/ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 7

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 7

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 7 – 1819 – Adelina

Antonio Damásio. O homem que me comprou como se eu fosse uma égua. Assim se chama o homem que pode me vender. Alugar. O homem que pode usar o chicote, a vara, a palmatória ou qualquer outra coisa para me castigar, ferir, amedrontar. O homem que pode tomar o meu corpo para o seu prazer e me obrigar a carregar dentro de mim o seu filho, o meu filho que ele irá usar como coisa também. Ainda bem que Sinhô Damásio já passou da idade. Não corro o risco de sofrer o mesmo destino de Maria Preta. Mas ele ainda é o dono. De tudo e de todos. Não só da escravaria, mas também de sinhá e de seus filhos, em quem ele manda e bate, mesmo que não os venda.

E é por ser o chefe de todos nós que decide passear conosco pela cidade. Para que vejam como é poderoso. Passamos parte da manhã aprontando os mínimos detalhes das roupas, dos penteados, calçados e mantas. Sinhá não parava de gritar. Só não nos bateu por falta de tempo. Era um domingo de sol e o céu era uma manta azul abraçando a gente. Eu e Rosa não queríamos perder nosso batuque, mas tínhamos que obedecer a sinhô-Barril.

Ele vinha em primeiro lugar, orgulhoso como um soba marchando à frente do seu exército. Um hipopótamo de botas e chapéu. Não sei como a terra não estremecia quando ele caminhava no seu passinho lento e irritante de quem quer ser visto. Não era à toa que carregava a espada virada para trás. Não seria capaz de usá-la para nos defender, mas sim contra nós.

Em casa, Rosa nos fez rir ao lembrar do versos que nós tínhamos escutado na boca de um velho tocador de urucungo:

Com tanto pau no mato, embaúba é coronel

Os brancos não vão entender nada. Para as nossas coisas eles nunca deixam de ser boçais. Na nossa terra os chefes são comparados a grandes árvores, que dão sombra e boa madeira. Um soba de verdade protege seu povo. A embaúba é uma árvore esquisita. Ela sobe bem alto, mas é magrinha, quase careca na copa. Não dá sombra e sua madeira é podre. Não serve pra ninguém. Só serve pro bicho preguiça,

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que adora ficar trepado nela sem fazer nada. Que nem esses brancos que vivem mandando na gente.

Depois vinham seus filhos. Antonia, em casa Toninha, era uma menina que não levantava a voz. Agora foi treinada pela mãe na maldade. Aos dez anos, grita, ofende e ameaça castigar. Carlos começa a ter bigode e a pensar que é um homem. Percebemos seus olhares gulosos. Rosa teve que escapar duas vezes quando ele procurou imprensá-la na parede da cozinha. Comigo ainda não mexeu, mas estou me preparando.

Sinhá Joana é bem mais jovem, embora não menos redonda. O desaparecimento de Estevão, um mistério, mudou o seu comportamento. Era desconfiada e desrespeitosa, sempre nos tratando de maneira dura. Agora passou a ser violenta. A menor falha dava a ela desculpa para nos bater. Descontava na gente a falta do Estevão. Caminhava atrás dos filhos usando um vestido rendado e um manto transparente. Seu cabelo vinha preso, bem arrumado. Mas nenhuma roupa ou penteado seria capaz de fazer dela uma mulher bonita.

Não se podia dizer que Aurora não fosse bonita. Era uma mulata clara, ao gosto dos brancos. O vestido escuro contrastava com a vestimenta da patroa. Era alta e caminhava com elegância. O cabelo vinha preso, enfeitado com flores. Não descuidava da tarefa de mucama e carregava a bolsa e o leque de sinhá. Embora escrava, calçava sapatinhos de seda. No rosto, um ar de satisfação e vitória. Devia lembrar-se a todo momento dos desgraçados que tinham uma condição bem pior. Típica mulata.

Os mais desgraçados éramos nós. Rosa, há mais tempo na casa do que eu, andava à minha frente. Nós duas tínhamos sido obrigadas a colocar nossos melhores vestidos e a ajeitar os cabelos. Mas não podíamos ofuscar nem a mucama nem a sua senhora. Joaquim e José fechavam a comitiva de sinhô Damásio. Joaquim era um rapazinho franzino. Aprendiz de sapateiro. Em breve estaria dando um bom dinheiro para os patrões. Bonzinho e bem humorado, sempre nos contava uma piada sobre o imperador. E também boatos: dizia que o príncipe tinha sido visto em um bordel só de mulatas na rua da Vala. Era de nação cassange. Por último vinha o moleque José, angola recém-chegado do Valongo, comprado para substituir Estevão. Zézim, como o chamávamos, ainda tinha aquele ar triste e assustado de quem sobreviveu ao

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tumbeiro. Mal falava, tinha medo de tudo. Procurei protegê-lo, como tinha feito com Estevão. Zézim ainda estava se curando das feridas na pele e da sarna que havia pego no navio. As feridas na alma iam levar mais tempo para sarar.

Andamos até a Igreja de Nossa Senhora dos Mercadores, onde sinhô era devoto, por ser comerciante. Ele deu uma volta danada: ao invés de entrar logo no Arco do Teles fez questão de desfilar suas propriedades no Terreiro do Paço. Chegando na igreja, eles entraram, juntamente com Aurora. E nós, escravos, ficamos do lado de fora. Feito o cavalo que alguém prende em frente a uma casa. Outros negros estavam ali. Não podíamos nos juntar para conversar. Os homens da Guarda Real de Polícia estavam de olho na gente. Ouvíamos, através das portas fechadas para nós, a cantoria desanimada da religião deles. Fazia falta um tambor.

Rosa estava preocupada com Carlos. O menino metido a homem queria, por bem ou por mal, deitar-se com ela. Por enquanto não tinha força para obrigá-la. Mas podia valer-se de um estratagema. Ameaçar denunciá-la por um roubo inexistente. Ou envenenar sinhô, dizendo que Rosa o havia desobedecido e maltratado. Mais cedo ou mais tarde ela teria que enfrentar aquele problema.

Eu temia a própria Rosa e seu amor à cachaça. Apesar de ser uma ótima vendedora de aluá, muitas vezes mal sobrava para pagar a diária depois que ela virava seus copos. Estava bebendo a alforria. Sem falar que sinhá não iria demorar a descobrir. O castigo seria severo. Chicote, no mínimo. Poderia obrigá-la a colocar no rosto a máscara medonha. Ou então enviá-la para a fazenda onde iria trabalhar de sol a sol. Com o feitor olhando. Pior ainda, poderia fazer com que vendesse a si mesma nas ruas, valendo-se dos apelos do corpo. Dividi meus receios com ela.

Rosa é sempre Rosa. Logo mudou de assunto. Afirmou que Fabumi, o carregador da Alfândega, tinha mandado um recado pra mim. Eu não queria nem saber, mas Rosa insistiu e me passou um presente dele. Era um leque colorido, de luxo. Para ele devia ser fácil comprar uma coisa assim por trabalhar no porto. O negro mina sabia agradar a uma mulher. E ele não era feio não. Mas eu recusei, para decepção de Rosa:

— Menina, põe os pés no chão. Você não está mais na aldeia. Não tem mais Cuanza para se banhar. Nem Mukongo pra te abraçar. Está na terra dos brancos. Tem que aproveitar cada oportunidade.

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— Não importa, Rosa. Sei quem sou. Sei o que quero. Minha aldeia, o Cuanza e Mukongo, vivem dentro de mim.

— Tá bom, Adelina, mas vai fazer mal dar uns beijos no Fabumi?

— Rosa, você não desiste nunca?

Ela encerrou a discussão com uma gargalhada de não acabar. Bem nessa hora eles estavam saindo da igreja. Voltamos pelo caminho mais curto, sinhô devia estar morrendo de fome. Cesária havia ficado em casa para aprontar o almoço. Rosa e eu comemos bem rápido e corremos para o Campo de Sant’Anna. Nossa fome era de festa.

Voltamos tristes. Nada de batuque. Esta tarde tinha um rebanho de brancos com suas armas marchando de um lado para o outro. Todos com cara de pedra, cada um mais parecido com o outro. Nenhum sabe dançar. O tambor deles toca com raiva, vazio. Eles têm que se preparar para tirar a vida dos outros, não podem ter alegria. Mesmo estando com as armas no ombro, viradas para trás, sei que elas estão sempre apontadas para nós. É como se houvesse uma guerra permanente contra os negros. Os brancos fazem de tudo para a gente engolir o mesmo temor que eles têm da gente. Mukongo havia me ensinado que o animal só ataca quando tem medo. Aqui os olhares são piores do que as armas, sempre nos dizendo algo ruim. Querem servir-se de nós como animais que carregam, fabricam, cozinham, limpam e dão prazer. Ou nos olham com a desconfiança de quem acha que somos bichos perigosos.

O jeito foi voltar para casa mais cedo. Joaquim e Zézim nos receberam com gritos de felicidade. Há semanas que pediam catação de piolhos. Nós estávamos sempre ocupadas ou cansadas. Joaquim deitou no colo de Rosa. Brincou que nunca havia posto a cabeça em nada tão macio. Ganhou um tapinha na orelha. Sem conseguir parar de rir, Rosa fingiu repreendê-lo:

— Olha o respeito, moleque sem vergonha.

Restava Zézim, que apelidamos de Camundongo, porque era bem pequeno. Quando a cabecinha de Zézim deitou no meu colo, meu coração apertou. Lembrei de Kitusha, que pedia para eu catar mesmo quando não havia nada no seu cabelo, só para

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sentir minhas mãos na cabeça dela. Quando eu falava que o cabelo dela estava limpinho, fazia dengo:

— Irmã, faz um cafuné em Kitusha?

Aí ela fechava os olhos e sorria de boca fechada, pensando: isso é que é vida. Zézim não podia se soltar tanto, mas eu sentia um estremecimento bom enquanto minhas mãos vasculhavam seu cabelo. Estava cheio de bichos. Olhei para o seu corpo. As mãos viviam inchadas, sinhá-Joana batia sem piedade. O menino ainda compreendia pouco a língua dos brancos. Toda hora apanhava por não cumprir direito uma ordem que não havia entendido. Na altura do ombro esquerdo, uma cicatriz grande, em relevo, lembrança de alguma crueldade dos ahuki. As pernas eram dois gravetos. Apesar disso tudo, um rosto bom de menino. Que podia estar em sua aldeia, aprendendo a caçar e pescar com os homens mais velhos. E agora estava ali, aterrorizado, falando para dentro, com medo de respirar. Com lentidão, catei cada piolho. Amolecia a mão para o cafuné, como se ele fosse Kitusha. Nessa hora somos todos iguais. Não esperava vê-lo chorar. Primeiro uma lágrima solitária e envergonhada, depois o rosto inundado e ele soluçando feito um animalzinho capturado se debatendo numa armadilha.

— Calma, Camundongo, não chora não.

— Desculpa, Adelina.

— Não precisa se desculpar, mtoto, eu sei que é muito difícil.

— O que eu fiz? Por que me batem tanto?

— Vou te ensinar a língua dos brancos, você vai virar ladino e parar de apanhar.

Me segurei para não chorar também. Era apenas um menino com medo. Rosa parou de fazer cafuné e veio abraçar o Zézim. Joaquim ficou um tempo sem saber o que fazer, mas veio também. Éramos um bolo de gente, juntos na dor, com raiva daquela injustiça. A injustiça que não cessava.

— Adelina? Rosa? Venham até aqui.

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— Sim, sinhá. Respondemos nós duas ao mesmo tempo, bem treinadas pelo receio que nosso corpo nos ensinava.

— A partir de amanhã vocês duas não vão mais trabalhar juntas. Não faz sentido as duas venderem aluá no mesmo lugar.

— Mas nós estamos pagando a diária direitinho, sinhá. — ousei dizer, a língua mal conseguindo se mexer.

Cala a boca, quem manda aqui sou eu.

— Sim, sinhá. — dissemos nós duas, desanimadas.

— Então está ótimo. Rosa, que é mais antiga, vai continuar vendendo aluá no Terreiro do Paço.

— E eu?

— Você, Adelina, agora vai ser vendedora de caju. E não quero mais que você tenha um ponto fixo. Quero que você ande por toda a cidade. Nada de voltar para casa enquanto houver um caju no cesto, entendeu?

— Sim, sinhá.

— Pois bem, agora vão-se embora dormir e descansar que amanhã é dia de trabalho.

As esteiras nunca foram tão duras. Não conseguimos dormir logo. O pouco de alegria que tínhamos vinha da certeza de que passaríamos o dia juntas. Reclamando dos nossos patrões. Rindo dos brancos. Comendo na quitandeira. Se defendendo dos clientes abusados. Passeando pela cidade a notar as novidades. Fazendo fofoca. Tínhamos virado irmãs. Como é que eu iria passar o meu dia sozinha sem as brincadeiras de Rosa, sem aquele seu jeito? Até sem aquela chatice de viver me falando que eu tinha que esquecer Mukongo e dar uma chance ao preto mina. O que não iria acontecer.

Resolvi aproveitar minhas idas e vindas vendendo caju para visitar Luzia na Rua dos Barbonos. Ela não estava mais lá. O moleque da casa me contou o que tinha acontecido. De tanto dar seu leite pra filhinha dos brancos, Luzia ficou sem leite para

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o seu Manuel, que foi ficando fraquinho, fraquinho, até morrer. Luzia ainda amamentou a bebê branquinha um tempo. Mas ela estava tão triste que os patrões tiveram medo de que ela passasse alguma doença para a menina. Venderam Luzia para e alugaram uma ama-de-leite. Como disse o moleque:

— Agora o peito dela não prestava mais.

Os pastos estavam secos. Os animais sofriam, magros. O silêncio imperava, ninguém tinha mais força. A seca calara as vozes. Tínhamos perdido todo feijão que plantamos e quase todo o jiló. Além da pesca, a caça, mais do que nunca, era a principal maneira de alimentar a aldeia. Mukongo se desdobrava. A cada dia saía mais cedo e voltava mais tarde, os ombros carregados de presas. Os velhos pararam de acusá-lo de feitiço, porque era ele que impedia que morressem de fome. De repente, sem aviso, veio a chuva. A terra, sedenta, bebeu à vontade. Choveu uma semana. Uma chuva de pingos grossos. As crianças, felizes, brincavam com a lama, escorregando, se cobrindo, jogando bolas umas nas outras. A aldeia voltou a ficar barulhenta.

O sol apareceu, feito um rei que volta de viagem. Neste dia Mukongo me pegou pela mão. Olhou para mim e bastou. Fomos caminhando até o rio, nossos pés massageados pela terra molhada. Não falavamos nada. Eu sentia o calor firme dos dedos dele e desejava que ficasse segurando minha mão para sempre. O barulho do rio foi ficando mais perto. Era a voz de um irmão mais velho e sábio. O Cuanza conversava comigo. De um jeito ou de outro, olhando suas águas, ouvindo ele correr, descobria o que fazer.

E eu soube o que fazer. Mukongo estendeu a palha em um lugar de sombra junto da margem. Havia uma majestosa mulemba, tão grande e alta que poderia servir a uma reunião de chefes. Ele havia escolhido com calma onde seria. Nos deitamos ali, lado a lado. Sua mão continuava na minha. Seus olhos brilhavam tanto que pensei que pudesse mesmo enfeitiçar a caça com eles. Eu não precisava ser caçada. Estava entregue. Meu corpo, minha alma, meu destino. No olhar dele, o desejo crescia e escavava algo dentro de mim. Sua mão veio para o meu rosto e minha face ficou com febre. Devagar, mas sem parar de me olhar, sua mão envolveu minha orelha como quem segura uma borboleta. Apertou minha nuca e por fim entrançou seus dedos nos meus cabelos.

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Minha vida cabia dentro do beijo de Mukongo. É algo que acontece. Você sabe que não existe igual, nunca vai haver. Porque há uma confusão em que você se perde, quer desaparecer no outro. O tempo fica parado. Nada mais existe. Os lábios de Mukongo. A língua de Mukongo. Fiquei surpresa quando ele levantou minha roupa e começou a morder minhas coxas. Chegava a doer um pouco. Fiquei arrepiada e fechei os olhos com muita força, para sentir mais e mais. Quando sua língua roçou de leve o meu sexo, a cabeça rodopiou. Não seria capaz de dizer o meu nome. Ele foi aumentando devagar os movimentos, sempre com um pouco mais de pressão. A língua subia e descia. Se eu fosse uma floresta, teria pegado fogo sem virar cinza. Se aproximava um relâmpago prolongado. Nesse momento, ele parou. E disse, simplesmente:

— Eu sou seu, Olabisi. Você quer ser minha?

Chorei de alegria, como se estivesse dizendo que sim. Era dele, tinha sido dele, seria dele. Ele me atravessou. um rio cruzando a terra seca. Respirava forte e o prazer dele era o meu. Entrava mais e mais, abrindo um caminho novo no meu corpo. Começou a se movimentar mais rápido, para explodir dentro de mim. Eu não pensava em dor, alegria, tristeza, felicidade. Apenas sentia. Era. Dele. Naquele momento. Para sempre.

Voltamos. Do jeito que viemos. Em silêncio. De mãos dadas. Felizes. Chegamos perto da aldeia. Vozes e fogueiras iluminavam a noite. Vi que seus olhos eram a grama depois da chuva. Ia falar algo. Coloquei a mão na boca dele:

— Não diga nada, meu amor.

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