/ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 9

ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 9

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 9 – 1820 – Adelina

 

Era uma árvore bonita, amiga da gente. Ficava bem ao lado da cabana do chefe. Pequenas, eu e Kitusha vivíamos de olho nos cajus. É uma fruta cheia de curvas, boa de pegar na mão. Os mais velhos diziam pra gente comer à vontade, que fazia bem. Quando chegava o tempo era festa. As mães assavam as castanhas na brasa.

Nunca pensei que um dia fosse sair com um pesado cesto de cajus na cabeça. É a primeira vez que vou trabalhar sem a Rosa. Sinhá Joana falou para eu vender por toda a parte, menos no Terreiro do Paço. Ela não iria atrás de mim para vigiar, mas aqui tudo se sabe, as ruas têm olhos. É uma grande prisão sem grades, com guardas por toda a parte.

Sem a companhia de Rosa, fico nua. Homens de todas as idades passam perto de mim. Soltam uma gracinha, fazem um elogio ou sugestões picantes de todo o tipo. Um barbudo disse que gostaria de me lamber todinha. Quase ri. Tive vontade de responder que poderia lamber os pés sujos de tudo que piso nas ruas. Há os que fazem um gesto elegante querendo tomar sua mão como se você fosse uma dama a ser convidada a dançar. Outros ensaiam colocar as mãos na minha cintura ou pegar no meu braço. Os mais abusados visam passar a mão naquela parte do corpo que adoram e faz a fama das negras. Não é fácil equilibrar o cesto na cabeça com uma só mão e dar um tapa com a outra. Os morcegos assistem a tudo sem fazer nada, achando graça. Quando não são eles mesmos que se comportam dessa forma.

Muitas escravas estimulam esses homens. Nem todo mundo quer ficar o dia inteiro no sol. Caminhando pelas ruas, posso vê-las aos cochichos com seus novos clientes, risonhas a combinar a venda e entrega de seus corpos. Dali, vão para casas que alugam alcovas. As que agradarem ao freguês poderão se tornar concubinas. As mais afortunadas encontrarão quem compre a sua liberdade. A maioria vai receber apenas algumas moedas que gastarão com comida ou cachaça. Não as culpo. Vale tudo na terra dos ahuki. Não se enganem. Se ficarem grávidas, será de uma criança sem pai. Se pegarem uma doença do sexo, ninguém irá se preocupar. As que tiveram esse destino estão agora pelas ruas, vestidas com trapos, esmolando. A morte está rondando, a cada esquina, a cada escolha que fazemos. – 61 –

Atravessei o Campo de Sant’Anna e cheguei na rua de São Jorge. Ali a venda de sexo é a céu aberto. Negras e mulatas, vestidas com luxo, calçando belos sapatos, desfilavam elegantes a sua mercadoria: elas mesmas. No meio de uma nuvem de homens. A conversa era breve. Combinavam o preço e condições. Em seguida se enfiavam por uma das casas da rua. Vendi muitos cajus por aqui. O suco, com açúcar e um pingo de cachaça protege contra o mal-de-coito. Não tinha acreditado quando Rosa falou de casas para a prostituição de rapazes e meninos, frequentadas por homens. Até ver dois mulatinhos pintados de mulher debruçados numa janela à espera de clientes. Nada é impossível do lado de cá da Calunga Grande.

As brancas se prostituem de outra maneira, contou Rosa. Saem à rua com duas mucamas ricamente vestidas, como se fossem senhoras distintas. O cliente faz um discreto sinal. A mulher então volta a sua casa, seguida de longe pelo homem. À janela, uma velha senhora vê o retorno da mulher e permite que o freguês entre. Claro que estão vendendo o corpo do mesmo jeito. Mas as negras e mulatas é que são vistas como desavergonhadas.

Cansada de andar, entro em uma venda. Como sempre, há um grupo de negros parados na soleira cheirando a cachaça. Eles me olham de alto a baixo. Costumam desaparecer com a rapidez de uma palanca se vêem chegar alguém de farda azul. Resolvo tomar um copinho de cachaça. Só um. Caramba. Agora entendo a Rosa. Esse calor bom por dentro, um fogo que sobe até a cabeça e deixa tudo mais solto. Tomo outro e mais outro. Saio de lá tonta, pisando em um mundo diferente. O sol não existe. A escravidão não existe. Mas está cada vez mais difícil segurar o cesto de cajus na cabeça. Por que o chão está rodando?

Eu ia cair. Fabumi apareceu do nada e me segurou com dois braços de pedra. O medalhão brilhava ao sol. O sorriso tinha mais dentes do que nunca:

— Cuidado, menina, você andou bebendo demais.

— Ninguém está te perguntando nada.

— Assim que eu gosto, sempre rebelde.

— Vai tratar da sua vida.

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— Estava fazendo exatamente isso quando vi você despencando feito banana madura e resolvi oferecer minha ajuda desinteressada.

— Desinteressada? Homem quer sempre a mesma coisa.

— Não há mal nenhum nisso.

Depois, não vi mais nada. Quando despertei, Fabumi estava me comendo com os olhos. Era bonito o danado. Eu tinha que admitir. E gostava de mim. Forte daquele jeito e com algum dinheiro, devia haver uma porção de negras atrás dele. Estávamos numa sombra, debaixo de uma mangueira na praia de Santa Luzia. Ele tinha me carregado até ali. Falou primeiro, pegando uma fruta no cesto:

— Posso comer um dos seus cajus? Prometo que pago.

— Claro que pode.

— É a primeira vez que você me diz sim. Tomara que se torne um hábito.

— Você é um chato.

— E você é linda.

Não esperava que me beijasse. Não estava em condições de resistir. E queria? Acho que foi a cachaça. Tudo deslizava, não dava tempo de pensar. O beijo era feito de caju. Dissolvi na boca dele. Deitaria na areia sem precisar dizer nada. Mas aquele negro mina era cheio de surpresas:

— Adelina, você já vendeu o suficiente pra pagar sua diária?

— Sim.

— Então eu vou te levar em casa. Da próxima vez quero te ver sem você ter tomado parati. Mas vou te dizer uma coisa: seu beijo é a fruta mais gostosa dessa terra.

Tive que me apoiar no braço dele. Me fez parar para beber um pouco de água. Para ajudar a curar o porre. Fomos bem devagar porque ainda faltava muito para escurecer e eu não queria apanhar de Sinhá Joana. O corpo dele era quente. A pele encostada na minha. A voz firme, de homem, invadia meu ouvido. Disse pra mim mesma que era culpa da bebida. Mas quase senti saudades quando ele se despediu: – 63 –

— Até logo, Adelina. Se cuida direitinho e não vai com muita sede ao pote. Sobretudo se for de aguardente.

Cheguei em casa, paguei a sinhá e fui dormir, dizendo a todo mundo que estava cansada e passando mal.

Acordei com um chocalho dentro da minha cabeça. E Rosa querendo saber o que tinha acontecido no dia anterior. Pela primeira vez, tinha mentido pra ela. Disse que estava com dor de barriga, devia ter sido alguma coisa que comi na rua. Se ela suspeitasse do beijo eu estava perdida. Da cachaça então nem se fala. Os meninos também perguntaram. Joaquim estava de saída, o dono da oficina não tolerava atrasos e não perdia uma oportunidade de usar a palmatória. Em breve seria um sapateiro. Camundongo ficou preocupado e triste ao me ver doente. Puxei as orelhas dele de leve, olhei bem nos olhos e garanti que não precisava se preocupar. Ele havia engordado um pouco e crescido bastante. Eu brincava que logo estaria mais alto do que a Rosa, o que não era difícil. Ela me chamou à parte. Pensei que fosse um cochicho amoroso, como sempre. Não era. Ralhou comigo:

— Pois é, Adelina, enquanto você dormia feito uma montanha de pedra, sua amiga teve que se defender sozinha do Carlos. A cada dia está mais forte, o desgraçado.

— Ele te atacou?

— Na cozinha. Chegou a rasgar metade do meu vestido.

— Você não gritou?

— Tá maluca? Sinhá vai botar a culpa em mim.

— O que você vai fazer?

— Não sei, mas vê se não come nada apimentado hoje, nada de piriri, posso precisar da sua ajuda.

Antes de sair, comi pouco e bebi bastante água me preparando para um longo dia. Caminhei lentamente, procurando a sombra feito o pássaro busca a árvore. Se eu quisesse vender muito era só voltar à rua de São Jorge. Eu tinha nojo – 64 –

daquilo e não pretendia passar lá. Comecei a olhar para tudo que existia na rua. Negras e negros novos vestidos com apenas uma tanga, tão magros como folhas que o vento poderia varrer. Sentados no chão abraçam a si mesmos, as pernas cruzadas, as mãos nos ombros, a cabeça no peito. Alguns iriam ter forças para viver depois de terem morrido no tumbeiro e uma vez mais no Valongo. Nem todos. Quantas vezes precisamos renascer? Quantas vezes os ahuki vão nos matar?

Olho para uma moça. Alta e muito magra, a pele mal cobria os ossos. Veste apenas uma tanga azul e branca que lhe deram para vestir no mercado de escravos. Encolhida. Era um caracol querendo voltar para a sua concha. O corpo fez a passagem da Calunga Grande, a alma se perdeu na travessia. Depois que o proprietário viu que a peça estava avariada, lançou-a nas ruas, para morrer de fome ou doença e ser jogada no buraco da Santa Casa. De onde viera? Qual era seu nome? Nem ela sabia mais.

Perto de meio-dia eu não havia vendido nem um terço do cesto. Decidi buscar um lugar movimentado e fui até a Praia dos Mineiros. Ali se vende farinha de mandioca, legumes, queijo, frutas, aguardente e lenha. Chegando lá, você vê uma floresta de velas brancas. Também tem tropa de mulas com os alforjes bem carregados. É uma confusão de gente a comprar e vender, uma gritaria só. Em toda a parte escravos e escravas de ganho feito eu. Vendem alho, banana, abacaxi, mamão e uns docinhos muito gostosos: pão de ló e sonhos. Quem faz mais dinheiro são as quitandeiras que fritam o peixe fresco deixando um cheiro gostoso no ar.

É preciso saber abordar esse bando de homens cansados, que viajaram semanas em lombo de burro. São tropeiros que atravessaram as montanhas de Minas até o porto de Estrela e de lá vieram pelo mar até aqui. São homens rudes, que olham pra gente com fome. Procuro os mais suados, os mais amarrotados e sujos, que enfrentaram o caminho mais longo. Nada de gritar, nada de pressa. Eu chego devagar, deixo o moço olhar bem para Adelina. Até os olhos dele ficarem faiscando. Sorrio, sem mostrar os dentes, feito uma moça tímida. É só aí que falo, como se estivesse pedindo para deitar com ele:

— Vai um caju aí, moço?

— Quanto é?

— É barato, meu caju é gostoso. – 65 –

A essa altura o homem já está me vendo nua dentro do barco. Balançando. Compra uma porção de frutas como se estivesse fazendo o pagamento inicial de uma mercadoria. Quando quer chegar perto para fechar a negociação eu dou dois passinhos pra trás, desta vez sorrindo com todos os dentes:

— Muito obrigado, moço, Deus lhe pague e bom trabalho.

É um mercado movimentado. Ele não pode fazer nada. Hora de atacar o próximo branco. Cada um luta com suas armas. Em uma hora eu já havia vendido todos os cajus do cesto. Seria bom eu demorar um pouquinho até voltar à Praia dos Mineiros. Quando a raiva deles passar vão tentar de novo.

Com a bolsinha de couro cheia de moedas e algumas horas antes do anoitecer, resolvi desfrutar da minha liberdade. Busquei um cantinho da praia, sem movimento. Sentei, encostada numa pedra, debaixo de uma amendoeira. A areia fazia um carinho gostoso nos meus pés. Nessa praia não tem onda, mas o mar dá um jeito de sussurrar alguma coisa. Sem o Cuanza, podia conversar com aquele rio sem margem. Como estaria Mukongo? Será que havia esquecido de mim? Três anos se foram. Eu não era a única moça da aldeia, nem a única que desejava ter um filho com ele. Kitusha sobreviveu? Os ahuki tinham roubado mais alguém? Meus pais estavam vivos? Nossa aldeia ainda existia? Só tinha uma certeza: as águas do Cuanza ainda corriam.

Fiquei pensando. Quem teria feito o feitiço? Se eu e Kitusha não tivessemos ido lavar roupa naquele dia e naquela hora o nosso destino seria diferente? A aldeia tinha muitas moças e todas elas lavavam roupa no Cuanza. Tempos antes, quando eu era ainda uma criança, tinha aparecido um desses brancos vestidos de preto que eles chamam de padres. Tentou convencer homens e mulheres da aldeia de que não existia feitiço. Foi então que três meninas foram se banhar no rio juntas, entrando na água ao mesmo tempo, uma ao lado da outra. Do nada apareceu um crocodilo que abocanhou e arrastou a que estava entre as outras duas amigas. Claro que aquele crocodilo era um feiticeiro, porque ele escolheu aquela menina e não as outras. Mas o homem de preto não desistiu. A menina estava com colares. Algum tempo depois mataram um crocodilo e encontraram os colares na barriga do bicho. O padre disse que aquilo mostrava que o crocodilo era um animal e não um feiticeiro de verdade. Mas o chefe da aldeia respondeu a ele que o crocodilo era mesmo um feiticeiro e que os colares haviam sido o pagamento pelo serviço. – 66 –

Mesmo depois do que passei, ainda acredito que a vida é boa e que se estivermos de bem com os deuses podemos ser felizes. Sempre lembro da minha mãe. Dizia que somos formigas. E que os deuses podem nos esmagar a qualquer momento, mas não fazem isso. “Os deuses são bons”, repetia. Se houvesse seca e ameaça de fome ela não se alterava e continuava a dizer: “Os deuses são bons”. Quando tudo se resolvia, lá vinha ela: “Os deuses são bons”. Kitusha e eu acabamos por acreditar.

Por aqui não faltam deuses a quem pedir ajuda. Tem o deus dos brancos e o filho dele, que está sempre sendo morto na cruz. A cruz com a qual marcaram meu corpo. Nós temos Nzambi e os inquices. Os mina têm seus orixás. E todos têm uma porção de santos, cada um para resolver um problema. Olhos? Santa Luzia. Peste? São Lázaro. Cancros e tumores? São Miguel dos Anjos. Dor de dente? Santa Apolônia. Doenças incuráveis? Santa Rita. Eu acreditava e não acreditava em cada um deles. Quem são esses santos? Ancestrais?

Queria saber o que estava me impedindo de ter uma boa vida. Quem me pôs feitiço? Talvez aquela kikulakaji seja capaz de me dizer. Nunca mais a vi, onde ela se escondeu? Em que posso acreditar? Que os deuses preferem os ahuki? Me levanto para buscar uma resposta. Tem que haver. Bem nos meus primeiros dias, Rosa tinha me levado a uma igreja de dois santos negros. Achei que talvez soubesse chegar lá.

Me perdi no burburinho. Esbarrei em carregadores apressados sempre cantando, quase derrubei tabuleiros e por pouco me queimei numa quitandeira que fazia pipoca. Quando estava desistindo, vi a pequena porta e entrei. É uma igrejinha sem luxo algum, só de madeira, sem ouro. Se fosse uma casa, seria uma cabana humilde. Até por isso eu me senti bem, abraçada por um silêncio. Ao fundo, no alto, estavam os dois santos, um negro e à direita dele uma negra. A tristeza me envolveu feito um cobertor gelado e chorei sem ter tempo de pensar.

Não sabia o nome dos santos. Não conhecia sua história. Nem tampouco suas orações. Mas senti que estava sendo acolhida. Fui até o altar e beijei as imagens de madeira. Além de santos, eram negros. E somente um negro conseguiria saber o que eu estava sentindo. Peço na minha própria língua. Tenho certeza de que vão me entender. Para que a minha esperança nunca seque. Para que minha força não se esgote. Para que eu nunca aceite ser uma coisa. Para que não consigam por grilhões na minha alma. Sei que me ouviram. – 67 –

Quando atravessei a porta de volta ao mundo da rua, meus pés pisavam plantando raízes na terra. Agora eu era uma árvore difícil de derrubar. No fim de tarde vi que céu mudou do azul para o cinza e um manto de nuvens anunciou a chuva. Quando caiu, pesada, logo formando poças, eu caminhei ainda mais devagar. Para que aquela água me lavasse, me purificasse dos feitiços que haviam colocado sobre mim. Um dia Adelina voltaria a ser Olabisi.

Aí aconteceu a melhor coisa do dia. Era pequeno. Andava rápido, as quatro patinhas se mexendo sem parar. O pelo era malhado, preto e branco. Latiu uma vez, como se dissesse: estou aqui. Foi me seguindo até em casa como se soubesse o caminho. Bem que eu estava precisando de um amigo pra me fazer companhia. Só faltava dar um nome a ele.

Para isso eu tinha que consultar meus companheiros de desgraça: Rosa, Joaquim e o pequeno Camundongo.

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