ADELINA
Marcos Alvito
Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar
Capítulo 5 – 1818 – Adelina
Rosa e eu vimos o rei dos brancos. Ia numa cadeira grande, carregado por doze negros vestindo roupa dourada. Não parecia com um soba. Não tinha a imponência da mafumeira, não era árvore de dar sombra. Era baixo, gordo e feio que nem sinhô-barril. Bom para rei dos brancos. Mesmo ajudado por dois escravos, teve dificuldade para descer e por o pé no chão. O rosto dizia que queria estar em outro lugar. Eu também.
Era um dia chuvoso. Isso afugenta os clientes e torna difícil pagar a diária. O chão do Largo do Rossio estava cheio de poças d’água, onde a imundície tinha virado lama. Rosa me puxou para ajoelhar e abaixar a cabeça diante do rei. Mal tive tempo de levantar o vestido. Bom foi ver os brancos sujando a roupa ao se por de joelhos. Até simpatizei um pouco com o tal do rei. Mas logo lembrei que ele era o culpado de tudo. Um soba tinha que fazer justiça. Um rei de verdade poderia nos libertar à hora que quisesse.
Resolvemos vadiar. Não iríamos trabalhar naquele dia. Teríamos que mexer no precioso dinheiro da nossa alforria. Ou então contar com o humor de sinhá para não apanhar de palmatória ou chicote. Era como tentar adivinhar se ia chover ou fazer sol. A pele das nossas mãos e costas lembrava dessas mudanças de humor. Resolvemos não trabalhar. Depois chegaríamos em casa à noite fazendo cara triste. E pagaríamos a diária. Era o que interessava aos patrões.
O rei entrou num prédio grande. Rosa e eu fomos passear. Começamos pelo próprio Largo do Rossio, um descampado em torno do qual havia poucas casas. Era um lugar sombrio. Lá ficava o Pelourinho onde negros e negras eram castigados de manhã. Ao mesmo tempo, por ser um pouco afastado e deserto, era buscado por nós para tentar fugir à vigilância constante dos morcegos. O que era difícil. Mas não era impossível desfrutar de alguns momentos de liberdade.
Naquele dia, vimos um grupo de escravas de ganho reunidas em torno de um velho negro Benguela. Havia vendedoras de pão-de-ló, de pastel, de sonho, de banha
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de cabelos, de abacaxi, de leite, de laranja e de muitas outras coisas. O velho só via a a escuridão da noite. Mas aqueles olhos de cego iam muito além. Entendemos a multidão. Tocava o urucungo como se tivesse a mulher amada nos braços. Eramos levadas de volta para nossa terra pelas mãos do velho a tocar seu instrumento. Contava histórias de amor que sempre davam certo, apimentadas com situações e palavras carregadas de sexo. Tudo aumentado com gestos e trejeitos de uma criança.
Depois que a platéia era toda sua, ele levou todo mundo ao delírio ao cantar:
Desaforo de branco
Não se pode aturar
Tá comendo, tá dormindo
Manda o nego trabalhar
Se o negro é preguiçoso
Me diga o que o branco é
negro trabalha o dia inteiro
o branco nem se Deus quiser
As mulheres suspiravam, riam, se exaltavam. Ele sentia sobre si olhos sedentos de sonho. Algumas assoviavam, batiam palmas, davam gritos agudos, pulavam. A música era um barco voador que nos tirava do inferno. Era acompanhado por um menino que recolheu as moedas no gorro. Queríamos que o velho continuasse a nos encantar com sua magia. Ele se negou e advertiu, com forte sotaque:
— Os homi ruim vão chegar a qualquer hora e aí é pau no lombo do veio… Eles num gosta de ver preto reunido não.
Adivinhou. Logo ouvimos o barulho dos cavalos fazendo a terra tremer. Cada uma saiu correndo para um lado. Eu e Rosa nos refugiamos na Taberna do Jacá, na
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rua do Piolho. Ela era conhecida na casa. Ali gastava o dinheiro que não deveria gastar bebendo cachaça. Depois dos brancos, o pior inimigo é a cachaça. De dia podemos ver negros e negras largados na rua. É o caminho da morte. Quando cheguei, Rosa tomava apenas um copo de parati antes de voltarmos para casa. Agora ela procurava a primeira taberna assim que botávamos o pé na rua. Eu via com medo aquela transformação. Não sabia o que fazer.
Os patrões logo iam perceber que a bebida tinha se tornado um problema. E colocar nela aquela horrenda máscara de metal. Só tinha furos para ver e respirar. Faziam isso também com escravos e escravas que comiam terra. A maldade dos ahuki não tem fim. Sinhá já havia dado de palmatória em Rosa por achá-la insolente. Rosa ficava a pessoa mais alegre do mundo quando bebia cachaça. Mas quando sentia falta ficava mal humorada e agressiva. Ela virou um copo na Taberna do Jacá e seguimos caminho.
Rosa dizia que cachaça dava fome. Eu achava que era uma desculpa, porque ela era um bocado comilona. Paramos diante de uma vendedora de milho, feito na brasa. A mulher parecia ter dez panos enrolados na cabeça. Toda vez que se mexia seus muitos colares e braceletes balançavam e faziam barulho. Na mão direita empunhava um cachimbo como se estivesse conversando com um amigo. Era mais gorda que sinhá e bem mais simpática. Cada milho foi servido com um sorriso. Estava delicioso, quentinho. Saímos de lá mordendo nossas espigas e nossa alegria.
Ainda na rua do Piolho, vimos um moleque barbeiro com sua bacia de cobre, tesoura e navalha. Estava atendendo a um negro mina. Esses são vaidosos e o pequeno barbeiro teve que se desdobrar. Primeiro caprichou na barba, usando a navalha com muito cuidado, porque um corte na face despertaria a fúria do homem. Sobretudo se mexesse com as cicatrizes em forma de círculo que envolvem cada um dos olhos. São a marca dos negros mina. Depois se esforçou na feitura do penteado do seu cliente.
De início, o homem só se preocupava em dar instruções ao barbeiro. Mas depois de um tempo notou que estávamos olhando. Era mais claro do que um rebolo. Não era muito alto, mas era forte e pela enorme medalha no seu peito notamos que era
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um carregador da alfândega. Os negros que ali trabalham ganham bem e são orgulhosos, desdenhando dos carregadores comuns das ruas, postos para alugar feito uma sege. Tudo tem outro lado. O problema é que o trabalho na alfândega só remunera porque é muito pesado. Em dois ou três anos, mesmo um homem como aquele seria castigado até ficar imprestável ou mesmo morrer. Fogo que queima rápido logo vira cinza.
Só que naquele momento ele estava vivo e com o fogo bem aceso. Nos mirava com um sorriso que ia da rua do Piolho até o Terreiro do Paço. Pensei que ele estivesse interessado em Rosa, uma mulher de carnes fartas como é do gosto dos homens daqui, negros e brancos. Já estava cansada de ouvir assovios e brincadeiras depois que nós passávamos por um grupo de negros, pois os negros eram mais animados:
— Que bunda!
— Ai, que vontade de passar a mão nessa bunda gostosa.
E coisas muito piores. Bunda. Essa palavra a gente entenderia mesmo sem saber a língua dos brancos. Tanto bunda quanto farofa, moleque, muxoxo, quitanda, fubá, cochilo, caçula e muitas outras que tinham atravessado a Calunga Grande e passado a viver por aqui. Rosa não dizia nada, mas eu sabia que ela gostava porque empinava ainda mais o traseiro volumoso. Achava bom que não fosse comigo. Mas o mina estava olhando para mim. Não era a primeira vez. Já tinha sido abordada por muitos negros nas ruas. Passavam e diziam alguma coisa, uns tentavam segurar no meu braço. Convidavam para ir à taberna beber cachaça. Eram um pouco mais educados do que os brancos. A todos eu rechaçava. Nenhum deles se chamava Mukongo.
Naquele dia, não sei por que, deixei o mina iniciar a conversa comigo:
— A moça nunca viu um negro cortando o cabelo?
— Nunca um negro tão vaidoso.
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— O apuro do seu vestido, o turbante elaborado, esse pano da costa todo colorido e seu jeito de andar mostram que você não deixa de ser vaidosa. Tem direito, bonita do jeito que é.
— Não me venha com conversa de carregador.
— É como ganho a vida nessa terra. Pelo menos não sou um desses brancos preguiçosos. Quando eu terminar posso te pagar um gole? Meu nome é Fabumi, o seu…
Fiquei tão sem graça que puxei Rosa pelo braço e arranquei nós duas de lá. Às minhas costas só ouvi as reclamações do homem. Rosa não entendeu nada. Ela sempre me dizia que todos nós temos duas vidas. Uma tinha sido na nossa terra. A outra era aqui, na terra dos ahuki. Aqui tinha começado tudo de novo. Tínhamos que refazer a vida. Para trás havia uma boa lembrança, nada mais. Eu estava louca quando pensava que iria ver Mukongo novamente. Devia fazer como ela, que não perdia a chance de beijar um negro bonito. Depois era esperar escurecer e procurar um mato ou um cantinho de praia. Não sei como ela fazia para não engravidar. Rosa também tinha seus segredos.
Chegamos ao pé do Morro de Santo Antônio. Ali dois moleques de recados com roupas rasgadas brincavam de jogo de Angola. Não estavam brigando, eram amigos se divertindo. Mas não evitavam que os golpes pegassem em cheio no peito, na cabeça, ou na cabeça. Três negros assistiam com gosto. Estavam parados naquela esquina para carregarem nas costas os brancos que não quisessem molhar os pés na rua. Um deles, com uma cartola velha, começou a bater palmas para dar ritmo. Os outros dois fizeram o mesmo. Logo começou a chegar mais gente. Um negro com chapéu de soldado estrangeiro trouxe um tambor que ele batia com vontade, além de cantar alto. A roda foi formada. Uma negra alta com um cesto de abacaxis na cabeça se aproximou. Depois uma vendedora de pastéis. Se os morcegos chegassem a festa iria acabar. A capoeira era proibida e nada era mais odiado pelos guardas. Viriam de chicote na mão descendo o braço com vontade, além de tentar prender quem estivesse jogando.
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Fomos embora dali. Minha amiga queria fazer uma visita a Luzia na rua dos Barbonos. Dobramos à direita na rua da Guarda Velha. Luzia tinha sido alugada como ama de leite. Mesmo antes do menino dela nascer ela já estava sendo obrigada a dar seu seio para a bebê de uma família branca. Era como se tivessem alugado uma vaca. Luzia estava no quintal em frente da casa dando de mamar à menina, chamada Glória. O filho de Luzia era Manuel, nome de branco, para dar sorte. Mas ele não estava por ali. E não parecia ter muita sorte.
Luzia tinha engordado bastante. Estava vestida com roupas de mucama de sinhá rica. Rosto descansado de quem não precisava mais trabalhar de manhã à noite. O olhar e o jeito ainda eram de menina grande, mas já dava para notar uma pontinha de tristeza, o cupim que começa a roer a madeira. Rosa não percebeu nada, tinha a mania de só ver o lado bom das coisas. Mas resolvi descobrir o que estava havendo:
— Menina, você está bonita, virou mulher.
— É, Adelina, uma mulher com dois filhos.
— Filho mesmo você só tem um. Cadê o Manuel?
— Tá lá dentro dormindo.
— Qual é a razão desse meio sorriso? Ele está bem?
— Não muito, o bichinho não consegue engordar.
— Essa branquinha tá sugando todo o leite dele?
— Toda a hora tenho que dar o peito a ela, senão apanho de chicote, o braço de sinhá é forte.
— Enquanto isso o Manuel morre de fome?
— Espremo o peito o mais que posso, mas muitas vezes o que tem pra ele são umas gotinhas de leite. Eles prometeram. Quando a Glória for desmamada Manuel e eu vamos ter nossa liberdade.
— Você talvez…
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Decidi não falar mais naquilo. Beijamos e abraçamos a Luzia. Contamos a fofoca mais recente lá de casa, que era das boas. Será que ela lembrava do Estevão, um dos dois moleques que havia na casa? Pois bem, de repente ele cresceu e virou um preto bonito, forte, além de simpático e com uma voz de derreter ouvido. Nem eu nem Rosa queríamos nada com ele, pra nós continuava sendo um moleque. Só que sinhá-barril notou a transformação. Notou muito. E dá-lhe de comprar roupas novas para ele. E chapéus bem alinhados. Só não comprava sapatos porque era proibido. A voz derretida com que falava o nome dele. Se fosse possível, ela tinha mandado embora aquela mucama metida a besta e colocado o Estevão no lugar. Como não podia, vivia achando uma desculpa para ter o rapaz por perto. Para onde saía, dizia que era muito perigoso e que ele tinha que ir junto. A mucama também ia, senão seria um escândalo.
Era uma vergonha ver os olhos dela, menina lambendo um pote de mel. Só que os pensamentos não deviam ser de menina. A gente ficava imaginando. Se o Estevão fizesse o serviço e nascesse uma mulatinha ou mulatinho, o que iria acontecer? Claro, a gente sabia, a criança ia ser mandada pra roda dos enjeitados no mesmo dia. De qualquer forma, só o desejo que ela tinha pelo Estevão já dava uma coceira boa de vingança na gente. Sinhô tinha que ser muito cego ou então sem nenhum interesse em sinhá para não ver ou não se importar com aquilo.
Nos despedimos de Luzia e resolvemos dar uma passada no Terreiro do Paço. Tinha parado de chover. Estava bem na hora dos brancos sentarem na amurada para pegar a fresca. Tinha pouca gente, mas ainda vendemos algum aluá, menos do que a diária. Como havia sido nosso dia de vadiagem, resolvemos encerrá-lo bem. Cada uma comprou um angu na quitandeira. Vinha com bastante carne e pimenta. Descemos pra comer na praia e evitar que algum branco nos perturbasse. Foi Rosa que resolveu me chatear:
— Bonito aquele negro mina, não é, Adelina?
— Se quiser pode ficar com ele.
— Mas ele só tinha olhos pra você.
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— Eu sou de Mukongo.
— Mukongo? Mukongo é de outra vida, menina, não confunde as coisas. Você atravessou a Calunga Grande e agora está em outro mundo.
— Eu sei o que esse Fabumi quer.
— Guardou o nome dele, não foi? E daí, vai dizer que você não quer? Menina, a gente não dura muito nessa terra dos brancos. Você gostou dele, eu sei.
— Gostei nada, só gosto de Mukongo.
— Sua boca diz uma coisa, seus olhos dizem outra. Esqueceu que sou sua amiga? Nós até respiramos ao mesmo tempo. Você pode enganar a si mesma, mas a mim não engana.
— Vamos mudar de assunto? O angu tá esfriando e angu frio não presta.
Era o tipo de argumento capaz de sensibilizar minha amiga. Mas ela continuou dando uns olhares marotos pra mim, do tipo: menina, te peguei. Eu fazia de conta que não reparava para não dar corda. Rosa só pensava naquilo. Como o angu estava muito bom ela parou de mexer comigo e raspou a cumbuca. Tínhamos apenas meia dúzia de moedas na bolsinha de couro, mas estávamos muito satisfeitas pelo dia. Era hora de ir pra casa.
Não podíamos adivinhar o que nos esperava. Se a casa tivesse pegado fogo estaria mais tranquila. Havia um grande alvoroço. Sinhá-barril não parava de berrar com sinhô-barril. Dizia que ele tinha que fazer alguma coisa. Ele tentava acalmá-la. Dizia que já havia comunicado tudo ao Major Vidigal e que toda a Guarda Real de Polícia estava avisada e alerta. Pensamos que tivesse havido um furto, que algum gatuno tivesse invadido a casa e surrupiado as jóias da senhora. Cesária, a nova cozinheira, comprada para substituir Maria Preta, foi quem explicou o que estava acontecendo:
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— Estevão sumiu hoje à tarde. Sinhá tá mais nervosa do que pipoca na panela. Parece até que era um filho dela.
Eu e Rosa nos olhamos com vontade de rir. Cesária não era muito esperta e ainda não tinha percebido que sinhá não olhava para Estevão como um filho de forma alguma. Depois fomos para um canto do quintal cochichar. Uma fofoca daquelas era uma comida pra mastigar devagarinho. Rosa achava que ele havia tentado fugir. Todos nós tínhamos notícias de esconderijos de escravos nas matas em torno da cidade, em Santa Teresa, na Tijuca, na Lagoa. Era um passo arriscado, mas era possível alcançar a liberdade assim. Eu não acreditava que Estevão tivesse feito isso. Ele não era bobo e havia percebido o interesse da patroa. Talvez fosse um jogo ainda mais perigoso. Mas sabia que podia conseguir vantagens assim e quiçá uma alforria daqui a algum tempo. Ele não estava com aquele ódio mortal do tudo ou nada. Sabíamos: se o Major Vidigal colocasse a mão no Estevão, o negro iria se arrepender. Não somente de ter fugido, mas de ter nascido.
Luzia, Estevão, Rosa, cada um tinha escolhido o seu caminho. Qual seria o meu?
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