anomalias divertidas. Por exemplo: times escoceses, galeses e irlandeses frequentemente participavam da Copa da Inglaterra. Os melhores clubes da Hungria e da Boêmia eram convidados a participar da Der Challenge Cup em Viena.      O Milan e outros times importantes do norte da Itália cruzavam os Alpes para jogar a Chiasso Cup na Suíça desde 1901.

A chave para a existência de um esporte internacional regularizado esteve no desenvolvimento de redes postais entre países, nas linhas de telégrafo e ferrovias, infraestrutura disponível a partir da segunda metade do século XIX. Estas novas redes de comunicação necessitavam da criação de instituições internacionais de regulação e de padronização como a União Telegráfica Internacional, criada em 1865 e a União Postal Universal estabelecida em 1874. Instituições similares foram criadas nos campos comercial, do direito e da nomenclatura científica e sobretudo no que diz respeito à questão do tempo, porque nenhuma sociedade industrializada pode operar e certamente nenhum calendário de eventos pode ser feito sem um tempo único, comum a todos. Na Inglaterra, Greenwich, a despeito de muita oposição francesa, forneceu o padrão global. Neste contexto, tornou-se óbvio para um pequeno grupo de administradores do futebol na Europa Ocidental que algum tipo de regulação internacional sistemática do futebol se fazia necessária.

Da mesma forma que na criação de uma padronização do tempo, esperou-se que a Grã-Bretanha fosse o ponto de referência para o resto do mundo. Em 1902 a federação holandesa enviou à FA a proposta para a criação de tal instituição. A letra ficou zanzando pelos escritórios das Home Nations até que finalmente a FA respondeu, dizendo vagamente que em algum momento e em algum lugar convidariam todos a virem à Inglaterra para uma conversa. O presidente do Ministério dos Esportes da França, Robert Guérin, foi despachado a Londres para intermináveis e improdutivas conversas com Lord Kinnaird, presidente da FA. Sendo assim, Guérin convocou uma reunião das partes interessadas em 1903 e como isso não aconteceu insistiu em 1904. Desta vez a reunião ocorreu em Paris, onde foi criada a FIFA, em francês, a Fédération Internationale de Football Association, contando com a presença de delegados de sete países: Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça. Inicialmente os ingleses não deram muita bola, mas  Alemanha, Áustria, Itália e Hungria todas rapidamente assinaram.

Em 1906 os ingleses finalmente acordaram e a FA começou a formar laços com diversas federações: da Argentina, Chile e África do Sul, todas elas ingressantes na FIFA na década seguinte, assim como os EEUU. Foi aberta uma exceção para Escócia e Irlanda, pois embora pertencessem à Grã-Bretanha, puderam se inscrever na FIFA como se fossem países independentes. A Finlândia e a Noruega, tendo recentemente se tornado independentes da Rússia e da Suécia, respectivamente, marcaram sua entrada no clube dos Estados nações independentes ao se tornarem membros da FIFA em 1908.

Nesta era inicial, a FIFA era um clube de cavalheiros e uma burocracia internacional: seus membros eram exclusivamente homens de classe alta ou profissionais liberais. Torneios internacionais e campeonatos europeus foram planejados em grande detalhe e inúmeras vezes propostos à FIFA, que entretanto nada organizou de fato. Seu trabalho esteve grandemente concentrado em providenciar a papelada para regular o futebol internacional, providenciar árbitros, decidindo quem poderia ingressar na FIFA e quem poderia jogar com quem e quando. Pressionada pelos alemães, a International Board concedeu um voto à FIFA no seu conselho, ao mesmo tempo em que estabelecia que as decisões tinham que ser tomadas por quatro quintos dos membros, o que equivalia exatamente aos quatro votos das Home Nations.

A ausência e a desconfiança da Grã-Bretanha diante da FIFA nos seus primeiros anos significava muito mais do que abdicar do nome da entidade internacional, agora em francês. Significava também que a alma ideológica da associação também era mais francesa do que anglo-saxã. O modelo britânico de deixar a política fora do esporte também estava presente na FIFA, mas era acompanhado por uma versão mais forte e mais articulada do olimpismo cosmopolita, sem obsessão com o amadorismo. Antes da guerra, a FIFA e seu pequeno círculo de entusiastas estavam engajados na ideia de um futebol despolitizado e de criar uma comunidade amigável que pudesse auxiliar a paz e o entendimento global. Às vésperas da Primeira Guerra, a FIFA lançou um comunicado pedindo a substituição da violência pela arbitragem de conflitos, mas ninguém estava ouvindo. No mesmo dia, o Arquiduque Ferdinando foi assassinado em Sarajevo e foi deslanchada a sequência de eventos que iria levar à guerra.

III.

Embora a Primeira Guerra tenha sido instrumental na transformação do futebol de jogo das elites urbanas da Europa e América do Sul em jogo das classes populares, seu efeito imediato no futebol internacional foi destrutivo. Na prática a FIFA ficou congelada entre 1914 e 1918. Afora a América do Sul, apenas quatro países jogaram algum tipo de partida internacional durante a guerra: Noruega, Dinamarca e Suécia, que jogaram entre elas aproveitando a neutralidade escandinava, e os EEUU que receberam a Dinamarca e a Suécia em 1917 pouco antes do bloqueio naval tornar impossível para os neutros viajar de forma segura.

Quando a guerra terminou em 1918, os vencedores, além de punirem os vencidos, redesenharam as fronteiras da Europa e do Oriente Médio. O pertencimento à FIFA refletiu os dois processos. No centro da nova ordem internacional do pós-guerra estavam os vários tratados de paz, dos quais Versalhes era o mais importante, e a criação da Liga das Nações. A Liga, que era sediada em Geneva, fora pensada para ser a expressão e o instrumento de uma comunidade internacional de Estados-nação, comprometidos com a paz. Os principais derrotados, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro em desintegração, inicialmente não puderam participar da Liga das Nações. O esporte seguiu o mesmo padrão e os alemães não foram convidados pelos belgas (cujo país fora ocupado pelos alemães por quatro anos) para participar da Olimpíada de 1920 em Antuérpia.

A opinião acerca disso estava dividida na FIFA. Muitos apoiavam a França e a Holanda que queriam a exclusão, mas quem propôs a linha dura mesmo foi o futebol inglês, teoricamente despolitizado. A FA não queria nenhum contato oficial ou não, com as federações dos países vencidos, acreditando que o povo britânico pensava ser necessário punir os agressores. A Suécia e a Itália resistiram à proposta da FIFA, inspirada pelos britânicos, de que não só os vencidos tinham que ser expulsos mas o mesmo deveria ocorrer com qualquer federação nacional que jogasse com eles, ou cujos clubes o fizessem. Suécia e Itália afirmaram o seu direito de jogar contra quem quisessem embora o Comitê Executivo da FIFA tenha reiterado seu compromisso de excluir os alemães e os austríacos, isso não foi o suficiente para os ingleses. Eles e as outras três Home Nations saíram da FIFA em 1920. Gradualmente, entretanto, da mesma forma que a opinião pública britânica, a FA começou a deixar de lado sua postura anti-germânica. O Aberdeen recebeu permissão para jogar em Viena; depois os clubes podiam jogar onde quisessem. Não havia mais razão para ficar de fora da FIFA e em 1924 as Home Nations retornaram.

O impacto político mais importante da Primeira Guerra foi por em xeque a legitimidade política e o alcance das dinastias imperiais. Elas foram quebradas pela derrota militar, pela exaustão econômica e social e por revoltas nacionalistas internas. Quando chegou a hora de juntar os pedaços, eles foram reunidos de acordo com os princípios da auto-determinação nacional  defendidos pelo presidente Woodrow Wilson e pelo governo americano nas negociações de paz. A própria Inglaterra teve que aceitar que ao menos parte da Irlanda se tornasse independente.

Antes da guerra, tanto a Áustria quanto a Hungria eram membros da FIFA, mas com o colapso do domínio dos Habsburgo, a Boêmia finalmente se libertou e na sua nova encarnação como Tchecoslováquia ingressou na Liga das Nações e na FIFA. A Polônia, finalmente livre da tripla dominação dos Habsburgos, Hohenzollerns e Romanovs, reemergiu como uma entidade independente pela primeira vez em quase dois séculos. Logo ingressou na FIFA e começou a participar do futebol internacional. Da mesma forma a Estônia, Látvia e Lituânia, libertas do domínio russo. Outras culturas futebolísticas mais antigas e com burocracias mais lentas, como a Grécia, Romênia e Portugal, ingressaram depois.

Os estados-nação já estabelecidos do Novo Mundo superaram a distância que os separava da Europa. Com a exceção da Argentina e do Chile, que ingressaram antes da Primeira Guerra e da Colômbia (1936) e da Venezuela (1952), que ingressaram bem depois, a América do Sul toda ingressou na FIFA nos anos 1920 através da sua própria organização regional, a CONMEBOL que organizou o programa de futebol internacional mais sistemático do mundo.

O mapa do Oriente Médio foi transformado pelo colapso do Império Otomano ao final da Primeira Guerra. Das ruínas emergiu a Turquia moderna enquanto estado-nação sob o domínio do presidente Kemal Atatürk. O futebol, embora popular durante a breve ocupação aliada de Istambul pelas tropas britânicas e do Império em 1918, praticamente desapareceu durante a turbulência da guerra contra a Grécia e durante a fundação da república. Mas assim que a Turquia foi criada, imediatamente ingressou na FIFA, pois esta e o futebol representavam a ‘civilização universal’ na direção da qual Atatürk estava determinado a reorientar o país. As velhas províncias do Império Otomano haviam sido distribuídas entre a França e a Inglaterra. O Egito, agora independente, ingressa na FIFA em 1923. Quando Líbano e Síria se tornaram independentes dos franceses na década de 1920 e início da década de 1930, poucos anos depois entraram na FIFA. No Leste  Asiático, os poucos países que permaneceram livres do controle dos impérios europeus ou asiáticos também entraram na FIFA: a Tailândia, as Filipinas, o Japão e a China.

De apenas 24 membros em 1919, a FIFA passou a ter 56 em 1939. Mas ainda havia ausências notáveis. Depois de reingressar na FIFA em 1924, as Home Nations permaneceram por apenas quatro anos até saírem em 1928; e desta vez de forma mais séria. Elas não voltariam a entrar na FIFA senão depois da Segunda Guerra. Surpreendentemente, dado o alcance da comercialização e da profissionalização do futebol inglês e escocês, foi a questão do amadorismo e do pagamento pelo tempo perdido (de trabalho) que levou a esta segunda retirada. Da mesma forma que em relação aos debates mais amplos sobre cultura e política, o futebol britânico não era uniformemente isolacionista em suas atitudes na Europa. No pós-guerra, os clubes excursionavam ainda mais extensivamente do que o faziam antes da guerra. Relações cordiais e até amizades e correspondência foram estabelecidos com administradores e diretores do outro lado do Canal da Mancha. O Racing Club de Paris e o Arsenal jogavam uma partida anual beneficente no Dia do Armistício durante toda a década de 1930 e a seleção belga foi convidada a jogar na Inglaterra. Mas havia limites a esta confraternização. A seleção nacional só excursionava no verão jogando em países sem controvérsia: França, Bélgica, Suécia, Espanha e Luxemburgo. A Escócia só jogou seu primeiro jogo internacional contra um adversário não-britânico em 1929, contra a Noruega. Gales só jogaria duas partidas internacionais na década de 1930, ambas contra a França. A Irlanda não jogaria nenhuma. Para muitos, particularmente do futebol profissional, que tinham suas próprias razões para se opor à realização de muitas partidas internacionais com os jogadores que eram pagos por eles, o futebol internacional não parecia importante. Fazendo um comentário cáustico sobre o assunto, Charles Sutcliffe, diretor da Football League (que organizava o campeonato inglês), disse o seguinte:

“Eu não me importo nem um pouco com o desenvolvimento do jogo na França, Bélgica, Áustria ou Alemanha. A FIFA não me interessa.”

Esta visão se apoiava na ideia inabalável de que havia um abismo de qualidade e experiência dentro de campo entre os ingleses e o resto do mundo e que por mais que organizassem e regulassem o futebol os estrangeiros nunca iriam alcançar os ingleses, o que tornava a competição internacional dispensável. Este sentimento era tão forte que ignorava até as evidências, como a derrota para a Espanha em Madri, em 1929.

Este rude desdém alcançou seu apogeu quando a FA foi convidada a participar da primeira copa do mundo em 1930. Influenciados por uma desastrosa excursão do Chelsea à América do Sul, em que um jogador foi socado por alguém da multidão, além de ter havido ataques ao ônibus do time, a FA deu aos uruguaios uma resposta seca, que terminava assim:

“Fui instruído a expressar pena da nossa impossibilidade de aceitar o convite”

O que aparecia à época como um reflexo quase sem consequências de uma superioridade brusca e irrefletida, aparece em retrospecto como um ato de hubris (soberba) colossal.

IV.

Se os britânicos não queriam ou não podiam liderar a organização das competições internacionais, outros podiam. A FIFA, o COI e a América do Sul certamente estavam na frente no que tange à competição entre seleções nacionais, mas a Europa Central, o terceiro polo avançado do futebol no entreguerra, também era uma inovadora. Hugo Meisl, presidente do FK Austria, ao perceber que as excursões de times ingleses à região reuniam um grande público, pensou em montar um torneio com os principais clubes da Europa Central. Marcou uma reunião em Veneza, em 1927, a que compareceram as federações da Áustria, Tchecoslováquia, Hungria, Iugoslávia e Itália. Nascia a Copa Mitropa.

A Copa Mitropa (ou Copa Europa na Itália) ocupa um lugar especial, até estratégico, na história do futebol. Nos doze anos em que foi disputada antes da Segunda Guerra ela criou o modelo para as competições de futebol internacional entre clubes. Seu formato era um simples mata-mata entre os principais clubes da Europa Central – o que depois viria a incluir times da Suíça e da Romênia. Cada rodada era disputada em jogos de ida e volta, para garantir que todos ficassem com parte da bilheteria e para fornecer um teste verdadeiro às equipes, que tinham que mostrar seu valor em casa e fora e no ambiente hostil de um país estrangeiro. As partidas eram extremamente populares, o nível de jogo impressionante e, como que para confirmar a modernidade do momento, as partidas foram as primeiras a serem transmitidas ao vivo pelo rádio na Europa continental. A competição também ajudou a promover à noção bastante difundida de um estilo regional distintivo; como os italianos o chamavam, Calcio Danubio. Essas interconexões eram reforçadas pela criação de uma rede de jogadores e técnicos migrantes que circulavam entre todas essas culturas futebolísticas.

Todavia, a interconexão não é garantia de harmonia. Nem a Copa Mitropa, nem a união alfandegária que foi simultaneamente implantada entre Áustria, Hungria e Itália poderia garantir isso. No domínio da alta política a Europa Central estava assolada pela discórdia e pelas manobras. O conflito europeu do entreguerras mais amplo pairava na região enquanto a França e a Alemanha buscavam aliados e influência e a Itália se tornava uma presença cada vez mais agressiva. Em uma atmosfera carregada dessas, o futebol internacional não somente foi utilizado pela política, mas se tornou um dos seus mais potentes para-raios. Assim que Mussolini assume o poder em Roma, os comunistas austríacos convocam uma manifestação de massa contra a visita de 2 mil torcedores italianos que planejavam viajar a Viena para um jogo. Como um diplomata austríaco lamentou, a Copa Mitrota parecia ser mais resolvida na embaixada do que em campo. Houve problemas com a torcida no primeiro ano do torneio. No segundo jogo da final entre Sparta Prague e Rapid, com o placar agregado de 7 a 4 para os visitantes, o público vienense, armado com frutas e garrafas, atirou-os sobre os tchecos.

Os tchecos também faziam das suas. Em 1932 o Sparta Prague enfrentou a Juventus na semifinal; depois de um choque entre Cesarini e um jogador tcheco, diz-se que o técnico do Sparta Prague lançou uma garrafa em Cesarini e fez gestos interessantes na direção do restante do time italiano. O jogo, que terminou 4 a 0 para o Slavia, terminou em uma briga generalizada e culminou com uma massiva invasão de campo.

Tanto o governo tcheco quanto o governo italiano tentaram amenizar o clima para o jogo de volta, mas com a Juventus ganhando de 2 a 0 o goleiro Frantisek Plánicka caiu no chão aparentemente atingido por uma pedra arremessada das arquibancadas. O Slavia abandonou o campo e retornou a Praga para uma recepção heroica. Ambos os times foram expulsos do torneio. Nesta ocasião, o futebol internacional, assim como a política internacional na Europa Central, tinha se mostrado um jogo empatado.

V.

Se a Europa Central abriu caminho para o desenvolvimento de competições internacionais de clubes, os pioneiros de torneios internacionais entre nações, por sua vez, foram os sul-americanos, e o Campeonato Sul-Americano organizado pela recém-criada CONMEBOL foi o modelo. A competição foi disputada quase anualmente entre 1917 e 1929 em Buenos Aires e Montevidéu, três vezes cada uma, Rio, duas vezes e também em Viña del Mar, Santiago e Lima. Foi este torneio que trouxe a Bolívia e o Paraguai para competições internacionais e atraiu a atenção das elites políticas e do público futebolístico. Mas a despeito do brilhantismo do futebol que estava sendo praticado pela nata das agora ligas abertamente profissionais da Argentina, Brasil e Uruguai, o progresso do continente não foi registrado pelo resto do mundo. Para isso o futebol sul-americano iria precisar de um palco global. No primeiro terço do século XX o evento esportivo mais eminente era os Jogos Olímpicos, mas neles o futebol só vai figurar com destaque depois que o interesse do público obrigou a isso.

Embora o futebol estivesse presente desde a primeira olimpíada da era moderna, em 1896, é apenas na quarta olimpíada, em Londres, em 1908, que ele é plenamente assumido como esporte olímpico, sendo a competição disputada pelos melhores amadores da França, Inglaterra, Suécia e Holanda. Depois da Primeira Guerra, nas Olimpíadas da Antuérpia, o futebol se torna o evento mais importante dos jogos, atraindo grande público, ao contrário do atletismo e de outros esportes.

Até então, o futebol olímpico era um evento exclusivamente europeu e o status de campeão mundial que ele proporcionava era bastante fraco. A Olimpíada de Paris, em 1924, remediou os dois problemas. Houve a participação de Egito, Uruguai e Estados Unidos, embora a Alemanha e a Inglaterra estivessem ausentes.  A qualidade do futebol melhorou muito. O público correspondeu, lotando os estádios e a final deixou dez mil pessoas de fora querendo entrar. Tinham vindo sobretudo para ver o Uruguai, com um time composto basicamente por trabalhadores e andarilhos que haviam chegado ali depois de viajar na 3ª. Classe do navio.

Embora a bandeira do Uruguai tenha sido colocada de cabeça para baixo e tivessem ouvido uma marcha brasileira ao invés do seu hino, os uruguaios mostraram em campo do que eram capazes. Despacharam a Iugoslávia por 7 a 0 e os EUA por 3 a 0. Os anfitriões franceses foram a próxima vítima, batidos por 5 a 1. Na final, sem sustos, derrotaram a Suíça por 3×0. Os placares não dão a ideia exata do impacto que esse time uruguaio teve sobre os europeus, que não se cansaram de celebrar o virtuosismo, a técnica, a visão de jogo, a movimentação da equipe. Sem falar na finta, no drible. Tudo isso criando um futebol bonito, elegante, variado, rápido, poderoso, efetivo, nas palavras do editor da revista francesa L’Équipe, que os considerava muito superiores aos jogadores profissionais ingleses.

Quando a notícia chegou via telégrafo, Montevidéu ficou em festa, o governo declarou feriado nacional, foram criados selos comemorando o evento, as multidões ocuparam as ruas e na sua volta os jogadores foram celebrados no porto e receberam um prêmio em dinheiro do governo. A comunidade futebolística do outro lado do Rio da Prata é que não estava satisfeita. Acostumados a se verem como os bambambãs do futebol sul-americano, os argentinos estavam furiosos pelo fato dos uruguaios terem passado à frente deles indo às Olimpíadas e ainda por cima vencendo o torneio. Imediatamente providenciaram um torneio de ida e volta entre as duas seleções, determinados a mostrar para seus vizinhos e para o resto do mundo qual era realmente a melhor seleção da América do Sul. O primeiro jogo, em Montevidéu, foi um empate de 1 a 1 muito disputado. O jogo de volta, na Argentina, foi muito complicado. Uma enorme multidão invadiu o gramado após alguns minutos de jogo e a partida foi suspensa e remarcada para alguns dias depois, para a fúria da massa, que demoliu um quiosque de ingressos. Na quinta-feira seguinte houve jogo, depois que foi colocada uma grade de quatro metros de altura entre o público e o gramado. O jogo estava zero a zero quando nos últimos minutos o público argentino apedrejou o goleiro uruguaio Andrade que devolveu a gentileza, assim como o resto de seus companheiros, que se juntaram a ele no arremesso de pedras. A polícia intervém, o atacante uruguaio Scarone chuta um policial e é preso. Os uruguaios abandonam o campo diante da multidão enlouquecida de fúria. Os argentinos permanecem no campo durante os últimos seis minutos e considera-se que tenham ganho o jogo por W.O.

Os uruguaios voltam a seu país no dia seguinte, com injúrias sendo trocadas entre o navio e a costa. O sucesso deles em Paris estimula três times sul-americanos a embarcar em excursões à Europa em 1925. O Nacional de Montevidéu parte em fevereiro e só retorna em agosto, tendo jogado 38 jogos em 9 países e 23 cidades, com muitas noites dormidas no trem e jogos bem competitivos. Eles ganharam 26, empataram 7 e perderam somente 5 partidas. No total, mais de 700 mil pessoas pagaram para vê-los, incluindo 70 mil em Viena, onde bateram a seleção austríaca. O Boca Juniors, que excursionou sobretudo na Espanha mas foi também à Alemanha e à França, impressionou com seu futebol fluente e bailarino. O time amador brasileiro do Paulistano CA também impressionou em seus jogos na França e na Suíça.

Nesta mesma época, times europeus, agora a somente três semanas de distância nos vapores mais rápidos, vinham à América do Sul: uma seleção basca em 1922, o Genoa em 1923 e o Espanyol e o Barcelona em 1926. O FC Barcelona veio em 1928 e no ano seguinte, pouco antes da Quebra da Bolsa, vieram Chelsea, Bolonha, Torino e Ferencváros de Budapeste. Sendo assim, quando chegou a Olimpíada de Amsterdam em 1928, o futebol sul-americano já era conhecido e suas duas seleções principais, Uruguai e Argentina, eram as favoritas.

Naquela que pode ser considerada a primeira final do futebol mundial, deixada de lado a ausência da Inglaterra, Uruguai e Argentina disputaram o título do torneio de futebol da Olimpíada de 1928. Os 40 mil ingressos foram disputados por 250 mil pessoas. Nas duas margens do Rio da Prata, os jornais dedicavam páginas e páginas à final. Todo mundo à espera dos telegramas e das notícias que eles traziam da Holanda para os escritórios dos jornais, comentando cada chance, cada gol, cada substituição. Em Buenos Aires haviam sido colocados autofalantes nas principais praças para dar as notícias. Na hora em que saía algum som deles, a cidade se calava, à escuta.

Foi necessário haver dois jogos, pois o primeiro foi um cauteloso 1 a 1. O segundo jogo foi totalmente diferente, aberto. A defesa uruguaia, liderada por seu capitão José Nasazzi, conteve o ataque argentino e lhe concedeu apenas um gol. O ataque uruguaio marcou dois. Attilio Narancio, um rico patrocinador do futebol uruguaio, exclamou: “não somos mais apenas um pontinho no mapa do mundo”. O Uruguai era campeão do mundo.

http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/the-ball-is-round-capitulo-7-as-regras-do-jogo-o-futebol-internacional-e-a-politica-internacional-1900-1934-parte-a/

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