/The ball is round, Capítulo 7: As regras do jogo: o futebol internacional e a política internacional, 1900-1934 – Parte B

The ball is round, Capítulo 7: As regras do jogo: o futebol internacional e a política internacional, 1900-1934 – Parte B

 

The ball is round, Capítulo 7: As regras do jogo: o futebol internacional e a política internacional, 1900-1934 – Parte B

Marcos Alvito

(da série Leituras para pensar o futebol)

VI.

Em 1926, Henri Delauney, secretário da FIFA, percebeu que era impossível ter as Olimpíadas como principal competição à medida em que o profissionalismo já havia sido implantado em vários países, que se tivesse que enviar amadores não seriam representados pelos seus melhores jogadores. No mesmo ano da Olimpíada de Amsterdã, 1928, quando o futebol fora o evento mais popular, a FIFA formou seu primeiro comitê para a organização de uma copa do mundo, depois de resolver os conflitos internos e as disputas que tinha havido nos seus congressos em torno do formato da competição. Decidiu-se que a Copa do Mundo seria aberta a todos e não somente às seleções europeias. E que qualquer jogador, profissional ou amador, poderia representar o seu país. A arrecadação seria dividida entre a FIFA e o país sede e a copa aconteceria a cada quatro anos.

Até aquele momento, alguns países europeus haviam demonstrado algum interesse em sediar o evento, mas as questões práticas, os riscos e os custos dissuadiram a todos. O campo estava aberto para o único país preparado para colocar dinheiro na mesa: o Uruguai. E o Uruguai tinha dinheiro. Suas indústrias de lã, couro e carne bovina tinham crescido muito durante a década de 1920. E havia um estado de bem-estar social utilizando os recursos das exportações para investimentos na educação e na urbanização, gerando uma era de política progressiva pacífica e feliz. Desejando fazer publicidade do país como um campeão mundial de futebol invicto – ganhara as Olimpíadas de 1924 e 1928 – o governo do Uruguai se ofereceu para pagar as despesas dos times visitantes e prometeu construir um novo e apropriado estádio para a ocasião. A ideia era começar o torneio em julho de 1930, um século depois da primeira constituição independente do Uruguai. Reunido em Barcelona em 1929 o congresso da FIFA, Jules Rimet concedeu a competição ao Uruguai e encomendou um troféu de ouro – então conhecido como a Deusa da Vitória e somente depois como Copa Jules Rimet – ao escultor francês Abel Lafleur.

O Uruguai se concentrou na construção do novo estádio, chamado por motivos óbvios de Centenário. Duas empreiteiras foram contratadas, cada uma responsável por uma metade. O concreto foi importado da Alemanha, pois ainda não era fabricado na América do Sul. Mas não se sabia exatamente quantas seleções apareceriam para jogar. Várias federações declinaram do convite. Dentre elas a Inglaterra e os outros países das Home Nations, os escandinavos, a Alemanha, a Suíça e as seleções da Europa Central. A FIFA e seus dirigentes exerceram pressão, sobre os franceses e os belgas, por exemplo. A Romênia veio porque o próprio rei prometera em 1928. Os iugoslavos vieram com prazer. Também vieram oito seleções das Américas: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Estados Unidos.

Como o Estádio Centenário não havia ficado pronto à época do início do torneio, os primeiros jogos foram disputados em pequenos estádios pertencentes ao Nacional e ao Peñarol. Em 17 de julho, quando o Centenário foi inaugurado, ele era sem dúvida o melhor estádio do mundo. Em termos de capacidade, seus 90 mil lugares perdiam para Hampden Park ou Wembley, mas era o maior estádio fora das Ilhas Britânicas. Arquitetonicamente era fora de série, espelhando o desenvolvimento da arquitetura uruguaia em fins da década de 1920, que floresceu numa espécie de modernismo latino, bastante influenciado pelas correntes mais modernas da Europa de entreguerras.

A primeira final de copa do mundo foi disputada por Argentina e Uruguai, depois que ambos despacharam respectivamente Iugoslávia e Estados Unidos pelo mesmo placar: 6 a 1. Os argentinos afluíram em massa para o porto de Buenos Aires para atravessar o Rio da Prata e ver sua seleção bater-se contra seu mais tradicional rival. Montevidéu também fervia. O time argentino, hospedado em Santa Lúcia, estava sendo pressionado. Às vezes dos dois lados: Luis Monti foi ameaçado pelos seus compatriotas caso perdesse e pelos uruguaios caso ganhasse. Só jogou porque os dirigentes do seu clube, San Lorenzo, imploraram que ele o fizesse. Os uruguaios se concentraram em torno do hotel para fazer barulho e xingar os jogadores argentinos.

No dia da partida, os times foram escoltados até o Centenário por uma grande tropa policial a pé e a cavalo. Em Buenos Aires, a vida parou. As fábricas argentinas da General Motors pararam sua produção; a Câmara dos Deputados parou suas reuniões; os trabalhadores dos escritórios em toda a cidade se reuniram em torno de rádios e as multidões se concentravam do lado de fora das sedes dos jornais. Em Montevidéu não cabia mais ninguém no Centenário; dezenas de milhares ficaram do lado de fora para escutar os gritos do público. Jean Langenus, o juiz belga, só apitou o início da partida depois de ter recebido garantias de uma proteção especial para si, para seus assistentes e para a sua família, bem como um barco ancorado no porto e pronto para partir apenas uma hora depois do apito final.

Em campo, os argentinos conseguiram se impor no primeiro tempo, indo para o intervalo com dois a um a seu favor. No segundo tempo, o Uruguai virou o jogo marcando três gols e se tornando o primeiro país a vencer uma copa do mundo. Na Argentina, após a decepção e o silêncio, os torcedores voltaram-se para o álcool e a raiva. O consulado uruguaio é atacado e uma mulher com a bandeira uruguaia é apedrejada. Por volta da meia noite ocorrem tiroteios e é somente nas primeiras horas da manhã que a polícia consegue controlar as gangues. No dia seguinte, alguns jornais argentinos expressam seu desgosto com o time e com sua falta de coragem, enquanto outros reclamam da trapaça uruguaia; nasciam as raízes da paranoia e da auto-flagelação de ambas culturas futebolísticas. Mas foi a ausência de trabalho de equipe que derrotou a Argentina. O jornalista italiano Berrara, que assistiu ao jogo, argumentou: ‘A Argentina joga futebol com muita imaginação e elegância, mas a superioridade técnica não compensa o abandono da tática. No caso destes dois times platinos, os uruguaios são as formigas, os argentinos as cigarras.’ Apenas sessenta anos depois do primeiro jogo internacional em Glasgow, o ponto mais alto do jogo havia cruzado o Atlântico. As polaridades centrais irreconciliáveis do futebol haviam sido levadas a um novo nível de sofisticação: individualismo versus coletivismo, arte versus resultado, habilidade versus força, beleza versus eficiência.

VII.

A Europa para a qual os franceses, os iugoslavos e outros retornaram após a Copa de 1930, estava começando a entrar no vale negro da depressão econômica e do tumulto político que culminaria na Segunda Guerra Mundial. O colapso da economia alemã naquele ano, precipitou a ascensão do Partido Nacional Socialista alemão e depois que os nazistas subiram ao poder o destino da Tchecoslováquia e da Áustria estava selado. O fascismo italiano e a ditadura de Salazar em Portugal estavam agora acompanhados pelo totalitarismo germânico. Algum tipo de variante de ditadura militar, monárquica ou autoritária tomou o poder em Atenas, Belgrado, Madri e Varsóvia em 1939. As democracias europeias remanescentes foram rapidamente espremidas entre o poder crescente da União Soviética e os nacionalistas de direita que se dedicavam a apagar os erros de Versalhes. As sociedades europeias estavam mais politizadas do que jamais haviam estado. Capitalismo versus comunismo, democracia versus ditadura, cosmopolitas versus nacionalistas. Nação contra nação, classe contra classe e muitas destas disputas eram sustentadas e alimentadas pela aceitação generalizada e pelo uso de ideologias políticas de massa que visavam não somente governar as sociedades mas transformá-las  e controlá-las em todos os níveis. A cultura de massa de todos os tipos – do esporte à moda, do cinema à escolarização – tornou-se uma questão de política mais do que nunca, de forma ampla e consciente, proposital.

Neste contexto, nenhuma nação isoladamente pode ser considerada culpada da virada na direção de um esporte internacional politizado. Mas foi a Itália de Mussolini que abriu o caminho. No congresso da FIFA de 1932 a Itália recebeu o direito de sediar a Copa de 1934. Os preparativos para a copa coincidiram com uma política externa italiana cada vez mais expansionista e agressiva e que culminaria com a invasão da Abissínia, com a intervenção na Guerra Civil Espanhola e com uma pressão sem fim sobre a Albânia e a Europa Central. Tudo depois da copa. Neste contexto, a Copa de 1934 foi um explícito exercício político, além de esportivo.

Os britânicos (e os escandinavos) eram os únicos que tentavam manter uma visão diferente do esporte de dos negócios públicos. Um abismo os separava dos italianos, como um incidente de 1933 demonstrou. Sem avisar ao governo britânico, a FA aceitou um convite da federação italiana para um jogo. A imprensa italiana estava excitada com a partida e com a visita dos ingleses. Mussolini entrou no estádio sob os vivas animados da torcida e com a massa balançando lenços. Os altofalantes do estádio decretaram: “Com o Duce ninguém nunca fica perdido; da mesma forma também não vamos perder hoje.” O jogo terminou 1 a 1 e parece que não foi grande coisa segundo um jornalista alemão presente.  O secretário da FA não gostou do modo como se deram as coisas e afirmou que não aceitaria um outro convite dos italianos. De fato, a Inglaterra e as Home Nations declinaram o convite para participar da Copa de 1934, mesmo que os anfitriões tenham oferecido pagar as despesas dos ingleses.

Os uruguaios, agora sem dinheiro por conta do estrago que a depressão mundial fizera na sua economia exportadora, também declinaram do convite e da chance de defender seu título. Os argentinos, quase tão quebrados, recusaram enviar um time profissional alegando que o faziam como protesto por conta do recrutamento dos seus principais jogadores pela seleção italiana. Mas o time amador que foi fez uma visita bastante divulgada ao local de nascimento de Mussolini, onde bandeiras e coroas de flores simbolizando a amizade dos dois países foram depositadas. Os brasileiros foram o único outro país sul-americano a fazer a viagem.

Da mesma forma que o Uruguai em 1930, o governo italiano estava preparado para gastar com o evento – cerca de 3,5 milhões de liras. O extensivo programa de construção das décadas de 1920 e 1930 oferecia uma série de estádios exemplares, homenagens arquitetônicas ao fascismo e a sua estética futurista. Foram disponibilizados recursos para custear 75% das despesas dos torcedores visitantes, especialmente da Holanda, Suíça, Alemanha e França. O transporte interno era gratuito para os visitantes. A publicidade do torneio apareceu até em pacotes de cigarro e também em selos.

Claramente a Itália podia sediar um torneio, mas será que poderia ganhá-lo? Certamente havia essa expectativa. A espinha central do time dirigido por Victorio Pozzo estava nos argentinos – chamados de Rimpatriato – que tinham vindo jogar na liga italiana no começo da década de 1930. Tendo avós ou bisavós italianos, podiam obter a cidadania italiana e jogar pela seleção nacional. Como centro-médio e pilar da defesa, Pozzo contava com Luis Monti, que havia disputado a Copa de 1930 pela Argentina. Nas alas mais dois argentinos, Raimondo Orsi e Enrico Guaita. Na frente, uma espécie de super-homem, Giuseppe Meazza. Mussolini esteve presente ao jogo inaugural com seus filhos e o fato de ter pagado por seus ingressos foi explorado de forma populista. Depois de muitas saudações fascistas, a Itália destroçou os Estados Unidos por 7 a 1.

O time que todos haviam vindo para ver em 1934 era o time austríaco: Das Wunderteam. Eles haviam chegado à Itália como favoritos para a conquista do torneio. Eles haviam chegado a ficar 18 jogos invictos, com 15 vitórias e 3 empates. Ganharam da Escócia de 5 a 0, da Alemanha de 6 a 0, para depois baterem outras seleções poderosas: a Suécia, a França, a Itália, a Hungria e a Tchecoslováquia. Os jogadores austríacos estavam acostumados a competir internacionalmente por seus clubes na Mitropa Cup. O Wunderteam tinha Matthias Sindelar, o principal jogador daquela geração. A seleção austríaca já era disciplinada, organizada, lutadora e profissional, com Sindelar ela passa a ter um cérebro e uma inspiração, a fagulha vital de impredictabilidade.

O apelido de Sindela era Der Papierene, literalmente o Homem de Papel, mas talvez seja melhor descrito como “bolacha”, por sua habilidade de penetrar sem ser notado nas defesas mais fechadas. Não há nenhum filme de Sindelar jogando, afora numa aparição em um filme romântico. Talvez esta ausência tenha acrescentado valor a ele, mas o que se escreveu e o que se falou sobre ele parece consistente. Sindelar, se não foi o primeiro, foi o principal criador de jogadas do futebol europeu da época. Finalmente havia aqui alguém com tempo e confiança para olhar, capacidade para julgar o espaço e o tempo disponíveis para cada jogador no campo e selecionar um passe ou uma jogada apropriados. Sindelar e os times moldados por ele jogavam um futebol com marcadamente menos contato físico e força do que os britânicos ou os italianos. Ele se apoiava na astúcia, no equilíbrio e no cérebro. A sociedade do café vienense finalmente tinha um jogador e um jogo à sua imagem: com cultura, intelectual, até cerebral, atlético mas bailarino ao mesmo tempo. Sindelar, à época da sua morte, seria metamorfoseado a nível épico e poético.

Entre abril de 1931 e junho de 1934 o Wunderteam perdeu somente três de trinta e um jogos e marcou 101 gols. Entretanto, o Red Viena que era a base da seleção que foi à Itália em 1934 não existia mais. O país assistia a uma escalada de conflitos políticos entre Viena e as províncias, a Esquerda e a Direita, que resultam em guerra civil aberta. A Áustria ainda não havia se recuperado do golpe resultante da queda da bolsa em Wall Street. O desemprego estava em 40% no início da década de 30, estimulando os extremistas de ambos os lados. O chanceler havia banido tanto o partido nazista austríaco – diante da ameaça alemã de anexação, o Anschluss – quanto o partido comunista. Enquanto os comunistas se uniam aos anti-nazistas e aos social democratas, o chanceler busca um pacto com Mussolini e cria sua própria força paramilitar populista de direita. Há um confronto com os social democratas, que são banidos, têm seu partido fechado e sua liderança posta na prisão ou exilada.

Sendo assim, o Wunderteam que chegou na Itália estava cansado e preocupado e isso pode se perceber. Nos jogos iniciais, quando se esperava que vencessem facilmente, tiveram dificuldades para bater a França e a Hungria. Na semifinal tiveram que enfrentar a Itália. Uma chuva torrencial bem antes do jogo deixou o campo molhado e enlameado. A defesa italiana sufocou os austríacos. Monti grudou em Sindelar e os austríacos tiveram dificuldade em conseguir um chute a gol. Os italianos literalmente empurraram a bola e o goleiro austríaco para dentro do gol. A Itália ganhou por um a zero.

A final em Roma foi contra a Tchecoslováquia, que foi melhorando a cada jogo, mostrando a qualidade do futebol da Europa Central. Os tchecos seguraram os donos da casa por setenta minutos. Então seu atacante Puc foi nocauteado por um carrinho italiano. Fora de campo, Puc cheirou uns sais aromáticos e retornou para fazer um a zero. Durante dez minutos a Itália ficou perdida em campo e os tchecos chutaram uma na trave. Então Orsi salva a Itália, fintando na marca do pênalti para abrir espaço e concluindo com um chute do lado de fora do pé direito. Nos acréscimos, Schiavio marcou o gol da vitória italiana, mas ao que parece depois que Meazza meteu a mão na bola. Fala-se que o juiz sueco Ivan Eklind havia jantado e bebido vinho com Mussolini, que pedira para ele pensar nas consequências de uma derrota italiana. Uma ideia de conspiração deliciosa, mas não há nada que documente isso. Treinador e jogadores foram celebrados e além da taça e de La Coppa del Duce, receberam uma medalha de ouro em nome de Mussolini e do Fascismo. O hino nacional foi tocado sem parar e agora Mussolini e o Partido Fascista tinham seu paradigma esportivo da nova força da nação.

Dois meses depois de ganhar a copa do mundo, Vittorio Pozzo foi despachado a Londres para marcar um jogo entre Itália e Inglaterra, porque a questão da hegemonia futebolística mundial continuava em aberto. E parecia um bom momento, porque a Inglaterra, em 1934, havia perdido para duas seleções derrotadas pelos italianos: a Hungria e a Tchecoslováquia. A Inglaterra ofereceu um jogo no inverno gelado e chuvoso, em novembro. Pozzo era contra, mas o regime queria, estava confiante. E ele teve que aceitar. A imprensa italiana estava carregada de retórica nacionalista e belicosa. O jogo foi chamado desde o começo de “A batalha de Highbury” e o editor do La Gazetta dello Sport o apelidou de “Teatro da guerra internacional”. A Inglaterra saiu na frente, metendo 3 a 0. Os italianos, mesmo com dez homens, conseguiram fazer dois gols. O status quo britânico havia sido abalado mas não derrubado.

A imprensa italiana adotou a ideia de uma vitória moral e estética, chamando os jogadores de soldados do esporte, atletas do fascismo, dos quais “emanou classe, estilo, técnica e habilidade… os dez atletas jogaram como um pelotão de gladiadores. Dez combatentes. Um só coração.”

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