O futebol brasileiro contemporâneo é tudo menos moderno. Começando do alto (ou do mais baixo), temos a Confederação Brasileira dos Filhos… e cunhados do Havelange. É incrível que esta família (inclusive no sentido siciliano do termo) mandou no futebol brasileiro por quase 50 anos. Para quem só conhece Havelange de foto, basta saber que ele se elegeu presidente da FIFA comprando votos e viajando o mundo todo às custas da então CBD. Assim nos conta David A. Yallop em seu livro Como eles roubaram o jogo – segredos dos subterrâneos da FIFA. Se examinarmos federações e clubes, encontraremos a mesma mistura de despotismo, nepotismo, continuísmo e corrupção. Uma pitadinha de Revolução Francesa nesse ponto, com uma revolta do Terceiro Estado e algumas cabeças rolando (metaforicamente) não faria mal algum. Aqui estamos longe, muito longe da modernidade.
Agora vejamos algo básico, como a venda de ingressos. Existe algo mais arcaico e tradicional? Como é que eles sempre vão parar na mão dos cambistas? Será que as rendas reais são mesmo aquelas, será que as gratuidades são mesmo aquelas? É um sistema obscuro que beneficia sempre os mesmos: empresas que fabricam os ingressos (e que fazem adiantamentos aos clubes, que ficam presos a elas do mesmo modo que à televisão) e, mais uma vez, cartolas corruptos. Aqui também uma modernização que acabasse com esse mar de mutretas não iria nada mal.
Sistema de transportes? Em dia de jogo? Existe sim. Em entrevista com o então comandante do GEPE (Grupamento Especial de Policiamento de Estádios), Major Marcelo, ele me disse que o “esquema especial” das empresas de ônibus do Rio de Janeiro quando da realização de jogos noturnos era o seguinte: retirar os ônibus de circulação. Na Inglaterra fui a um jogo do equivalente à 9ª. divisão e o time colocava uma vanzinha (gratuita) para levar os torcedores da estação de trem até o “estádio”. Aqui as empresas de ônibus, multimilionárias, tratam o torcedor de futebol como um leproso (na Idade Média, bem entendido). Cadê a modernidade?
Por falar em polícia, qual é o principal instrumento de policiamento dos estádios? Investigação? Inteligência? Aparelhos sofisticados de filmagem? Errado. Acertou quem respondeu o cassetete, o bom e velho porrete usado pela Humanidade desde o Paleolítico. Ao invés de prender e processar a minoria ínfima de torcedores que vão ao jogo sobretudo para brigar, a polícia prefere bater. Fiz trabalho de campo com policiamento de estádio por um ano e ouvi conversas entre policiais do tipo: “Mandei fazer um cassetete especial com pau de aroeira, dói pra caramba”. Estas “batalhas campais” entre policiais e alguns torcedores interessam sobretudo à mídia, que pode generalizar este comportamento (indevidamente) a todas as torcidas organizadas, desmoralizando-as e criminalizando-as aos olhos da opinião pública. Desde quando o bom e velho porrete é sinônimo de modernidade?
Uma das características da modernidade é o fim do arbítrio dos reis e autoridades. Constituições, leis que garantam os direitos dos indívíduos são elementos centrais na modernidade. O que dizer do Estatuto do Torcedor? Em primeiro lugar, faz a confusão proposital entre torcedor e consumidor, encarando o futebol como um produto. Mudanças e adendos recentes conseguiram piorar o que era ruim, transformando o Estatuto do Torcedor, que em teoria deveria protegê-lo, em um mini Código Penal enumerando punições. Os nossos poucos direitos não são respeitados: que tal ter o direito a assistir ao jogo pelo qual pagamos entrada? Este direito há quatro anos vêm sendo desrespeitado no Engenhão como já mostramos aqui. Modernidade deve ser isso: pagar para assistir a um jogo de futebol e ficar vendo o verso de uma placa de publicidade pintada de verde (requinte de crueldade).
A parte menos moderna, todavia, é o sistema de formação de jogadores. Milhões de jovens brasileiros sonham em ser jogadores de futebol. Pouquíssimos dentre eles irão tornar-se profissionais e dentre estes, apenas uma minoria ínfima irá ganhar os altos salários que povoam o imaginário das classes populares. A formação de um jogador profissional, antes dele vestir pela primeira vez a camisa do time principal, demora em torno de 5.000 horas de treinamento em 10 anos. Mais do que a maioria dos cursos de graduação. Os clubes exploram essa mão de obra infantil sem nenhuma responsabilidade, não são obrigados a dar escola, nem a oferecer cursos profissionalizantes, nada. Se o garoto de 11 ou 12 anos se machucar ou se não “servir” mais o que ocorre? É simplesmente abandonado. Todo ano milhares de jovens sofrem este trauma. Para onde vão? O que fazem? O Estado zela por eles? Se der sorte e for bom de bola e não se machucar e não brigar com ninguém no clube, o garoto tem direito a um empresário que irá fazer um contrato extra-oficial (em outras palavras, ilegal) com ele e sua família. Enfim, uma mistura de escravidão, com pessoas sendo vendidas e compradas, com capitalismo selvagem de grupos de investimento detendo 19,7% de um atleta. Modernidade aqui nem pensar. Regulação por parte do Estado, proteção aos jovens, preparação para a vida futura com ensino profissionalizante, nada disso ocorre.
Da televisão e de sua relação com os clubes será necessário falar? Que tal o “sistema” (para evitarmos termos mais fortes) de compra e venda dos direitos de transmissão? Existe algo menos transparente? Leis do mercado funcionam para clubes endividados diante da rede que detém o monopólio há décadas? E por que o CADE demorou tanto a agir? As brumas da Idade Média ainda não se dissiparam também neste ponto.
Enfim, é válido o sentimento de exasperação (que alguns preferem chamar de ódio, o que é até compreensível) diante do futebol brasileiro contemporâneo, marcado por esta mistura do que há de mais atrasado na política com o que há de mais desumano nas práticas capitalistas atuais. Mas chamar esse Frankenstein de futebol moderno é uma piada.