/ADELINA (romance) – Capítulo 1

ADELINA (romance) – Capítulo 1

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 1 – 1816 – Adelina

O vento soprava um recado de medo. Não se ouviam o caititu, o calau ou os periquitos. Nenhuma galinha ciscava o terreiro. Os cães tinham desaparecido. Um cesto de palha estava virado, os quiabos no chão. Secos, os galhos das árvores eram braços levantados ao céu pedindo socorro. A terra aos meus pés estava gelada. Vi pegadas profundas, feitas por homens fortes. Outras, por anciãos em seu caminhar arrastado. E marcas de pezinhos correndo a brincar. Não achei ninguém. O silêncio habitava a aldeia. Olhei para as cabanas. Estavam vestidas de fogo, as labaredas subindo alto. Não sabia o que fazer. Corri para o rio. Atravessei a mata e alcancei a margem. O Cuanza não respirava. Só restavam o leito seco e o cheiro de morte. Deitada na terra úmida, um animal feroz, a imensa canoa que nos levara na travessia da Calunga Grande.

Despertei assustada com o tiro de canhão que marcava o início do dia. Meus pés estavam machucados. Cortados em cacos de vidro, pedras pontiagudas, pedaços de madeira. Olhei meu corpo. Felizmente, fui queimada a ferro nas costas, assim não podia ver a marca dos ahuki.

Braços que buscavam água no Cuanza, agora não são meus. Mãos que preparavam o peixe do Cuanza, não me pertencem mais. Estas pernas fortes com que eu corria para me jogar no Cuanza, agora têm outro dono. Meu ventre. Meu sexo. Que eram de Mukongo. Agora podiam ser de um desses brancos. Desse povo fedorento que me roubou e me arrastou e me prendeu e me jogou aqui nesse quarto apertado e abafado, largada numa esteira.

Olhava a saia imunda e a blusa rasgada que me haviam dado. Rosa, rebolo feito eu, disse que depois iam me vestir bem. Eu era bonita e uma vendedora de aluá tem que se destacar para vender mais. Os primeiros dias foram um desastre. Ontem, fomos a um lugar aberto perto da casa grande onde vive a rainha deles. No caminho ouvi assobios e uma porção de palavras desconhecidas. Não era preciso saber a língua deles para entender olhares de hiena-malhada. Senti nojo. Afastei com tapas os beliscões e carícias. Lembro de Mukongo tocando a minha mão pela primeira vez como se estivesse afagando um pássaro.

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A desgraça aconteceu quando passamos por um desses caminhos apertados com casas altas. Rosa disse chamarem-se ruas. Me fez repetir a palavra várias vezes.

Aprender o que sai da boca dos brancos é a única maneira de conseguir sobreviver.

Numa dessas tais ruas, ouvi um grito saído de uma janela e nem tive tempo de fazer nada. Alguém despejou um vaso e a sujeirada caiu toda em cima de mim. Ela me explicou, tinha sido um alerta e significava “Lá vai água!”. Mas aquilo não era água. Não podia ir trabalhar. Tivemos que voltar em casa para eu tirar a saia emporcalhada e colocar uma velha e rasgada. Os brancos acham que somos imundas, só trocam nossas roupas de tempos em tempos. E somos nós que lavamos a roupa deles. Que limpamos a casa deles. Que fazemos a comida deles. Que tomamos conta dos filhos deles.

Saudade eu tenho do Cuanza, quando corre forte formando cachoeiras. À beira dele lavávamos roupa, contávamos histórias, fazíamos brincadeiras, trocávamos confissões de amor. Cantar e dançar à beira do Cuanza. Aquela música de água sempre correndo. Foi lá, numa pedra do rio, que Mukongo conversou comigo sem dizer nada, só com os olhos de leopardo me bebendo como se eu fosse um lago. Mukongo era o melhor caçador da aldeia, apesar de jovem. Os caçadores mais velhos e experientes diziam que sua habilidade era fruto de feitiço. Mukongo compartilhou seu segredo:

Eu ouço a mata, converso com as árvores, sou amigo dos pássaros, piso nas folhas com carinho, peço licença antes de saborear cada fruto. Eu amo a floresta. Ela me presenteia. Não mato os animais com raiva. Mato por amor à nossa gente, que precisa comer.

Mukongo era adorado pelas crianças. Quando voltava da mata era cercado, elas se abraçavam às suas pernas, pulavam para tocar nos seus braços. Ele sorria, com a caça no ombro. Eu ficava de longe, pensando em como seria ter um filho com ele. Iria depositar a criança no colo para Mukongo derramar aqueles olhos. Sabia que seria um menino.

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Adeus, Cuanza. Adeus, meu amor. Cá estava, deitada, sem vontade de abrir os olhos. Primeiro preparar o aluá e passar o dia todo vendendo a bebida para matar a sede desses brancos. Depois era voltar para casa e ajudar as outras. Apesar do cansaço, era o momento de conversar sobre o nosso dia, contar as novidades e a história mais recente sobre os nossos donos. Nosso ódio se transforma em fofocas sobre os senhores. Maria Preta, a cozinheira, era divertida. Por lidar diretamente com os patrões, todos os dias tinha algo a contar. Sua raiva maior era do sinhô. Ninguém tinha coragem de falar isso na frente dela. Se dizia que quando era mais jovem, tinha sido obrigada a deitar com o dono da casa. Ela odiava o patrão, embora este a tratasse com menos brutalidade do que o habitual. A patroa queria mandar Maria Preta para bem longe, de preferência para a fazenda, onde iria sofrer na mão do feitor. Hoje Maria Preta estava animada: o patrão estava desarranjado da barriga. O curioso é que ele só gostava de comida com muita pimenta, coisa de negro. Mas não aguentava não. De tempos em tempos passava mal. Para a alegria da Maria Preta, que largava a mão no tempero.

Como a diária de uma vendedora de aluá enche o bolso dos patrões – e também por eu ser bonita, me explicou Rosa – não sou tão castigada. Mas o menino que acabou de chegar do Mercado de Escravos apanha demais. Estevão é puro osso, olhinhos encovados, a pele ainda cheia de feridas, coçando sem parar. É tratado aos gritos, apanha de todo mundo, até dos outros escravos, como se fosse também o nosso escravo. Resolvi protegê-lo. Não sei como. Mal pus os pés nessa terra que fica depois da Calunga Grande. Quando desembarquei, há cinco luas, vi malungos correndo pelas ruas a pensar que estavam na terra dos mortos. Outros diziam que seríamos comida para os brancos. De certa maneira, somos comidos dia-a-dia por eles. Eu os chamo de ahuki, os que raptam, os que vivem da rapina. Rapina de vidas.

Tinha chovido no dia anterior. Os caminhos estavam enlameados e o Cuanza seria capaz de engolir uma manada de elefantes. Mesmo assim, resolvi ir até o rio com Kitusha, minha irmãzinha. Tínhamos ouvido histórias sobre pessoas devoradas pela floresta. Houve quem dissesse que os deuses estavam com raiva. Outros não acreditavam em nada. Nós queríamos lavar roupa para aproveitar o dia de sol. Sempre fomos vaidosas. Na aldeia éramos admiradas pela limpeza das vestimentas. Fomos até o rio cantando e batendo palmas. O Cuanza descia feito uma manada de búfalos desembestados. Estava lindo. Não podíamos ter medo do nosso rio. Mas achamos a mata calada demais.

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Buscamos um trecho protegido por pedras, o lugar mais disputado pelas mulheres para bater roupa. Kitusha queria saber quando eu e Mukongo íamos nos casar. Ri e perguntei se estava com tanta pressa de ter sobrinhos. Foi aí que eles apareceram. Não eram homens. Uns eram marrons feito o pardal-de-sobrancelhas e estes eram os piores. Os outros, cobertos de pelos até no rosto e com a cor da morte, apontavam armas para nós. Mas foram os mulatos, como depois aprendi, que vieram na nossa direção. Minha irmã se lançou à correnteza do rio apesar dos meus gritos. Até hoje não sei se está viva, tomara que os deuses a tenham protegido. Salvação não houve para mim. Tive as mãos amarradas com uma corda bem grossa e fui arrastada para longe do Cuanza, para longe de Mukongo, para longe do meu mundo.

Não sei quanto tempo caminhamos, foram muitas luas. De dia soltavam minhas mãos, para que eu servisse de carregadora. Havia mais um rapaz e um par de meninos. A cabeça girava tentando imaginar o que fariam conosco. A única coisa que me mantinha viva era tentar animar as crianças. Eles eram jingas. Não falávamos a mesmo língua mas dava para conversar um pouco. Eu fazia brincadeiras, cantava, contava histórias. Sempre em voz baixa, quase sussurrando, porque os brancos não gostavam de ouvir a nossa voz. O rapaz era tímido, mas corajoso. Tinha a firmeza de um jovem guerreiro. Era um ndembu.

Achava que não iríamos parar de andar nunca. Mas um dia chegamos ao que pensei ser um rio sem a outra margem. Ali havia uma aldeia gigante. As cabanas não tinham teto e eram feitas somente de madeira fincada no chão. O barulho se ouvia de longe. Havia muitos rebanhos de gente, homens jovens em sua maioria, mas também mulheres e crianças. Coloquei a manta no rosto para aguentar o cheiro. Me separaram dos dois meninos. Não podia mais fazer nada por eles.

No dia seguinte, de manhã, dois homens me levaram para um lugar onde havia um ferreiro. Tentei fugir, em vão. Eles me seguraram com toda a força enquanto o ferro em brasa fazia minha pele derreter. Senti dor e o cheiro da própria carne. O sinal dos brancos para sempre marcado no meu corpo. Que os deuses dêem a esses homens aquilo que merecem.

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Tive sorte em ficar apenas uma semana naquela aldeia dos desesperados, até a pele se recuperar um pouco. Logo me colocaram com centenas de infelizes. Veio um branco com roupa preta. Ele falava e o negro ao lado dele explicava as palavras:

Considerem-se desde já filhos de Deus. Vocês vão para o país dos portugueses, onde vão aprender as coisas da fé. Esqueçam os costumes de suas terras, deixem de comer cães, ratos e cavalos. Sejam contentes.

Quem disse que a gente comia isso? Esse homem da roupa preta nunca havia comido uma galinha com quiabo bem preparada, sem falar na moqueca com os peixes do Cuanza. Depois ele colocou um pó branco de gosto amargo na boca de cada um de nós. Além disso, nos deu um novo nome, já que o Deus deles não aceita os nossos. Apontando para mim olhos feitos de sombra, ele disse:

Adelina

Resolvi guardar aquele nome. Adelina é que iria passar por aquilo tudo. Só voltaria a me chamar de Olabisi quando conseguisse voltar para Mukongo. Para esses brancos, serei Adelina. Nós, malungos, companheiros de barco, sabemos o que ninguém mais sabe. O que é subir, à força de chicotadas, na canoa grande cheia de panos. O que é ser acorrentado em meio a centenas de pessoas que você nunca viu. O que é compartilhar a dor, o desespero, a sede que nunca passa. O que é sufocar com o cheiro das fezes que cobrem o chão. O que é ter grilhões machucando os pés, sem espaço para se movimentar.

Víamos a luz do sol duas vezes por semana. Os brancos então queriam todo mundo a cantar e dançar, a bater palmas animadamente. Usavam o chicote. De início, mal conseguíamos abrir a boca. Logo a força da música nos tomava e a vida voltava. Muitos abandonavam a luta durante a travessia. As doenças eram muitas, mas a principal era mesmo a falta de vontade de viver. Os brancos sabiam. Éramos mercadoria e eles não queriam perder dinheiro.

Havia dois andares para nós. No de cima ficavam os homens, inclusive os rapazes e os meninos. E nós, mulheres, estávamos presas no andar de baixo. Um dia ouvimos os homens a xingar os brancos dizendo que iam matar os ahuki. Batiam seus grilhões no chão, jogavam-se contra as paredes do navio, gritavam o mais alto que podiam. Puro desespero. Os brancos não podiam tolerar aquilo. A voz deles

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gritando o que eu não entendia. Mas uma de nós disse serem ordens e ameaças. Ouvimos vários estrondos e gritos de desespero e dor. Depois de um tempo, um silêncio pesado, interrompido por lamentos.

Ficamos sabendo como foi. Cinco homens, cada um com um pau de fogo. Miraram nos negros mais exaltados, mas não se importaram de acertar rapazes ou meninos. O chão ficou vermelho, a madeira bebeu sangue. O medo era rei, viajamos de mãos dadas com o terror.

Chegamos na grande aldeia dos brancos. Acorrentados, atravessamos a cidade até o mercado. As pessoas se afastavam, tapavam os narizes, faziam cara de desgosto. Éramos os sobreviventes. Magros, fracos, doentes. A pele coçava até fazer feridas. Antes de sermos postos à venda, nos deram banho, tivemos nossas moléstias tratadas e fomos bem alimentados para recuperar nossa saúde. É claro que novamente nos puseram a cantar e dançar. Para os nossos corpos nos lembrarem de quem somos e que vale a pena respirar. Para eles somos coisas que falam. Aqui não somos gente, somos braços, somos pernas, somos ombros para carregar o mundo deles nas costas.

Fui comprada na manhã em que me colocaram à venda. O traficante sabia algumas palavras em quimbundo para ajudar na inspeção da mercadoria. Eu. O futuro dono fez um exame completo. Tomou minhas mãos, alargando bem os dedos e pedindo que eu os fechasse e abrisse rapidamente. O mesmo com os pés. Pulei o mais alto possível. Também fui obrigada a agachar e levantar para mostrar que os joelhos estavam bons. Forçou-me a mostrar a boca para examinar dentes e gengivas. Pediu que eu gritasse o mais forte possível. Em seguida, que arregalasse os olhos. Tive que levantar uma pedra para mostrar força nos braços. Não havia motivo para ele passar a mão nos meus seios. Ahuki.

Será que eu valia tanto quanto um cavalo ou uma mula? Agora pertencia ao homem atarracado e redondo que usava um chapéu ridículo e botas tão altas que chegavam quase aos joelhos. Quantas voltas a vida dá para que uma filha do Cuanza se torne propriedade do senhor Damásio?

Resolvo me levantar. Assim terei alguns minutos para me lavar. Estou com fome. Ontem à noite nos deram somente laranja com farinha. Pelo menos Rosa

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surrupiou umas bananas para a gente não dormir com a barriga roncando. Ela diz que vou ter meu dinheirinho. Assim que souber vender aluá. Quando aprender a lidar com esses brancos, usando o desejo deles. Vão comprar aluá só pra ficar mais um tempinho olhando pra mim. Depois é botar a diária na mão de sinhá e o que sobrar é meu.

As cabanas aqui se chamam casas e são tão grandes que em algumas caberia metade da aldeia. Nelas há muitos escravos, cada um para uma coisa: para cuidar dos cavalos, para cozinhar, para tomar conta das crianças, para tomar conta da sinhá. Os ahuki precisam de muita gente para tomar conta deles.

As ruas eram um mercado em movimento que não parava. Negros e negras vendendo de tudo, carregando coisas e até pessoas. Era difícil não esbarrar em alguém. Escutei canções em muitas línguas, estranhas para mim. Gente falando sem parar, um canto de pássaros zangados. Sem falar nessa língua horrorosa dos brancos. Eles falam com a boca meio fechada e palavras que explodem. Ouvi também uma anciã esmolando em quimbundo, minha língua. Como é que uma kikulakaji havia se transformado em uma abingi? Aquela anciã devia estar cercada de netos, contando histórias. E estava na tal da ruas mendigando o de comer. Terra de branco era a morte em vida. O mundo estava torto. Peguei uma moedinha e estendi a mão:

Abá!

Ou seja, toma! Não ficou surpresa que eu falasse com ela em quimbundo. Rosa me disse que há muitos rebolos por aqui. E muitos povos vizinhos, tudo gente do Cuanza: Kisamas, Ndembus, Hungos, Jingas, Mbakas …

Estava com um vestido branco comprido, cheio de rasgões. Por cima, uma manta azul bem grossa. Nada na cabeça para proteger do sol. Não consegui olhar para os seus pés muito tempo, estavam cheios de machucados e rachaduras. Pareciam feitos de couro duro. A kikulakaji tinha uma longa vida nos seus olhos. Por fim disse:

Nzambi Mpungu te proteja, menina.

Achei que ela queria falar comigo. Rosa disse que muitos senhores e senhoras brancos lançam seus escravos às ruas quando eles não têm mais condições de trabalhar. Uma kikulakaji! A maldade dos ahuki não tem fim!

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Quando Rosa e eu seguíamos nosso caminho, senti os olhos da anciã em mim. Kikulakajis podem prever o futuro. Será que ela queria me dizer alguma coisa?

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