/DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 12 – EM BUSCA DOS TURCOS E DE ALGO MAIS

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 12 – EM BUSCA DOS TURCOS E DE ALGO MAIS

Descobri que alucinação vem do Latim: alucinari, “vagar mentalmente, sonhar, divagar”. Na minha etimologia imaginária, viria de luz, pois o céu de Itacambira me pôs a sonhar e a acreditar na existência de Diadorim. Mas quando acordo, antes da luz, lá fora parece o Morro dos Ventos Uivantes e faz tanto frio que preciso colocar um cachecol. O sertão mineiro é mais rico e diverso do que se pensa.
 
Ao pegar a estrada veio a surpresa maior: chuva. Tá certo, uma chuvinha de pingos minúsculos, mas durante alguns minutos tive que ligar o limpador de para-brisa. Posso me gabar que já vi chover no sertão. Este milagre tinha que ser na terra de Diadorim.
 
Estava indo para o sul, tinha cinco horas de viagem até Corinto. Até a década de 1920, a cidade se chamava Curralinho, pois foi formada a partir de um ponto de parada de tropeiros, que ali armavam currais improvisados para guardar seus animais. Depois, talvez descontente com um nome tão “baixo”, adotaram o nome da cidade grega por sugestão de um padre.
 
Curralinho aparece em Grande Sertão: veredas como a pequena cidade para onde Riobaldo vai para aprender a ler e escrever, mas também a atirar e manejar faca. Selorico Mendes, seu pai verdadeiro e oficialmente apenas seu padrinho, o envia para lá ao descobrir que o afilhado não sabia ler nem mesmo o documento que comprovava a amizade do seu pai com um poderoso chefe de jagunços.
 
Riobaldo explica o que estudou no Curralinho:
 
“Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam.”
 
Nem só de estudo era feita a vida de Riobaldo em Curralinho. Embora não fosse reconhecido como filho do rico fazendeiro Selorico Mendes, Riobaldo levava uma boa vida:
 
“Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. “
 
Uma dessas moças, aquela de quem Riobaldo mais gostou, e com quem ele aprendeu as artes do amor, era filha de um imigrante que ele chama de turco, mas que era provavelmente sírio-libanês, parte de uma onda iniciada a partir de 1870 e que fez com que houvesse nove mil imigrantes sírio-libaneses em Minas Gerais no início do século XX, quase um quinto dos que viviam no Brasil à época.
 
Riobaldo gostava das comidas e da própria família de seo Assis Wababa, um “negociante forte”, “dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José”, mas tinha especial apreço por Rosa’uarda:
 
“Assim mesmo afirmo que a Rosa’uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras
bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de: – “Meus olhos.” Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular.”
 
Lá íamos, o burrinho e eu, com uma missão dupla: tentar investigar a presença atual de descendentes de sírio-libaneses em Corinto e também possíveis vestígios da antiga Curralinho.
 
Depois de uma meia hora descendo a serra, cheguei na localidade de Pau d’Óleo. Ali tive que seguir por uma estrada de terra de treze quilômetros. Resolvi ir bem devagar e apreciar, fotografando sempre que possível: porteiras, caminhos, o gado… Teve um boi curioso que praticamente parou para conversar comigo. Desfrutei o caminho, mas cada quilômetro apontado pelo marcador do carro foi comemorado feito um gol.
 
Enfim chego ao tão sonhado asfalto, na cidade de Guaraciama. Não esperava encontrar o que encontrei: faixas dos professores protestando contra um prefeito que “Faz festa, contrata shows, mas não paga o reajuste do magistério de 2018 e 2019”. Havia outra faixa, que poderia ser fabricada aos montes e distribuída pelo Brasil (e pelo mundo) afora: “A democracia está em risco, quando os direitos são violados”. Bravos professores e professoras de Guaraciama..
 
Aproveitei para reforçar o café da manhã. Perguntei a uma senhora com bebê (uma gracinha, todo rechonchudo) sobre possíveis padarias. Ela disse que havia duas: a do Nilton e a do Gaspar. Acabo encontrando a padaria do Gaspar. É incrível, mas não havia queijo. Havia pão de queijo feito de couro, um biscoito de queijo gostoso, crocante, mas nem um queijinho minas à vista. Lembrei do Rosa: “Sempre, nos gerais, é à pobreza”.
 
Chegando em Corinto, a primeira missão que me dei foi a de tentar encontrar os descendentes de imigrantes sírio-libaneses na cidade. Com pouco tempo, primeiro percorri o centro, o comércio, procurando alguma pista a partir do nome das lojas. Nada feito. Mas vi um nome promissor, o de uma advogada: Nadine Zille. Sua secretária me informou que ela voltaria logo. Fui almoçar em mais um comida a peso com feijão tropeiro e retornei. A doutora foi muito simpática. Mas informou que na verdade é descendente de italianos que viviam em Teófilo Otoni. Nada feito.
 
Em seguida fui à OAB, imaginando que os descendentes de mascates e depois de comerciantes bem estabelecidos hoje estariam trabalhando em profissões liberais. Também fui bem atendido pelas três pessoas que estavam na sala de entrada da OAB. Mas ninguém conhecia um advogado ou advogada descendente de sírio-libaneses. Até que lembraram de um. Telefonaram para ele. Os pais eram sírio-libaneses, chegaram na década de 50, muito depois do que teria vindo seo Assis Wababa. Soube também de um médico iraniano que trabalhava no posto de saúde, recém-chegado ao Brasil.
 
Aliás, ainda não falamos nisso, mas afinal em que época se passa o romance? Quando fala do registro de batismo de Maria Deodorina (que depois se transformou em Diadorim), Rosa propositalmente evita uma datação ao dizer que fora levada à pia batismal “Em um 11 de setembro de 1800 e tantos…”. Ele queria que a história tivesse um tom mítico, algo que se passa em um lugar e mais ou menos em um período, mas sem uma data precisa.
 
Não há dúvida de que o romance se passa na Primeira República, antigamente chamada de República Velha, entre 1889 e 1930. É a época dos coronéis, dos currais eleitorais, das eleições fraudadas a bico de pena ou através do uso de outros artifícios: às vezes até mortos “votavam”. O fantástico personagem Zé Bebelo representa ao mesmo tempo o sonho dos positivistas de ordem e progresso e a sua falência: ao final ele se torna chefe de jagunços e por fim comerciante, não alcançando seu desejo de ser deputado. Sua mania sintomática de percorrer os campos ao final de uma batalha executando inimigos e gritando Viva a lei! é uma poderosa sátira aos militares que proclamaram a república e queriam ver seus ideais implantados nem que fosse a ferro e fogo.
 
Para os que desejam uma datação mais precisa, não há muitos indícios. Mas há um, precioso, que pipoca em um jantar na casa de seo Assis Wababa quando este conversa com outro comerciante, o alemão Vupes:
 
“Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor.”
 
Acontece que sabemos que a estação de Curralinho foi inaugurada em 1904, uma linha da Estrada de Ferro Central do Brasil que iria chegar até Montes Claros. Digamos então que o jantar em que estava Riobaldo aconteceu uns quatro anos antes, em 1900. Isso faria com que as aventuras de Riobaldo e Diadorim pelo Grande sertão tenham ocorrido na primeira década do século XX. Esta datação se combina bem com outro dado. Calculo que Riobaldo tivesse por volta de 18 anos quando saiu da casa do pai em 1900. Digamos que o momento em que o velho Riobaldo, agora fazendeiro, narra história para o doutor é o momento atual em que é publicado o livro, no início do governo JK em 1956. O período da euforia desenvolvimentista que é indiretamente mencionada no início da obra. Isso faria com que Riobaldo tivesse cerca de 74 anos quando para três dias para contar sua vida ao doutor. Encaixa. Claro, é só uma especulação.
 
Fui então fotografar a Maria Fumaça de Curralinho. Afinal, tinha que imaginar a locomotiva em que Riobaldo, já idoso e doente, viajou até Três Lagoas para se consultar com um médico. Foi fácil, era perto, não houve nenhum impedimento. A máquina é ainda impressionante e fico imaginando o impacto que não causou na imaginação de todos. Afinal, até hoje os mineiros usam “trem” como sinônimo de “coisa”: “eta trem bom” e por aí vai.
 
Vou até a biblioteca da cidade para ver se colhia algumas informações. Fui atendido pela bibliotecária, Fernanda, uma mulher de uns trinta anos muito simpática. Ela me disse que restava pouco da cidade antiga, só as ruínas de uma hospedaria que havia sido construída para receber os viajantes. A cidade, afinal, foi construída à beira de um caminho de tropeiros, exatamente por onde passa a estrada asfaltada atual. O caminho de tropeiros, por sua vez, devia ter sido antes trilha de índios e por aí vai… Comentou que as ruínas haviam sido invadidas e que havia só uma velha caixa d’água.
 
Sendo assim, a terceira e última missão do dia: ir até onde a cidade foi fundada, bairro hoje conhecido como Curralinho Velho. O problema: assim que cheguei ao hotel, perguntei ao funcionário por Curralinho Velho. Ele me disse ser um local de “noiados”, gíria para usuários de crack. Isto somado ao que Fernanda me dissera não me deixara muito tranquilo, sou tão corajoso quanto Riobaldo.
 
Mas sou tão curioso quanto ele também. Não achei nada, só a caixa d’água cercada de um muro esquisito. Fui perguntar a uma mulher onde era e para isso abri o vidro do carro. Ela olhou muito para o banco, para ver se havia algo para roubar. Depois me pediu dois reais. Provavelmente para comprar crack. Era de dia, mas ela falava de um jeito estranho, meio desesperado.
 
Para não terminar com uma nota tão negativa, repasso aqui a história que a bibliotecária Fernanda me contou. Em frente ao prédio da biblioteca há uma praça e nesta quatro “estátuas” feitas de concreto. Uma delas é um homem de óculos, sentado, maneta por conta de algum vândalo ou da ação do tempo. Depois há dois homens sentados, bem longe um do outro. E por fim há um homem alto, em pé, longa barba. Este eu reconheci como sendo Manuelzão. Então… deduzi que o primeiro, de óculos, era Guimarães Rosa e os par de homens representava Riobaldo e Diadorim. Mas por que não havia nenhuma placa informando? Fernanda me explicou que a prefeitura não pediu licença à família e depois de tudo pronto não pode colocar placa.
 
A minha versão é diferente: imagino que ao ver as horrendas representações de Rosa, Riobaldo e Diadorim – Manuelzão até que está simpático, a família proibiu, com toda a razão. Parodiando outro diplomata e escritor, a prefeitura de Corinto que me desculpe, mas beleza é fundamental.
 
Aqui terminava minha segunda viagem ao sertão de Rosa. No dia seguinte partiria para Belo Horizonte e depois para o Rio de Janeiro, com escala em Juiz de Fora. Feito Vinicius, busquei a beleza e a encontrei seguidamente, mesmo que ameaçada. A Andrequicé de Manuelzão, as águas sagradas do Urucuia, o bom e velho Rio Chico, Grão Mogol, a cidade de pedra, a transcendente Itacambira. Não importa por onde eu vá, estarão sempre comigo. Como ensina Guimarães Rosa: “O sertão está em toda a parte.”
 
10 de outubro – 5a. feira – NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
 
Foto: M.A. , a Maria Fumaça, Corinto, MG, agosto de 2019