Wisnik, segundo tempo: o Brasil a partir do futebol (tabelinha com Machado de Assis)
Imaginem o escrete: Machado de Assis, Sérgio Buarque de Holanda, o filósofo tcheco Vilém Flusser, Pasolini, Hobsbawm, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade… Wisnik tabela com todos eles para elaborar a hipótese central do livro, acerca da relação entre o Brasil e o futebol e vice-versa:
“Nesses confrontos com o mundo e consigo mesmo [as copas do mundo], o futebol brasileiro e por extensão o país, se experimenta como um fármacon, um veneno remédio, uma droga inebriante e potencialmente letal que oscila com uma facilidade excessiva entre a plenitude e o vazio.”
Ele desenvolve esta ideia na parte 3 do seu livro, que se inicia com a análise de uma crônica de Machado de Assis, publicada em 1892. Com seu faro de gol para interpretar a cultura brasileira, Machado apontaria para um traço constitutivo: a fuga à obrigação, palavra que à época era um eufemismo para a escravidão. O brasileiro só seria capaz de se mobilizar quando não há calendário, nem relógio, nem ordem do dia; não há regimentos.’ Ironicamente, Machado conclui: ‘ou isto é a perfeição final do homem, ou não passa das primeiras verduras’.
Esta bola seria retomada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil, quando salienta as ambiguidades do “homem cordial”: afeito a tudo que signifique contato direto e pessoal no círculo doméstico e de amizades, mas totalmente desprovido de ‘espírito público’ e sem uma ‘moral do trabalho’. Isto teria um efeito nefasto para a nossa política mas seria uma maravilha para a vida cultural. Comenta Wisnik: “O mesmo nó que produziu o favorecimento ao arrepio da lei e a i
mpunidade qualificada pelo privilégio produziu o samba, o futebol e a poesia modernista.”
Sérgio Buarque de
Holanda, na redação do jornal Diário Carioca. Rio de Janeiro, 1956. Foto: Wikipédia.
Se Machado e Sérgio Buarque de Holanda parecem enfatizaro lado veneno, sem jamais esquecer do aspecto de remédio, dois pensadores estrangeiros sublinharam possibilidades positivas, ou seja, o lado remédio. Vilém Flusser, um filósofo tcheco que residiu no Brasil por décadas, recusava-se a ver no futebol brasileiro uma forma de alienação, de fuga do cotidiano e do trabalho. Para ele, segundo Wisnik, no caso brasileiro o futebol pode ser encarado como a construção de uma realidade própria:
‘se o proletário se realiza existencialmente no futebol, de forma que tal realização extravase as fronteiras do futebol e invada todos os campos e dê sentido à sua vida, como negar-lhe realidade?’
O outro pensador estrangeiro a ver positivamente a relação entre os brasileiros e o futebol já foi citado no artigo da semana passada. O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini com sua ideia de um ‘futebol de poesia’, que teria na seleção brasileira seu exemplo artisticamente mais perfeito. Da mesma forma que seu ‘cinema de poesia’, trabalharia contra a “padronização cultural burguesa e a descaracterização” gerada pela cultura de massas.
A ambiguidade reveste-se ao mesmo tempo de possibilidades e de perigos e esta dimensão dialética do caso brasileiro teria sido percebida de maneira precisa e audaciosa por Oswald de Andrade. Ele inverteria a ideia de prova dos nove: ao invés do prazer submetido à prova do princípio de realidade, a realidade seria submetida à prova do prazer. Daí afirmar “a alegria é a prova dos nove”. Nossa antropofagia “faz possível à cultura popular brasileira tomar para si a cultura colonizante, reinventando-a sob um viés distinto e imprimindo-lhe uma outra configuração civilizatória”.
O maior exemplo e a maior realização disso no Brasil seria exatamente o futebol, por sua capacidade de “desvelar e imprimir, no futebol inglês, algo como uma outra lógica”, ou seja: “uma criativa e poética ‘lógica da diferença’”. Aqui o futebol seria “a arena principal dessa síndrome [apontada por Machado], o seu maior campo de provas, ao mesmo tempo em que um lugar privilegiado da sua elaboração.” É como se no futebol pudéssemos experimentar e tentar superar nossas fraquezas, ao mesmo tempo extraindo delas todas as possibilidades artísticas provenientes do agir espontâneo, do gosto pelo improviso, que são o outro lado da moeda da fuga da obrigação apontada por Machado.
Há um trecho em que Wisnik formula com muita clareza esta ideia central, retomando a oposição feita por Machado de Assis:
“O mais intrigante e extraordinário, no entanto, e não menos irônico, é que o futebol acabou por oferecer o terreno e a oportunidade histórica, no seu campo próprio, de um equacionamento positivo da ‘perfeição final’ com ‘as primeiras verduras’, isto é, do sonho da civilização avançada combinado inesperadamente com a gratificação das disposições infantis, num plano lúdico-artístico.”
De que forma?
“Porque, no caso, o jogo admite as demandas infantis que estão na base da compulsão ao brinquedo de bola (congenitamente avessa, por sua vez, ao universo da obrigação), ao mesmo tempo em que exige maturação e senso de responsabilidade, sem o qual a disputa não se sustenta. Ludicamente gratuito e seriamente jogado, o futebol teve a capacidade de reverter a dialética negativa do círculo vicioso”
Os protagonistas desta operação cultural altamente sofisticada teriam sido sobretudo “descendentes de escravos que têm gana de brincar com a obrigação, e aos quais não faltou repertório para fazer disso um salto simbólico de expressão nacional e universal”. Nada caracterizaria melhor uma cultura que oscila permanentemente “entre a tragédia e o carnaval” do que o nosso futebol e a nossa música: “espécie de tecnologia do ócio”.
Wisnik alerta que são muito comuns as análises unilaterais, uma espécie de chute de bico apressado e sem arte. Nelas, assim como no “imaginário coletivo”, oscila-se entre uma visão otimista que ressalta nossa originalidade presente na “ginga”, na “malandragem” etc. E outra que denuncia tudo isso como a ideologia mistificadora de uma “democracia racial”.
O futebol brasileiro estabelece uma relação complexa com a sociedade e a cultura brasileiras, das quais ele faz parte e ajuda a elaborar e pensar. Ele permite ao mesmo tempo percebermos nossas contradições e o nosso potencial para a construção de um sonho coletivo. Apenas um craque do quilate de Wisnik é capaz de levantar essa bola.