/ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 11

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 11

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 11– 1821– Adelina

 

Camundongo queria que fosse Bolinha. Joaquim preferia Malhado. Não consegui pensar em nome, mas Rosa veio com um que empolgou a todos. Fazer uma homenagem invertida ao Major Vidigal, terror de negros, negras e até de alguns brancos. Não que o cachorro fosse tão brabo, só dava mordidinhas de brincadeira. Para disfarçar, sugeriu Major, o que era engraçado para um bicho tão pequeno. Adoraramos. Deveríamos tê-lo batizado de Sombra de Camundongo, os dois eram inseparáveis. Major vivia lambendo a cara do nosso caçula.

Rosa reclama que não vou mais ao batuque. Bem feito. Não era ela que dizia para eu namorar o Fabumi? Depois que me salvou, todos os dias ele me encontrava. Podia ir para qualquer canto vender que à tarde ele aparecia, depois de terminar seu trabalho. Vinha com aquele andar de palmeira balançando ao vento. E o sorriso mais bonito. Sentia o meu cheiro. Ou então tinha espiões por toda a parte, que nem o chefe da polícia. É bem capaz, porque aquele negro conhecia todo mundo. Quando eu caminhava a seu lado, de braço dado, não andávamos um quarteirão sem ele ser parado por alguém.

Resisti dois ou três dias depois do primeiro beijo. Se o meu coração fosse uma ilha, seria toda de Mukongo, mas Fabumi seria dono de uma pedra, talvez de um pedaço de mata. Quando me chama de Lina sinto um arrepio gostoso. Há quatro anos que os ahuki me roubaram. Meus ouvidos escutam o Cuanza. O corpo recorda as mãos de Mukongo. Mas os meus pés caminham descalços por esta cidade de São Sebastião. É aqui que estou, onde tenho que buscar a boa vida.

O preto é uma alegria. Não há semana em que não apareça com um brinco, um colar, uma saia. O emprego de carregador paga bem assim? Brigo com ele. Devia juntar para comprar sua liberdade. Diz que é para eu ficar ainda mais bonita. O que falar? Sabe tudo que está acontecendo na cidade. Conta como ninguém uma história e na boca dele tudo fica engraçado. Esses pretos da Alfândega devem ter bastante tempo para ficar de conversa fiada.

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Outro dia me contou uma história rara, em que os negros vencem os brancos. Lá no meio da Calunga Grande tem uma ilha chamada São Domingos. Muitos negros e negras foram levados como escravos para trabalhar em grandes fazendas de açúcar e café, como aqui. Foram tratados com a mesma maldade. Os brancos não eram portugueses, eram franceses. Não fazia diferença. Os negros se revoltaram e lutaram de mãos nuas. Morreram muitos, mas o país foi tomado. Os brancos tiveram o que mereciam. Muitos foram assassinados, suas casas foram queimadas, suas mulheres estupradas. Mais de cem engenhos de açúcar foram destruídos. Até hoje os brancos do mundo todo têm medo de ouvir falar em São Domingos. Inclusive os brancos do Rio de Janeiro.

Fabumi disse que isso ainda não havia acontecido no Brasil. Arregalou os olhos e mudou a voz quando falou o ainda. Aquele mina era cheio de surpresas. Quando contou que íamos fazer uma viagem naquela manhã, pensei que ia me levar para a terra onde os negros mandavam. Riu. Hoje não. O plano era pegar uma canoa e atravessar a baía até a Vila Real de Praia Grande.

— O que a gente vai fazer lá?

— Você vai ver.

— Vamos fugir?

— Só quando chegar a hora, Lina.

O mais estranho foi pedir que levasse meu cesto de cajus. Protestei, era domingo. Garantiu que eu não iria vender nada. Fiquei curiosa, mas resolvi confiar.

Não era longe a Praia de Dom Manuel. As águas eram calmas. Estava tomada por barcos. Uma confusão de gente a falar e gritar. Era uma feira de pássaros . Fabumi parou diante de algumas gaiolas assoviando e imitando o canto. Olhou pra mim e deu uma piscada desmanchada em simpatia:

— Se eles cantam assim no cativeiro, imagina soltos.

Quando nos aproximamos da praia fomos cercados por uma dúzia de negros oferecendo suas canoas. Fabumi apontou na direção de um canoeiro que não tinha saído do lugar, indicando que iria com ele. Os dois deram um abraço de homens que se conheciam há muito tempo. Conversaram na língua deles, até que

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embarcamos. Fabumi pegou um remo para ajudar. Notei que não me apresentou ao homem, o que não era comum. Espalhava aos quatro ventos que Adelina era a sua namorada.

A travessia foi bonita. Me assustei com uns peixes enormes que começaram a saltar ao lado da nossa canoa. Fabumi achou graça. Não não eram peixes, se chamavam botos e eram bonzinhos e brincalhões. Fiquei assustada quando ele disse que as baleias, elas sim, podiam virar nossa embarcação. Viu minha cara de terror e explicou que era brincadeira.

— Os brancos mataram tantas baleias para iluminar a cidade que agora elas dificilmente entram na baía, Lina. E não atacam ninguém.

A visão das florestas e praias em torno de toda a baía lavou meus olhos. Uma brisa me lambia. O mar refletia o sol em mil espelhos. Peixes entravam e saíam da água. O silêncio nos abraçava em paz. Só se ouvia o barulho dos remos. Nem dava vontade de chegar.

Mas chegamos. Em uma praia larga cheia de pequenas casas. O mercado fervilhava de gente. Fabumi explicou que ali chegavam mercadorias do interior, das províncias, depois transportadas por mar até a Corte. Havia muitas barcas carregando bens para cruzar a baía. Sentamos debaixo de uma figueira que poderia dar sombra a uma multidão. Havia tantos limoeiros que o ar estava perfumado. Fabumi disse que tinha que resolver um negócio e me pediu o cesto com cajus. Não perguntei o motivo.

Vi ele entrar no que parecia ser a venda mais miserável do lugar, uma construção de pau-a-pique com telhas desarranjadas. Fabumi não bebia cachaça. Via o parati como inimigo dos negros. Servia para comprar escravos. Fazia com que negros e negras fossem escravos duas vezes. A primeira, dos brancos, a segunda da cachaça. A bebida estimulava as disputas e brigas entre as nações, impedindo a união contra os brancos.

Se não tinha ido na venda beber, será que tinha ido comer? Não fazia sentido: se estivesse com fome teria me levado junto com ele. E por que precisava do cesto de cajus? Comecei a ficar aflita. Não demorou muito. Voltou, feliz feito um moleque, carregando o cesto na cabeça. Notei que havia mais cajus. Ou alguma coisa havia sido colocada por debaixo deles.

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Almoçamos peixe frito com uma das quitandeiras dali. Além do peixe, Fabumi comeu uma feijoada carregada de pimenta. Esse preto tinha uma fome … Brincava que os crocodilos do Cuanza não tinham a boca tão grande. Ele respondia, dizendo que os crocodilos eram bobos por terem me deixado escapar mas que agora ele tinha me abocanhado de vez. Me deitou no colo e ficou fazendo cafuné até eu dormir. Me acordou com um beijo, dizendo que depois da soneca e era tempo de voltar.

Chegando na praia fiquei surpresa ao ver que o amigo dele tinha esperado por nós. Mais uma coisa esquisita, porque não faltavam canoas e barcos para a gente retornar. Contive minha vontade de perguntar. Na volta, quase ao entardecer, o vento estava soprando a nosso favor e os dois eram bons remadores. Fiquei apreciando as gaivotas. Passamos perto de um cardume e vi a festa que elas fizeram: era mergulhar e sair com um peixe na boca. Que maravilha ser pássaro.

Fabumi e seu amigo se despediram com um abraço de quebrar ossos. O caminho até em casa era curto e a explicação talvez fosse comprida. Resolvi perguntar de cara:

— Agora me explica tudo.

— Era o que eu ia fazer.

— Tou esperando.

— Adelina, isso aqui é uma guerra. Em uma guerra vale tudo.

— Tá, mas ainda não explicou nada.

— Nessa guerra a arma não é a faca nem o fuzil. A arma é o dinheiro. É com ele que podemos comprar nossas alforrias.

— Por que você acha que me mato de caminhar pelas ruas? Não é só pra pagar a diária, mas é também pra separar o dinheiro da minha carta.

— Eu sei, mas vai demorar quinze, vinte anos e ao fim desse prazo você vai estar estragada de tanto trabalhar.

— E tem alguma saída?

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— Tem. É o que estou fazendo. Trabalho na Alfândega. Tenho um bom relacionamento com marinheiros franceses que trazem cargas de perfumes. Uma mercadoria vendida nas lojas mais chiques da rua do Ouvidor.

— Não estou entendendo.

— Vai entender. Eles sempre reclamavam que tinham que pagar um dinheirão de imposto para os portugueses. Propus um negócio. Desviar parte da carga para Praia Grande, onde há menos fiscalização. Lá um amigo meu…

— O dono da venda?

— Exatamente. Ele recebe e esconde. Eu busco depois. Os franceses não pagam imposto e assim fazem mais dinheiro. Eu revendo os perfumes para as lojas com desconto. Faço um bom dinheiro.

— Mas como você carrega os perfumes na volta?

— Levo um saco, encho de limões bem cheirosos para abafar o perfume e coloco os vidros em baixo.

— E hoje você fez o mesmo usando o meu cesto de cajus?

— Isso.

— Contrabando, Fabumi? Você é louco? Sabe o que vai acontecer quando te pegarem? Trezentas chibatadas e a morte no Calabouço do Castelo. Não tem nada mais importante para os ahuki do que dinheiro.

— E não tem nada mais importante pra nós do que o fim do cativeiro. Podemos escolher entre viver segundo as regras dos brancos ou arriscar e conseguir a nossa liberdade. O que você prefere?

— Por que você está querendo me meter nessa história?

— Quero viver minha liberdade ao seu lado. Mas preciso da sua ajuda. Eu sou conhecido. Ir toda hora até Praia Grande sozinho pode chamar atenção. As ruas estão infestadas de soldados e espiões da guarda de polícia. Parecem até baratas, estão por todo o lado e surgem de repente. Um casal de negros, um par bonito como eu e você, vai levar todo mundo a pensar que estamos de passeio.

— Você quer que eu vire criminosa?

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— Quero que você participe da sua, da minha, da nossa libertação para sempre. E dos nossos filhos.

Cheguei na casa dos patrões com a cabeça tão tonta que parecia que tinha bebido uma garrafa inteira de pinga. Ainda não era o pior. Joaquim e Camundongo estavam com os olhos vermelhos. Correram para me abraçar. Tremiam.

— Levaram a Rosa, Adelina.

— Como assim?

— Os morcegos carregaram ela pro Calabouço.

— Por que?

— Aurora pegou pegou ela roubando e contou pra Sinhá. Falou que Rosa vinha roubando para poder tomar cachaça. Sinhá mandou que Rosa fosse castigada e que ficasse um mês na prisão para tomar jeito.

— Mucama desgraçada. Sempre de olho na gente. Sabia que isso ia acontecer. Todo dia Rosa chegava aqui cheirando a cachaça. Antes ela bebia parati, agora foi o parati que bebeu ela.

— O que a gente vai fazer, Adelina?

— Hoje não podemos fazer nada, só pedir aos deuses por ela, pra que tenha força. Temos que torcer para não ficar doente das chibatadas, muitos de nós já morreram assim.

— Será que ela vai ser castigada no Pelourinho?

— Com certeza. Amanhã de manhã ela será trazida, em correntes, do Calabouço até o Largo do Rossio. Chegando lá, vai ser amarrada com força, o rosto de frente para o Pelourinho. Ali vai enfrentar o chicote em meio a uma multidão que está lá pra ver o sangue escorrendo, o desespero, os gritos de dor. O pior é que usam um negro condenado. Devidamente vigiado pelos morcegos. Ele é obrigado a contar e assoviar em voz alta antes da gente ouvir o chicote zunindo no ar: — Um, dois… Ele não vai receber nada, mas sinhá vai pagar à polícia por cada chibatada que Rosa tomar.

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— O que eles fazem depois?

— Primeiro vão deitar ela no chão para evitar que perca muito sangue. Depois colocam vinagre e pimenta na ferida para sarar.

— Deve doer muito…

— A pessoa grita no Terreiro do Paço e é escutada em Mata-Cavalos…

— O que fazem depois?

— Ela volta para o Calabouço do Castelo. É um inferno. Parece um tumbeiro feito de pedra, com negro amontoado por todos os lados. Os prisioneiros são presos em pares pelos pés e pelo pescoço. Quem já esteve lá diz que o fedor é tão grande que a pessoa se arrepende de respirar. Os ratos de lá são tão grandes e ferozes que meteriam medo aos gatos mais valentes. A alimentação é o resto do resto. E pouca.

— O que a gente pode fazer?

— Vocês não vão fazer nada, só continuar trabalhando e evitando se meter em encrenca. Sinhá deve estar pior do que cobra com fome, doida pra arranjar uma desculpa para bater na gente. É sair de manhã, ganhar a diária e voltar, compreendem?

— Sim, Adelina, mas o que você vai fazer?

Amanhã ela vai ser castigada pela manhã. Vou até lá de tarde. Vou subornar algum guarda para mandar dinheiro para ela. Nesse momento, o dinheiro é tudo para a sobrevivência de Rosa. Pagando, pode conseguir ficar em um lugar não tão ruim. E conseguir algum alimento que não seja a podridão que servem lá. Além disso, precisa saber que estamos torcendo por ela e dispostos a ajudá-la no que a gente puder.

Tentei acalmar os meninos. Era difícil. Toda vez que víamos um negro ou negra apanhando, sendo preso, chicoteado, doía na nossa carne. Nós poderíamos estar ali. Era um aviso. Para os brancos o pelourinho era apenas um poste de madeira. Para nós, era uma ameaça. Eles eram praticamente crianças e já haviam experimentado terror suficiente para três vidas. Rosa era um grande apoio para Joaquim e Camundongo. Se a perdessem seria a segunda vez que ficavam sem mãe.

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Larguei meu corpo e vi a esteira ao lado vazia. Apenas um pedaço de palha no chão de um quarto abafado e sujo. O choro queria vir. Decidi me controlar. Minhas ideias eram um novelo de fios emaranhados. Precisava ajudar minha amiga. Apesar seu jeito brincalhão, Rosa era a mais velha, a mais experiente, aquela em que eu e os meninos confiávamos. Não podíamos ficar sem ela. Achava difícil ela aguentar um mês no Calabouço do Castelo. Eu faria o que fosse necessário. Fabumi, por outro lado, tinha me surpreendido. Me pedia para participar de algo que poderia me levar à prisão. Mas também poderia trazer a liberdade em um tempo curto. O que fazer?

Faltou coragem pra ir até o Largo do Rossio ver Rosa no Pelourinho. Ela iria notar o meu desespero. Não suportaria ver o couro do chicote de quatro pontas rasgar a carne da minha irmã. E o povo ali olhando como se fosse um divertimento. Imagino o que diriam:

— Será que ela vai pedir pelo amor de Deus para ele parar?

— Será que ela vai xingar?

— Vai aguentar firme até o final ou vai desmaiar?

— O que é que ela fez?

— Essas negrinhas vivem aprontando, depois reclamam.

No dia seguinte passei parte da manhã vendendo cajus e depois fui ao Calabouço. Cheguei na hora em que prisioneiros e prisioneiras, em pesadas correntes, estavam sendo trazidos para a frente da cadeia. Iam esmolar. Olhei um a um. Nem sinal de Rosa. No dia seguinte fui lá novamente. E assim durante toda a semana. Tentei conversar com alguns presos, pois eram homens em sua maioria. Ninguém sabia de nada. Ela não tinha morrido, com certeza. Os morcegos teriam avisado aos patrões. Devia estar muito doente.

Por fim, um dia ela apareceu. Ou melhor, o que tinha sobrado dela. Vi Rosa antes dela me ver. Arrastava seus ferros com dificuldade. Talvez por fraqueza. Tinha perdido muito sangue. Mas também por falta de vontade. Ela parecia olhar sem ver, como se não soubesse quem era, onde estava. Forcei um sorriso e corri na direção dela. Rosa estendeu os dois braços, me afastando. Os ferimentos

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nas costas doíam muito. Seguramos as mãos. Nos olhamos como duas irmãs. Não dissemos nada, choramos juntas. De corpo e alma. Rosa era Rosa. Desprendeu-se de mim:

— Minha irmãzinha, cada dia mais linda, esse Fabumi é um preto de sorte…

— Vim aqui trazer um dinheiro pra você não ficar no pior lugar do Inferno.

— Realmente não é um hotel de luxo, barulho de rato não é uma música boa para dormir.

— Rosa…

— Irmã, vou sair daqui. Você vai ver. Nós duas vamos ser mais livres do que os peixes do Cuanza. E bem mais difíceis de fisgar…

Ao sair de lá, caminhei pelas ruas ouvindo o pregão dos vendedores e vendedoras, de pés descalços lutando pela sobrevivência dia após dia. Tomei uma decisão. Iria sim participar daquele contrabando de perfumes.

Para quem não tinha nada, valia a pena arriscar tudo pela liberdade.

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