Dos botões aos bits: novas formas de torcer?
A mesa maior era o Maracanã. São Januário era representado por uma mesa média. E a mesinha menor ficava sendo a mítica Rua Bariri. Os campeonatos de futebol de botão do meu prédio eram muito organizados. A tabela era meticulosamente elaborada por mim em folhas de caderno. Além dos resultados, anotava-se a autoria de cada gol, para efeito da artilharia. Calculavam-se saldos de gols, importantes para o desempate, de acordo com regras minuciosamente previstas no regulamento. Por vezes criaram-se normas impossíveis de cumprir, como a que proibia a comemoração dos gols, que em certo momento chegou a consistir em uma “volta olímpica” em torno da garagem do prédio. Os times eram feitos de galalite, com botões de cores variadas, nos quais alguns colocavam números, escudos e por vezes, como no meu caso, pequenas cabeças de jogadores recortadas dos jornais. De vez em quando fazíamos uma Copa do Mundo, quase a toda hora um campeonato carioca, um longo campeonato brasileiro e às vezes um campeonato inglês, por exemplo. Em cada campeonato o mesmo botão representava jogadores diferentes: hoje ele era Doval, daqui a duas semanas incorporava o craque inglês Kevin Keegan ou Jairzinho. A imaginação é que fazia todo o trabalho. Olhava-se para um pedaço de plástico redondo e se imaginava um craque a reinar pelos gramados, defesas milagrosas para córner eram feitas por uma caixinha de fósforo com chumbo dentro e muita fita isolante por fora e, por fim, um quadradíssimo dadinho servia de “bola”. Nesse tempo assistir a um jogo de futebol era praticamente sinônimo de ir ao estádio. Fora isso, havia que novamente exercitar a capacidade imaginativa ouvindo transmissões radiofônicas em que um reles lateral parecia um feito épico e cada gol uma apoteose. Creio que todos que viveram aquela época lembram-se perfeitamente de quando foram a um estádio pela primeira vez.
Corta para 2015. O futebol de botão ainda existe, mas é quase uma curiosidade. Os meninos de hoje não precisam exercitar a imaginação tanto assim. A cada ano novas versões de jogos eletrônicos prometem mais e mais “realismo” nas jogadas efetuadas a partir do hábil uso do controle, o que permite passar de várias formas, dar inúmeros tipos de chutes, dribles, cabeçadas, “lençóis” e por aí vai. Os fabricantes disponibilizam times completos com reservas já devidamente desenhados a ponto de imitar até mesmo a maneira de andar e correr de cada jogador do mundo real. Você pode optar por treinar, jogar uma partida “amistosa” ou disputar alguns dos campeonatos mais importantes do planeta. Com chuva, sol ou neve, à noite, de dia, enfim, com uma pletora de possibilidades. Até aqui, podemos dizer que a “função” desses jogos é exatamente a mesma que antes era desempenhada pelos nossos queridos botões de galalite: permitir a “imitação” de uma partida de futebol. Mas há uma grande diferença. Na maioria dos casos estes jogos eletrônicos pedem ao “técnico” algo além de escalar e dirigir a sua equipe em campo. Agora há que comprar e vender jogadores, administrando eficazmente o montante sempre finito de recursos disponíveis. Enfim, a parte administrativa e sobretudo a parte financeira do futebol foram incorporadas como parte da “brincadeira”.
O que isso denota? É um sintoma daquilo que os torcedores ingleses gostam de chamar de “colonização do futebol pelo capital”. É a lógica da mercadoria, onipresente no mundo contemporâneo, invadindo até os espaços antes mais refratários a ela, como a relação do torcedor com o seu clube de predileção. Antes o “valor” do torcedor, a dedicação dele ao clube, eram medidas em termos da sua capacidade de entrega pessoal e emocional. O sujeito que interrompia a lua de mel para ver um jogo, o cara que não faltava a um jogo ou até, num caso mais dramático, aquele que morria do coração ao comemorar o gol do título. Você poderia não gastar um centavo com o seu clube e mesmo assim ser considerado um “fanático”, um verdadeiro torcedor. Hoje os programas de “sócio-torcedor”, que nada mais são do que uma espécie de cartão da C&A futebolístico, são apresentados como uma maneira do torcedor demonstrar seu “amor” pelo clube. À vista, no boleto ou no cartão de crédito, é claro. Na prática, eles acabarão inviabilizando o acesso aos estádios pelos torcedores sem tantos recursos financeiros. Aos quais restará comprar o direito de assistir aos jogos pagando pelo pay-per-view ou frequentando o boteco da esquina onde passam os jogos em troca do consumo de umas cervejas e tira-gostos.
A expressão “sócios-torcedores”, é totalmente marqueteira, pois são “sócios” que não participam das decisões, não elegem presidente, nem podem frequentar o clube. Podem apenas “contribuir” para fortalecer o clube. O amor e o dinheiro se confundem, é como se o afeto pudesse também ser monetarizado. Agora, além de debaterem a melhor tática, reclamarem da escalação ou analisarem atuações individuais, torcedores também analisam os “investimentos” feitos pelo clube em seus “ativos”, ou seja, em mercadorias (jogadores) que o clube compra e vende, quando não aluga. Não espanta, por exemplo, que o clube mais popular do país esteja sendo dirigido por um presidente e um grupo totalmente provenientes do ramo da economia e do mercado financeiro.
Não é uma questão de purismo. Desde a sua transformação em esporte regrado e em espetáculo de massas que o futebol serve para vender de tudo um pouco: cerveja, chuteiras, figurinhas, jornais, bolas, camisas, rádios e por aí vai. Clubes hoje tradicionais como o Liverpool, surgiram de demandas comerciais, nesse caso o dono de um pub e de um estádio que precisava de uma equipe e criou uma do nada, importando jogadores escoceses para ter sucesso imediato. Mas ao lado desta faceta comercial do esporte sempre houve um espaço reservado, sagrado, marcado pela relação apaixonada e desinteressada: aquela do torcedor ou torcedora com o seu clube. Quando as crianças de hoje, ao invés de brincarem somente de gols e vitórias também se dedicam ao planejamento financeiro e à administração do clube como uma grande empresa é um sinal de que também o futebol está sendo ferido de morte pela lógica da mercadoria.
Como forma de protestar contra a hiper-comercialização, um torcedor inglês chamado Steve Brown pôs à venda sua lealdade de torcedor por um ano. Por cerca de quinhentos reais ele deixou de torcer pelo poderoso Arsenal e se comprometeu a apoiar o modesto Shrewsbury Town, então na quarta divisão do futebol inglês. O torcedor e o seu amor pelo clube é a última fronteira a separar o futebol profissional da realidade nua e crua do comprar e vender. Dá vontade de cantar aquele samba que diz: “isso aqui não é quitanda”. Será?