/The ball is round, Capítulo 8: O caminho para o Eldorado: o futebol sul-americano, 1935-1954, Parte A

The ball is round, Capítulo 8: O caminho para o Eldorado: o futebol sul-americano, 1935-1954, Parte A

Marcos Alvito

(Da série Leituras para pensar o futebol)

The ball is round, Capítulo 8: O caminho para o Eldorado: o futebol sul-americano, 1935-1954, Parte A

I.

O Uruguai foi construído por dois Varelas. De um lado o presidente José Pedro Varela, que no final do século XIX implementou reformas sociais e educacionais que levaram à criação do Estado de Bem-Estar Social mais avançado da América Latina. A partir do início do século XX o Uruguai conseguiu combinar o desenvolvimento econômico bem sucedido, uma relativa paz social e a democracia mais liberal do continente. Uma das consequências deste desenvolvimento é que o Uruguai teve condições de sediar a primeira Copa do Mundo e foi bom o bastante para ganha-la. A identidade nacional e o orgulho da pátria estiveram fortemente associados aos resultados da seleção nacional, La Celeste. O Uruguai, um país que à época não tinha nem três milhões de habitantes, ainda não havia aparecido para o mundo. Agora, como escreveu Eduardo Galeano: ‘A camisa azul-celeste era a prova da existência da nação: o Uruguai não era um engano. O futebol retirou este pequeno país das sombras do anonimato universal.’ Enquanto Brasil e Argentina tinham outros materiais históricos e culturais para modelar um nacionalismo moderno distinto, no Uruguai não havia muita opção. A identificação entre a nação e a seleção nacional, já muito difundida no Uruguai nas décadas de 30 e 40, foi permanentemente selada em 1950, quando o outro Varela, o Obdulio, capitaneou de forma magnífica e obstinada a equipe que bateu o Brasil no milagre do Maracanazo. Em 1966, Ondino Vieira, treinador do Uruguai na Copa da Inglaterra afirmou: ‘Outros países têm sua história, o Uruguai tem o seu futebol’. Talvez o Uruguai seja um caso extremo, mas não está sozinho nesta situação de ter sua história embebida no futebol.

A Grande Depressão da década de 30 atingiu fortemente a América Latina. Ao longo da década o investimento estrangeiro secou, os débitos foram cobrados e os preços das matérias-primas de exportação desabaram. Ao desastre econômico se seguiu uma onda de autoritarismo político à medida em que o desemprego e a pobreza acenderam a militância dos sindicalistas e dos pobres urbanos em todo o continente. Os antiquados sistemas políticos cambalearam, as elites dominantes ficaram cada vez mais nervosas. Apenas nos quatro anos que se seguiram ao colapso da Bolsa de Nova York, os militares e seus aliados civis tomaram o poder na Argentina, Uruguai, Peru, Chile, Brasil, México e Cuba. Colômbia, Paraguai e Bolívia se tornaram ditaduras militares nas décadas de 40 e 50. Embora os militares tenham saído do poder em muitos desses países, à exceção do Uruguai isso não significou um retorno à democracia. Nos dois maiores estados, Argentina e Brasil, em que o nível de desenvolvimento econômico e de urbanização havia produzido uma massa urbana impossível de conter e uma classe trabalhadora pequena mas militante e organizada, o poder foi consolidado por um novo tipo de autoritarismo populista. Getúlio Vargas no Brasil e Juan Perón na Argentina criaram coalizões políticas inovadoras, combinando os militares, industriais, os trabalhadores urbanos e o movimento sindical. Dadas as suas semelhanças e o lugar que o futebol ocupava na cultura popular urbana destes dois países, o jogo tornou-se um óbvio instrumento para gestos populistas e para a política cultural nacionalista. No Brasil o futebol foi utilizado ao mesmo tempo em que Vargas controlava o carnaval e o sistema educacional em uma cultura que era estritamente controlada e monitorada de cima. Na Argentina, por contraste, os laços culturais entre futebol e política eram tecidos a partir de baixo. O canto da torcida do Boca: ‘Boca, Perón, un solo corazón’, não era ensaiado, era espontâneo. Perón realmente tinha um sólido apoio político e eleitoral vindo das arquibancadas de La Bombonera.

Esta ligação entre futebol e identidade nacional era sobretudo importante na América Latina já que ali não tinha havido a relação com a guerra como forma de construir a identidade nacional. Na América Latina, a nação confrontava o mundo, primeiramente, através da sua seleção de futebol, aliás uma esfera em que estes países podiam competir e sair-se bem. Como a Segunda Guerra Mundial praticamente destrói o futebol europeu por um tempo, até meados da década de 50 o futebol sul-americano é o melhor do mundo. Mas não era nenhuma cópia do europeu. Suas vitórias não se deviam a um futebol padronizado e eficiente, baseado em força e determinação. O futebol sul-americano tinha um ideal mais alto.

Na América do Sul o futebol não era governado pela racionalidade esportiva. Treinadores, jogadores, torcedores e jornalistas opunham-se ferrenhamente à ideia de que o futebol moderno tinha que ser jogado como o negócio moderno era dirigido. Ninguém iria conseguir erradicar essa ideia, da mesma forma que não conseguiam erradicar o patrimonialismo, o nepotismo e o clientelismo da economia e da política da região. Nenhuma modernização seria capaz de fazê-lo. Esta tenaz resistência ao utilitarismo puro e simples punha de um lado jogar por amor versus jogar para ganhar, o culto do drible versos o culto da eficiência. Arte e ciência, boêmia e profissionalismo, o moderno e o tradicional, não apenas se esbarravam na América do Sul, eles desafiavam um ao outro. Haveria resultados sociais e esportivos.

II.

A rapidez do desenvolvimento do futebol argentino foi tal que quando a primeira liga profissional foi jogada em 1931 muitos dos elementos chave da cultura futebolística nacional já estavam presentes. A Argentina já estava jogando futebol internacional há trinta anos, tendo sido campeã da América do Sul e vice do Uruguai na final olímpica de 1928 e na Copa de 1930. O jornal El Clarín e o semanário esportivo El Gráfico já haviam formulado uma mitologia acerca de um estilo de jogar tipicamente argentino. Buenos Aires dispunha de vizinhanças distintas social e geograficamente permitindo rivalidades que traziam público. Além disso, havia um sistema de transportes públicos que permitia a ida a jogos fora de casa. Sendo assim, mesmo durante a depressão econômica da década de 30 o futebol argentino prosperou. Voltado para si próprio e ignorando o futebol mundial, porque a AFA só enviou um time amador para a Copa de 34 e nenhuma representação para a copa seguinte. Os argentinos só iriam reaparecer na Copa de 1958. A ida de craques para a Espanha e a Itália logo cessou. Com a ameaça da guerra, permanecer na Argentina parecia uma aposta melhor. Na América do Sul a Argentina reinava, tendo ganho a Copa América em 1937, 1941, 1945, 1946 e 1947.

Tendo dado o passo decisivo da adoção do profissionalismo, a comercialização do futebol doméstico que sustentava estes triunfos internacionais alargou-se e aprofundou-se na década de 30. O rádio finalmente chegou aos rincões mais distantes do país e a música e o futebol de Buenos Aires vinham junto. Isto criou uma base nacional de torcedores para os times metropolitanos que persiste até hoje. O êxodo rural realimentou o processo de urbanização, não somente em Buenos Aires mas também em Santa Fé, Córdoba e Rosário. Este movimento demográfico e econômico ajudou a projetar os primeiros clubes provinciais a entrarem na liga profissional: o Newell’s Old Boys e o Rosário Central.

Em toda a década de 30 é grande o comparecimento aos estádios. Públicos de mais de 40 mil pessoas eram comuns em jogos importantes e esse público saía satisfeito com jogos de muitos gols. Entre setembro de 1936 e abril de 1938 não houve um só zero a zero na primeira divisão argentina. À medida em que a economia argentina prosperava durante os primeiros anos da Segunda Guerra, a média de público dobrava e continuou a crescer pelo restante da década de 40 e início da década de 50. No seu auge, o River Plate tinha 72 mil sócios e conseguia públicos de 100 mil pessoas; até seu terceiro e seu quarto times eram assistidos por 15 mil pessoas. El Gráfico vendia 200 mil cópias por semana e o futebol amador e recreativo era jogado por todos os lados da cidade: parques, praças e terrenos baldios. O cinema, parte da vida cotidiana em Buenos Aires, começou a mostrar o esporte. O governo de Perón patrocinou o Sucesos Argentinos: filmes breves que combinavam relatos de competições infantis, obras públicas em projetos esportivos e sucessos internacionais. O fato é que os times de futebol pouco precisavam de patrocínio, já que cerca de 30% de todos os filmes comerciais feitos entre 1944-54 na Argentina tinham o esporte como tema – normalmente o futebol.

Se no futebol aquele momento foi visto rapidamente como a era de ouro, na política foi la década infame. Da ditadura militar se passou a doze anos de um governo composto por uma coalizão disfuncional e fechada de conservadores, socialistas e da dominante União Cívica Radical. Em 1940 a UCR, para se manter no poder, estava apelando para fraudar eleições inserindo votos falsos nas urnas. O futebol, em grande parte, conseguiu se manter longe da política. Os diretores dos clubes menores e médios permaneceram motivados pelo orgulho cívico tanto quanto pela ambição política. Mas o jogo despertava uma enorme atração e a patronagem política, essencialmente baseada no sistema clientelista, assistiu ao crescimento de uma rede de interconexões entre o futebol e a política. O General Juan Justo, presidente da Argentina entre 1932-1938 fez todos saberem que era torcedor do Boca Juniors. E mais, sua filha casou-se com o presidente do Boca entre 1936 e 1949. Coincidentemente, nesta época o clube recebeu um generoso empréstimo a ser pago suavemente, com o qual o clube construiu La Bombonera em 1940. O presidente seguinte do Boca foi também presidente da federação argentina entre 1941-1943.

Quatro clubes dominaram os primeiros quinze anos de futebol profissional na Argentina: Boca Juniors, River Plate, Independiente e San Lorenzo. A identidade e a lealdade a estes clubes, já estabelecida na década de 1920, viram-se fortalecidas e transformadas em mitologias auto-perpetuadas. Boca Juniors, o time geralmente mais claramente ligado a uma identidade de classe trabalhadora italiana e imigrante, foi o único a permanecer no coração da velha Buenos Aires. No início da década de 1930, a migração transatlântica havia terminado, mas seu impacto na demografia argentina havia sido tão forte que o Boca agora podia jactar-se de ser o time das massas, o time do povo; 50% mais um, como eles descreviam sua torcida. O River, cuja torcida permanecia misturada, tinha saído do porto da mesma forma que os que aspiravam à ascensão social e ido para o norte, para os barrios mais exclusivos de Palermo e Belgrano. Acabaram adquirindo a fama de aristocratas da liga, com um preferência pelo estilo ao invés do esforço; por boas maneiras ao invés de competitividade. Já o Independiente manteve a coragem e a sujeira de Avellaneda – o buraco industrial de Buenos Aires – enquanto o San Lorenzo ocupava o espaço, a oeste do centro da cidade, em Flores e Almagro, da classe média e da classe trabalhadora, das oficinas e das casas de tango, lado a lado. Embora cada membro deste quarteto possa exigir o reconhecimento da sua contribuição original, talvez o River Plate seja o mais emblemático.

O River ganhou o apelido de Milionarios em 1931, quando começaram a era profissional investindo pesadamente na contratação de jogadores. Como o clube melhor relacionado do período, o River foi o primeiro a se beneficiar da generosidade governamental no financiamento de novos estádios, que também seriam utilizados como escolas internas e clínicas. Em maio de 1938, com a presença do presidente da república, o River inaugura seu estádio, depois conhecido como El Monumental. Sendo o primeiro estádio industrial, feito com aço e concreto, tinha uma capacidade para 70 mil. A partir de 1941 o River teve um time que seria campeão e que nas palavras do editor de El Gráfico da época jogava como uma máquina. E assim foi conhecido: como La Máquina.

La Máquina foi tetracampeã. E depois novamente campeã em 1947. Naquele momento, eles jogavam o melhor futebol do planeta, aquilo que os argentinos chamavam de La Nuestra, ou seja, a sua maneira de jogar. Protegido da guerra, o futebol argentino pode criar um futebol que era uma mistura de instrumentalismo, arte e entretenimento. Na década de 1920, havia um culto ao drible e ao vistoso individualismo, central para a marca distintiva do futebol criollo do Rio da Prata. Agora, sob as condições mais severas e diante dos imperativos trazidos pela profissionalização, o legado escocês do jogo de passes foi incorporado ao repertório.

O estilo de jogo que se desenvolveu foi um jogo abertamente ofensivo exemplificado pela linha de ataque do River: Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Losteau. Mesmo o jovem Alfredo Di Stéfano era um mero adendo a estes cinco. La Máquinajogava com calma, procurando um espaço, passando, sempre passando. Eles mantinham a posse de bola e podiam tornar o jogo mais lento até que uma fresta de luz, um tiquinho de sorte, oferecesse a oportunidade de uma finta, de um chute ou de uma penetração. Muñoz, em particular, era adorado por sua astúcia. Eles diziam que o tango era a melhor forma de treinar, porque mantinha-se um ritmo até que se avançava para frente, trabalhando-se a cintura e as pernas.

Nessa época havia espaço para tango em campo na Argentina. As táticas e jogadas defensivas eram subdesenvolvidas. A marcação homem-a-homem pouco havia sido explorada. Os meio-campistas e os atacantes jamais faziam algo tão deselegante ou claramente utilitário como marcar seus adversários ou pressioná-los em grupo. Retomar a posse de bola, se ela fosse perdida, não era tratado como uma prioridade. O homem com a bola tinha tempo. E havia tempo pra vinho, mulheres e música, La Nuestra não era um regime puritano. No mágico ar de Buenos Aires, profissionalismo e boêmia podiam coexistir. Um time que jogava artisticamente podia ser uma máquina.

O público na Argentina era grande, volúvel e volátil. Há alguns relatos de brigas entre os torcedores, mas em sua maioria eles eram mais rudes e brutos do que violentos. Os maiores problemas eram causados por decisões da arbitragem. O que distinguia os públicos de Buenos Aires era o repertório de cantos de apoio ou provocação, slogans de amor e ódio que à época eram incomparáveis em termos de intimidade, intensidade, diversidade e criatividade.

Depois de doze anos retirados, os militares argentinos voltam à política e dão um golpe em 1943, pretensamente contra a corrupção dos civis. Dissolvem o Congresso, expulsam os civis da administração e proíbem os partidos políticos. Um coronel até então desconhecido, Juan Domingo Perón, torna-se Ministro do Trabalho e em apenas dois anos desencadeia uma torrente de reformas industriais e sociais. A imensa popularidade e o magnetismo pessoal e político de Perón alarmaram a alta oficialidade e o governo militar, levando-os a deter e prender Perón em outubro de 1945. Naquela que foi a maior manifestação da classe operária, centenas de milhares encheram a Plaza de Mayo e se plantaram diante do palácio presidencial, La Casa Rosada, exigindo a libertação de Perón. Ali nascia o peronismo, o culto, o programa e o movimento. Perón, agora livre, começou a articular uma mistura viciante de nacionalismo, independência e modernização. A classe trabalhadora foi cativada pelo que ele fez e pela promessa de mais reforma social, avanço econômico e inclusão no processo político. A nova classe de industriais apoiou seus planos por uma independência econômica nacional e por uma industrialização doméstica controlada. A fusão dos dois mais dinâmicos setores da sociedade argentina sob o Peronismo atraiu a ala progressista dos militares e uma parte dos intelectuais de classe média. Em 1946 Perón concorreu à presidência e ganhou.

Uma vez no poder, Perón cumpriu suas promessas junto à classe operária. Os salários reais subiram à medida em que o governo ajudou os sindicatos e arbitrou as greves em seu favor. Ao mesmo tempo os preços dos bens essenciais, inclusive o futebol, foram mantidos baixos. O governo diminuiu a influência estrangeira ao nacionalizar as ferrovias antes nas mãos da Inglaterra, as docas controladas pelos franceses e o sistema telefônico que era propriedade norte-americana. A economia desfrutou de um boom com as exportações para uma Europa que iniciava seu processo de reconstrução, Perón pagou a dívida externa e declarou um estado de independência econômica. Estes feitos mascararam a fragilidade das indústrias argentinas, o que era do conhecimento do governo. Perón faz subir as tarifas dos produtos importados, protegendo os industriais que o haviam apoiado. De forma correspondente, a auto-estima futebolística da nação era protegida ao limitar a participação da seleção no futebol mundial. Nenhuma equipe é enviada para a Copa América de 1949 nem para a Copa do Mundo de 1950. Publicamente, foram alegadas diferenças burocráticas, mas era sabido que o regime estava consciente do dano que as noções de superioridade nacional poderia sofrer se houvesse derrota na competição internacional aberta.

O papel do esporte na política doméstica era considerável. O governo de Perón fundiu o Comitê Olímpico Argentino e a Confederação Argentina de Esporte e trouxe o novo órgão para o controle direto do estado. O próprio Perón nomeou a si mesmo como o presidente da nova entidade que foi lançada com posters e slogans declarando que ‘Perón patrocina os esportes’ e ‘Perón, o primeiro esportista’. Perón, da mesma forma que Mussolini, preferia a caça e era um bom esgrimista, mas reconhecia o potencial do futebol na construção da nação e na política social. Nações fortes requeriam corpos fortes e experiências coletivas intensas. O regime, todavia, não queria arriscar e também não enviou a seleção para a Copa de 1954, depois de ver o efeito trágico da derrota de 1950 sobre o Brasil. O atletismo internacional foi visto como uma aposta mais segura e o governo financiou uma grande delegação para a Olimpíada de Londres em 1948, recebendo com toda a pompa os medalhistas, a quem Perón entregou pessoalmente medalhas peronistas comemorativas no estádio do River Plate em 1949. Em seguida a Argentina sediou os primeiros Jogos Pan-Americanos em 1951.

Por contraste, o futebol doméstico era tratado como uma questão política bem mais pesada, como o atesta o fato de que o governo apontou diretamente dois presidentes da Federação Argentina de Futebol (AFA). Compensando o controle sobre a entidade, o governo distribuiu verba, financiando os novos estádios do Huracán em 1947 e do Vélez Sarsfield em 1951. Cada clube procurou adquirir um padrino (padrinho) tomando parte da sua diretoria e ao mesmo tempo fazendo a ligação com os círculos do poder. A carismática e onipresente Evita, possuía um populismo instintivo que a levou ao futebol também. Em 1950 foi criada uma competição futebolística com o nome da primeira dama, da qual participaram equipes de crianças. O evento foi organizado pela Fundação Evita Perón e os meninos recebiam um kit futebolístico, para muitos o primeiro de que dispunham e submetidos a um exame médico obrigatório, vacinação e radiografias. Centenas de milhares de crianças argentinas tiveram o seu primeiro contato com o serviço médico estatal pela primeira vez graças a isso. As finais aconteceram em Buenos Aires. Ouviu-se o hino nacional, marchou-se para Evita que naturalmente deu o pontapé inicial.

O fortalecimento do movimento sindical sob Perón também chegou ao futebol. As condições de trabalho eram ruins e a estabilidade no emprego baixa. Aos poucos os jogadores foram se organizando. No Uruguai os jogadores fizeram uma greve de quatro semanas em 1939. Em 1944, o México inaugurou sua liga profissional e começou a atrair jogadores argentinos e uruguaios cansados de contratos de trabalho feudais e baixos salários. O primeiro sindicato de jogadores argentinos foi formado em 1944, o Futbolistas Argentinos Agremiados. Em 1948 eles exigiram o reconhecimento por parte das autoridades futebolísticas, a criação de um salário mínimo e o estabelecimento da liberdade de contrato. Quando clubes e federação ignoram o sindicato, este marca uma greve para abril. A AFA e os clubes entram em acordo para reconhecer o sindicato mas não aceitam as outras reivindicações. A greve é adiada para julho. Os estádios de Buenos Aires silenciam. Não há nenhum futebol durante aquele longo inverno. O governo intervém na disputa, criando um tribunal para julgar o caso. A liga recomeça, mas quando as recomendações do tribunal não são consideradas suficientes pelos jogadores eles entram em greve novamente em novembro. Os clubes são obrigados a terminar a temporada com times amadores e públicos cada vez menores. Novos contratos e salários são assinados para 1949 mas já era tarde, pois os jogadores de elite tinham partido para a nova liga pirata na Colômbia. Exceto, é claro, por um time: o Racing.

Embora todo clube tivesse um padrino, nem todos os padrinhos eram iguais. El Padrino do Racing Club era Ramón Cereijo, o Ministro das Finanças de Perón. Embora ele não tivesse nenhum cargo oficial no clube, sua relação era tão próxima que o Racing começou a ser chamado de Sportivo Cereijo. No momento em que a maioria dos clubes de ponta da Argentina estavam perdendo o melhor do seu elenco para as novas ligas do México, da Colômbia e até da Guatemala, o Racing não perdeu ninguém. Em 1949, aproveitando o enfraquecimento dos quatro grandes, o Racing furou o bloqueio e ganhou o campeonato. Este tipo de triunfo demandava um novo palco e Cereijo conseguiu para o clube um empréstimo em condições extremamente generosas para que o Racing construísse seu estádio, pagando ao longo de 65 anos. O custo inicial de 3 milhões passou para 11 milhões de pesos. Perón, que antes havia afirmado ser torcedor do Boca, foi à cerimônia de abertura do estádio que foi batizado com o seu nome. Os ministros de Relações Exteriores e do Banco Central foram tornados membros honorários do clube. O time foi campeão novamente em 1950 e 1951, tendo os jogadores recebido um Chevrolet novinho em folha cada um. Perón também conseguiu se reeleger em 1951. O poder do peronismo e seu lugar na história pareciam seguros. Intocada, até agora, pelas duras realidades da economia global e das competições esportivas globais, a Argentina estava no topo do seu próprio mundo.

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