/ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 10

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 10

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 10

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 10 – 1820 – Debret

 

Se a vida fosse mulher, teria duas roupas. Uma de senhora grave, que nos vem dar notícias sérias e por vezes trágicas. Outra de mocinha alegre e levada, a nos pregar peças. Cá estou, Jean-Baptiste Debret, cinquenta e dois anos, acordando às quatro da manhã, quando até os bem-te-vis estão dormindo. Depois de um leve desjejum preparado por Sebastião, tomo uma sege na direção da Enseada de Botafogo. Fui convencido por meu amigo Neukomm. Mais jovem, é dotado de um entusiasmo invencível, decidido a aproveitar cada dia em terras brasileiras. Vai a todas as recepções, conversa ao máximo e observa tudo, principalmente mulheres jovens e bonitas. E lá vou eu, morto de sono, sacolejando pelo longo caminho que separa o Catumbi da Terra Prometida.

A Praia de Botafogo, antes do nascer do sol, é um dos recantos mais bonitos da cidade. Cercada por montanhas, é um sítio de águas calmas, cristalinas, areia branca e paz. Pássaros de todas as cores passeiam entre as árvores de boa sombra. É uma região distante da cidade, com algumas casas de campo e chácaras. Neukomm e eu não havíamos ido até ali para apreciar a natureza paradisíaca. Menos nos interessava o Jardim do Éden do que as Evas ali presentes. Meu amigo descobrira que as brasileiras gostavam de banhar-se pouco antes de raiar o dia, devidamente acompanhadas por suas mucamas. Vê-las naquele momento, entre a noite e o dia, o volume e depois figuras que aos poucos iam tomando luz e cor, foi uma experiência artística. E mais do que isso.

A cena não poderá constar do meu livro, mas jamais irei esquecê-la. Fiquei imaginando Claire, os pés gordinhos enfiados nessa areia, nua, a pele mergulhando no mar. Os cabelos vermelhos molhados, os braços sardentos e as mãos finas estendidas:

— Vem, Jean, entra na água comigo.

Neukomm percebeu que eu estava sonhando de olhos abertos. Deu um riso irônico, sua marca registrada:

— Gostaria de ver você fazer uma aquarela desta cena, meu pintor.

— Se caísse em mãos erradas eu seria açoitado feito um negro no Pelourinho.

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A conversa foi interrompida por dois espetáculos grandiosos. O primeiro era o que Homero chamava de aurora de dedos cor de rosa. Os jatos de luz por sobre as montanhas antes que o astro-rei fizesse do céu um tapete para desfilar até a noite. O outro era menos grandioso, mais sutil e delicado. Mas não menos belo. Depois de se banharem, com longos vestidos, as moças deixavam-se estar por ali algum tempo, passeando sem touca, fazendo do sol um servidor a secar-lhes os cabelos.

Devia ao meu amigo uma aquarela. Havia prometido caso fosse verdade a história das damas tomando banho de mar ao amanhecer. Como o Catumbi era longe e meu amigo morava bem perto, na Praia do Flamengo, para lá fomos. Ali me esperava uma outra surpresa. Pelo que eu sabia Neukomm não tinha escravos, nem tampouco servidores. Não esperava me deparar com ninguém em sua casa.

Ao chegar, havia uma linda mulher à porta. Não era uma empregada e sim o que chamarei, à falta de palavra melhor, de uma concubina. Violeta, para dizer a verdade, não cabia em definições nem em vestidos. As formas exuberantes transbordavam, rebeldes aos limites que os tecidos pretendiam impor. Seu sorriso era um clarão iluminando a casa. Os olhos castanhos eram uma mistura inventada em algum lugar entre o Céu e o Inferno. Ao contrário de muitas mulatas, não ostentava um ar afetado e superior. Ricamente calçada, sua simplicidade fazia parecer que estivesse de pés no chão.

Se eu não sabia da sua existência, ela sabia da minha:

— Senhor Debret, seja bem-vindo.

— Obrigado, senhorita, quer dizer, senhora…

— Não se preocupe com isso — disse ela achando graça.

Depois de minutos, minha capacidade de conversação retornou e tivemos um colóquio esclarecedor. A mãe de Violeta havia sido escrava de um taverneiro português. Libertou-a quando do nascimento da filha. Por ter mulher em Portugal, não a reconheceu legalmente, mas financiou a sua educação como se fosse filha de um fazendeiro. Pagou professores das matérias básicas, deu-lhe aulas de piano e de francês, contratou uma senhora para ensinar-lhe a etiqueta da corte. Foi

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preparada para ser uma dama. Muito cedo, entretanto, Violeta entendeu que nunca seria branca. E não ser branca, embora não fosse culpa dela, sempre seria uma falha. Seu destino era casar com algum homem de olho no dote que seu pai prometera lhe dar. Ou com algum branco caído em desgraça que não tivesse capital e prestígio para casar-se com uma mulher branca rica.

Preferiu ser livre. Era uma leitora voraz, dotada de inteligência e curiosidade, sem as amarras do pertencimento à classe dos proprietários. Poucos homens da sociedade local estariam à sua altura. Saiu da casa paterna, onde a mãe, agora livre, ainda trabalhava de cozinheira. Passou a ganhar a vida como professora de piano. As famílias brancas viravam o nariz para a sua cor. Mas havia um bom número de mocinhas mulatas cujos pais estavam dispostos a pagar para que aprendessem a tocar. Violeta não perdia uma apresentação de Neukomm depois que ele assumiu o posto de músico da Capela Real. Foi assim que acabou conhecendo meu amigo, com quem conversava em francês afora algumas deliciosas palavras que ambos preferiam falar em português.

Fiquei encantado com Violeta. Fazia justiça ao nome de flor que gosta de sol e ar fresco. Nascera na fronteira entre o jardim domesticado e a floresta selvagem. Foi uma manhã maravilhosa. Fiquei feliz em ver meu amigo vivendo com aquela mulher. Embora soubesse que ainda naquele ano iria embora. Ele mesmo se intitulava “o judeu errante da música”. Amava sua arte, que também era um meio para conhecer o mundo. Além de Viena, já mostrara seus dotes em Estocolmo, São Petesburgo, Moscou, Salzburgo, Paris e finalmente o Rio de Janeiro. Aqui, depois de um começo brilhante e do reconhecimento da Família Real, começou a ser sabotado pelo compositor reinol Marcos Portugal. Isto, somado a seu desejo de aventura, levou Neukomm a arrumar as malas. Já tinha uma proposta para voltar a Paris. Não sei se Violeta gostaria de ir com ele. Por mais críticas que fizesse ao Brasil, este era o solo onde ela havia florescido.

 

Ainda em estado de graça, embarco mais uma vez rumo ao Catumbi. Quando chegamos ao Catete pedi ao condutor para parar. Em um pequeno riacho debaixo de uma ponte, havia um grupo de mulheres a lavar roupa. Eram caboclas, mestiças de brancos e índias. O emprego do nome é confuso porque muitas vezes usa-se

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o termo caboclo para o índio puro que tenha sido batizado, sendo chamado de índio civilizado. É comum que os naturalistas estrangeiros empreguem estes hábeis caçadores em suas incursões nas florestas virgens. Manejam o arco como ninguém e conhecem os hábitos dos animais. Fornecem espécies aos cientistas e também a caça necessária para alimentar os homens da excursão. São pagos com cachaça, decerto o item da civilização que mais apreciam.

De volta às lavadeiras mestiças do Catete. Têm olhos delicados. Roliças, são de uma beleza picante. Excelentes trabalhadoras, buscam as trouxas na porta de casa. De madrugada ainda partem para o rio onde lavam toda a roupa, estendendo-a na grama para secar. Em seguida entregam a trouxa de roupa limpa na porta de casa. São eficientes, rápidas e cobram pouco.

Índios propriamente ditos não são fáceis de encontrar na Corte. Mas pelo menos uma vez isso ocorreu com toda a pompa e circunstância. Dois dias após a nossa chegada, uma família de botocudos civilizados, foi trazida ao Rio de Janeiro para ser apresentada a D. João VI. Talvez por terem sido sempre a raça de selvagens considerada mais feroz e terrível. Atacavam outras aldeias indígenas e mesmo estabelecimentos dos brancos, destruíam e incendiavam tudo. Não havia brasileiro que não sentisse um arrepio na espinha ao ouvir o nome botocudo. Estes selvagens costumam amontar em suas aldeias cabeças mumificadas de inimigos, enfeitadas de cocares de plumas. Usam os ossos das coxas para fazer instrumentos de sopro usados na guerra.

Os que foram vistos por Sua Majestade não pareciam perigosos. O chefe portava um manto e diadema feitos com pele de tamanduá. Por decência, para ser apresentado à corte, portava um colete e, a contragosto, calças de nanquim azul. O chefe e seus homens eram mais baixos do que rezava a lenda, mas bastante musculosos e imponentes. Saindo do palácio real, o rei dos botocudos tirou aquelas roupas para desfrutar da liberdade de permanecer nu. Voltaram para suas aldeias felizes com o presente que haviam recebido: machados de ferro. Botucudos, um nome do qual não gostam, foi dado devido aos pedaços de madeira que usam nas orelhas e no lábio inferior, semelhantes a um batoque, tampo de tonel. Esta prática dá a eles uma fisionomia horrenda, tão impassível que não parece humana. Li neles um olhar de tristeza e apatia.

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Fiquei impressionado com a visita dos botocudos. Quantos tipos humanos habitam esta terra, quantas formas distintas de viver e entender o mundo. No mesmo ano, inseri um botocudo em um quadro que pintei para a Duquesa de Cadaval. Não fazia sentido algum um botocudo perdido no Rio de Janeiro, mas achei, corretamente, que a duquesa gostaria deste toque de exotismo. Não exagerei, o selvagem aparece devidamente trajado com calças vermelhas.

Se até os botocudos podem ser civilizados – ma non troppo -, é lógico que a esperança para os mestiços é bem maior. À medida em que avançar o processo de miscigenação, o sangue indígena será devidamente aperfeiçoado, mantendo a esperteza, a robustez e a capacidade de trabalho, demonstrada por estas caboclas que laboravam debaixo da ponte.

 

Depois de um dia agradável e surpreendente, más notícias me esperavam. Antes mesmo de Sebastião me estender o documento, gelei ao ver o lacre oficial. O que o papel me dizia era inacreditável. Depois do falecimento de Lebreton no ano passado, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios ficara sem diretor. Eu e Taunay éramos os candidatos naturais ao cargo. Fazia falta um Conde da Barca para interceder em nosso favor e tomar uma decisão. Já disse e repito, tudo aqui se assenta em relações pessoais, sobretudo com o rei. Esta brecha foi aproveitada por um oportunista português, um pintor medíocre chamado Henrique José da Silva. Circulando com desembaraço na Corte, este senhor não somente se tornou o diretor mas mudou o nome da instituição para Academia Real de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil. Como se tudo que nos faltasse fosse um novo nome.

No decreto, a escola existia há quatro anos. Mas não tínhamos uma sede, nem uma sala que fosse, muito menos um prédio. Não havia turmas regulares e foi com muita dificuldade que organizei algumas aulas no meu ateliê do Catumbi. Fui obrigado a fornecer almoço aos meus alunos devido à distância entre o centro e minha casa. Agora, o nosso novo diretor, demonstrando com clareza os sentimentos em relação aos artistas franceses, havia nos dispensado de qualquer tarefa didática. Ou seja: passavamos a ser, oficialmente, parasitas sem função. Logicamente que este era o primeiro passo. O segundo seria conseguir o cancelamento de nossas pensões junto ao rei. Ele extinguiu algum cursos técnicos previstos no projeto

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original, extremamente úteis em um país ainda na infância da arte. O de gravura, por exemplo, essencial para a incorporação de imagens em livros. O novo diretor também não apresentou plano algum de construção de um local para a sua Academia. Era o comandante de um navio fantasma.

 

Estava preocupado com o meu destino neste país. Antes de dormir, lembrei de uma conversa que tive com Neukomm e que neste momento pode salvar o meu humor. Quando tratávamos desta nova cultura que podemos intitular brasileira, os olhos do meu amigo brilharam quando pronunciou o nome do Padre José Maurício Nunes Garcia. Mulato, descendente de escravos, entrara na Igreja como uma forma de ganhar a vida. Também era músico da Capela Real. Tímido, consciente dos limites impostos pela sua condição, não buscava reconhecimento. Era, segundo Neukomm, o maior improvisador que ele já havia conhecido. Excelente instrumentista, já tinha composto mais de uma centena de peças, a maioria sacras. Mas também fizera algumas modinhas geniais, músicas alegres, ligeiras e extremamente populares. De origem humilde e educação primorosa, o padre mulato encarnava como ninguém a possibilidade de unir e fundir dois mundos diferentes.

Era, enfim, um músico completo e a demonstração perfeita do entrecruzamento de culturas que estava a acontecer nesta terra. Lembrou de uma reunião na casa do Marquês de Santo Amaro. Quando alguém ia cantar, Neukomm cedia o piano ao padre mestre, porque ninguém fazia o acompanhamento melhor do que ele. Depois que alguém cantou uma barcarola, acompanhado pelo padre José Maurício, ele ficou brincando de fazer variações em torno do tema que maravilharam a todos e levaram ao aplauso. Passaram a noite a ouvir a música dos dedos mulatos daquele artista extraordinário.

Uma bela amizade entre homens com a alma feita de arte. Neukomm certa vez escreveu uma missa, que tinha que ser aprovada por uma comissão de censores, dentre os quais o despótico Marcos Portugal. A autorização foi negada, para que a obra do discípulo de Haydn não ofuscasse as pífias composições do português. Tempos depois, entrando na Capela Real, ouve no órgão uma melodia que não lhe é estranha. Pouco a pouco reconhece a música: era a sua missa censurada. Quem

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ousava tocá-la no órgão, sem ensaio prévio, era José Maurício, que prestava este desagravo ao amigo austríaco. Este abraça o padre e ambos choram, sem dizer nada.

O grande José Maurício era padre e tinha cinco filhos. Era capaz de compor música sacra de primeira qualidade sobre morte e ressurreição ao lado de modinhas falando de amor. Pois é só disso que falam. Domingos Caldas Barbosa, outro mulato que era padre ma non troppo, tinha músicas que não saem de moda. Uma delas sugere claramente um relação sexual tabu nesta terra. Entre um homem de cor e uma mulher branca. Chama-se “Lundum”:

Eu tenho uma nhanhãzinha

A quem tiro o meu chapéu;

É tão bela, tão galante

parece coisa do Céu.

 

Ai, Céu,

Ela é minha iaiá,

O seu moleque sou eu.

O restante da letra é ainda mais sugestivo. Ele afirma que ela só diz que o quer depois de vê-lo penar. Coitadinho. E mais: que não há na rua quem supere o dengo e a chulice da sua amada. Consultado, Sebastião confirmou minhas suspeitas: chulice tem o sentido de vulgaridade, de obscenidade. Por fim, o moleque de iaiá reclama que ela o vê ardendo mas não lhe abana com o leque. Com certeza este deve ser um objeto admirável. Riso e lascívia como duas faces da mesma moeda. Faz-se pouco de uma proibição real e exalta-se uma prática que seria capaz de desestruturar uma sociedade escravista. A relação íntima entre a senhora e seu escravo fica ainda mais patente nestes versos do mesmo autor:

Chegar aos pés de iaiá

Ouvir chamar preguiçoso

Levar um bofetãozinho

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É bem bom, é bem gostoso

Aqui temos uma arte popular, efetiva no seu propósito de virar o mundo de ponta cabeça. Já tinha ouvido falar que as famílias das mulheres brancas grávidas de negros ou mulatos têm como estratégia levá-los ainda no primeiro dia de vida para a roda dos enjeitados. Assim evita-se o escândalo.

Neukomm mencionou outro artista, também mulato. Joaquim Manuel, um talentoso guitarrista e autor de modinhas que meu amigo pretende publicar quando estiver em Paris.

Curioso país o Brasil. Ao chegar, o que vemos é um mar de negros e uma minoria de brancos a comandá-los. Depois começamos a perceber os movimentos feitos na fronteira. O chicote e sua música de dor fazem barulho. Mas é o som de tambores, oricongos e violas que põe seu povo, escravo ou livre, para dançar, sonhar, viver.

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