/ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 12

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 12

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 12

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 12– 1821– Debret

 

Segurei o braço de Sebastião. Paramos para assistir. Descalços, com casacos esfarrapados e calções que não chegavam aos joelhos, dois homens estavam frente a frente. Depois que tiraram os chapéus ao mesmo tempo, nenhum queria se cobrir primeiro. Seria uma indelicadeza. Demonstraria falta de humildade. Combinaram devolver os chapéus à cabeça ao mesmo tempo. Ainda fazendo mesuras, pegaram suas tabaqueiras e trocaram rapé com a maior cerimônia. Só então, passaram a perguntas educadas, como cavalheiros. Para caminhar lado a lado, havia uma questão a resolver. Ambos queriam seguir junto ao muro, considerado o pior lugar. Decidiram, afinal, que o mais novo, como mandava a tradição, caminharia nesta posição.

Modificando detalhes, a cena poderia passar-se em Paris. Mas ocorreu numa rua desta cidade fedorenta, caótica e surpreendente. Os protagonistas deste duelo de cortesia eram negros do Congo, diz Sebastião. Se um deles fosse bem mais velho, não haveria impasse. O mais jovem tiraria o chapéu, inclinaria a cabeça e beijaria a mão do ancião. Na semana anterior, Sebastião e eu havíamos visto um pequeno príncipe africano na rua da Ajuda. Imediatamente se formou uma multidão. Seus súditos punham-se de joelhos e beijavam sua mão como se estivéssemos no Palácio do Rei em São Cristóvão. Não parava de receber presentes. Os vínculos e hierarquias do outro lado do Atlântico continuam a valer aqui.

Por falar em vínculo, o Parlamento português exigiu o retorno de D. João VI. Houve o regresso da Família Real e com ela todo seu séquito de ministros, oficiais, diplomatas e suas famílias. Lotaram onze navios. Agora somos governados pelo Príncipe Regente D. Pedro. Cada vez o conheço melhor. As relações com Dona Leopoldina pioram a cada dia. Ela vive para os livros e para a Botânica. Várias vezes solicitou-me o desenho de flores e plantas. Ele vive para outro tipo de jardim, digamos, não menos florido. Por incrível que pareça, a única atividade em que a esposa o acompanha com prazer é a caçada nos campos de Jacarepaguá. A princesa, de aparência frágil, é excelente atiradora.

D. Pedro encontra-se em uma situação difícil. Os brasileiros não irão conformar-se em retroceder, voltando a receber ordens de Portugal. O

– 86 –

Parlamento de Lisboa, por outro lado, já demonstrou que o seu plano é o retorno ao status quo anterior. Lembrando que o rei fora embora, mas milhares de homens do exército português permaneciam aqui. A princesa Leopoldina adota abertamente o partido dos brasileiros, sem parar de instigar o marido a fazer o mesmo. O destino da nova nação está nas mãos deste homem imprevisível. Gosta de andar com roupas simples e um imenso chapéu de palha pela cidade. Ele mesmo conduz o carro. Atende com simpatia a todos que lhe beijam a mão. Dizem-me que por várias vezes jantou com os empregados do palácio como se fosse um deles.

A peripécia mais notável deste enfant terrible foi narrada por Neukomm, antes do triste dia da sua partida. Certo dia foi banhar-se nas águas cristalinas de Botafogo, para refrescar corpo e alma. As ninfas e sereias daquela manhã já exibiam seus cabelos ao sol, preparando-se para a viagem de volta. Neukomm ia dar seu mergulho. Eis que chega uma sege conduzida por um homem forte, não muito alto, com um grande chapéu fazendo sombra ao seu rosto. Desce do carro e assim que põe os pés na areia retira suas peças de roupa, uma a uma, até ficar do jeito que veio ao mundo. Diante do sobressalto das moças, dá-lhes um sorriso de anjo, acena e corre para o mar onde entra com grande estrondo. Era o príncipe D. Pedro. Se não fosse contada por meu confiável amigo, jamais acreditaria nesta história.

Neukomm nos abandonou, a mim e a Violeta. Ela é uma flor que não para de desabrochar, ou são meus olhos? Nos tornamos bons amigos e a visito na casa que manteve no Flamengo. Há muito tempo acima das convenções sociais, não se importa em receber um cavalheiro. Ademais, Josefa está sempre presente. É negra, como cabe a uma mucama de uma senhora mulata. Josefá prepara o único café decente desta cidade e comemos uns biscoitos que a própria Violeta prepara com mãos encantadas. Para as quais não paro de olhar. Conversamos sobre tudo, nunca sobre política. Um dia cobrei uma promessa que Neukomm havia feito por ela. Que Violeta me levaria a um lundu, para matar a curiosidade que ele despertara ao me ensinar algumas letras. O casal costumava fazer incursões em territórios normalmente vedados aos brancos, valendo-se da ousadia de Neukomm e da simpatia de Violeta. Os negros odiavam sobretudo os portugueses e o fato de ser estrangeiro era bem utilizado por meu amigo.

Domingo de manhã. O céu prometia chuva. Sebastião conduzia o carro onde eu ia com Violeta. Estavamos na estrada de Mata-Cavalos. Ainda bem

– 87 –

que o rei havia colocado uma fonte no meio do caminho para que nós e os animais matássemos a sede. Se não estivesse nublado, já teríamos derretido de calor. Violeta estava muito à vontade. Ao contrário das mulheres deste país, que vivem em um cárcere disfarçado, desfrutava da liberdade com muito gosto. Sebastião passou a adorá-la no instante em que a viu. A maneira firme com que deu instruções demonstrou que Violeta conhecia muito bem o caminho.

Gastamos boa parte da manhã para chegar à freguesia do Engenho Velho. É uma área de chácaras onde o ar é mais fresco. Apreciei a visão do simpático rio Maracanã com suas águas transparentes correndo em meio a uma região cheia de matas. Nos desviamos daquilo que com exagero chamo de estrada principal e seguimos à esquerda por um pequeno caminho durante um bom quarto de hora. Aquilo não era mais do que uma picada, mal e mal comportava o nosso carro. Em certo momento, não havia mais como prosseguir. Violeta disse que devíamos descer e caminhar.

Só se ouviam os nossos calçados pisando o chão de folhas e gravetos e o canto dos pássaros. Temi que minha amiga houvesse se perdido. Aos poucos, começamos a perceber o som do tambor e pedaços de vozes humanas. Meu coração foi capturado pelo ritmo à medida que nos aproximávamos. As falas foram se tornando mais fortes, alegres e cheias de energia. Mas ainda não víamos nada.

De repente, fomos cercados por três negros com punhais na mão surgidos não se sabe de onde. Ao verem Violeta, desmancharam-se em sorrisos e gentilezas. Ela explicou que estava trazendo um amigo para conhecer a festa, um homem que não gostava da escravidão e que não tinha escravos. Os três inclinaram-se para mim ao mesmo tempo e não deixaram de abraçar Sebastião.

Nos levaram até um descampado. Era uma grande roda de homens e mulheres. Um negro colossal castigava sem piedade o couro do tambor numa mistura de raiva e amor. Outro, franzino, abraçava sua viola e dela tirava sons apaixonados. O círculo vibrava como se fosse um único ser. Um homem mais velho cantava e todos respondiam com um refrão melodioso. Inventava mais um verso e novamente o refrão era entoado por todos. As palavras tinham mais tempero do que a comida das quitandeiras e a plateia estremecia quando eram enunciados. Havia também versos críticos:

– 88 –

Preto quando morre

foi cachaça que matou

Branco quando morre

foi Jesus Cristo que levou.

De fato, lembro de Neukomm me contando que um grande problema entre os mercenários alemães contratados por D. Pedro era o vício da cachaça. O canto, as palmas, tudo isso fazia um vibrante pano de fundo. Um par evoluía no centro daquela ilha negra. Primeiro, foi o homem. Dançou um bom pedaço, provocativo. Depois, escolheu uma das mulheres da roda, uma negra de pernas fortes e seios grandes. Ela também avançou com meneios circulares que me deixaram arrepiado. Os quadris faziam contorções que um europeu jamais poderia imaginar. O clímax ocorria quando os dois simulavam um encontro dos sexos. Em seguida fingiam terem sido atingidos por um espasmo de prazer. Aquilo se repetia com outro par e mais outro.

A aguardente ia correndo solta. Cantava-se cada vez mais alto e batia-se palmas para quebrar as mãos. De vez em quando um grito punha mais fogo em tudo e a festa era feita para não terminar. Mas o dia ainda reservava uma surpresa. Um dos homens que havia barrado a nossa chegada entrou na roda. Depois de dançar um pouco, apontou para Violeta. Minha amiga sorriu e demorou apenas alguns segundos, tempo suficiente para lançar fora seus belos sapatos e levantar um pouco o seu vestido. Por um momento, infelizmente brevíssimo, pude desfrutar a visão dos pés mulatos e gordinhos de Violeta.

Não sei o que dizer. Para os gregos a beleza não era apenas uma questão de perfeição estética. Tinha que haver o que eles chamam de charis, de graça, daquilo que nos encanta, nos faz querer estar na presença de alguém. Violeta não dançou com a vitalidade das negras. De início, foi ensaiando como se mover, prestando atenção no seu par. Seus movimentos foram mais leves, um erotismo sutil que prendeu os olhares de todos. O negro que a convidou teve vontade de parar para assistir. Todos entenderiam. Quando houve o encontro dos quadris, acho que a roda toda foi atingida por uma onda capaz de abalar um navio.

Saiu da roda em meio a olhares de espanto. Quando chegou, eu mal conseguia respirar. Perguntou, feito uma menina travessa:

– 89 –

— Fiz muito feio, Jean-Baptiste?

— És uma rainha que acaba de angariar novos súditos.

— Não sei dançar muito bem.

— As outras dançam, você faz sonhar.

Percebi um breve embaraço mas logo ela retomou seu sorriso de abre mundo. Eu é que fiquei sem graça ao me perceber cortejando a mulher do meu amigo. Ex-mulher, na verdade. Mesmo assim havia algo torto naquela situação. Voltamos para casa. Talvez devido ao cansaço, não conversamos tanto. A despedida, quando chegamos ao Flamengo, foi um pouco contida da parte dela. Ou estarei imaginando coisas?

Recebo a notícia da morte do imperador. Preso com todo rigor pelos ingleses em Santa Helena, sem nenhuma esperança de libertação, Napoleão não poderia sobreviver mais. Seu nome será eterno, para sempre associado à Revolução que ele tanto amou. Foi mais poderoso do que qualquer outro homem e soube se valer dos rituais do poder. Mas não sucumbiu às ilusões, dizia que um trono não era mais do que uma prancha de madeira forrada de veludo. Depois que a Europa inteira marchou para derrotá-lo, entregou-se nas mãos do seu pior inimigo achando que seria tratado dignamente. Os ingleses o desterraram em uma ilha perdida no oceano e alojaram o imperador e sua comitiva em barracões destinados ao gado, alimentando-os quase da mesma forma. Morreu de úlcera, mas o que devorou sua carne não foi a comida e sim a tristeza.

Outra desistência, não tão radical, foi a de Taunay, que retornou à França com sua esposa e um dos filhos. Chegou a comprar escravos e a ser dono de terras onde se plantou café. As idas e vindas da academia o exasperaram. As Cortes portuguesas também querem o retorno de D. Pedro a Portugal, percebendo que está a se aproximar cada vez mais dos brasileiros. Não sei como isso vai se resolver. Espero que não seja em uma guerra fratricida.

Fico torcendo para que a Real Academia de Belas Artes venha a funcionar. Ano que vem expira o prazo de seis anos pelo qual fomos contratados.

– 90 –

O objetivo de criar uma instituição que faça avançar o ensino das artes não foi alcançado. Culpa do ciúme dos artistas portugueses e do uso de relações pessoais dentro da Corte para sabotar os artistas franceses. Henrique José da Silva conseguiu a direção da escola. Além de acionar seus amigos poderosos, alegou precisar alimentar os doze filhos. Admirável motivo: sai a arte e entra a prole.

O projeto do livro vai de vento em popa. O ateliê do Catumbi está cheio de aquarelas. Vou recolhendo cenas e documentos variados. No que diz respeito aos primeiros habitantes da terra, já tenho retratos de indígenas selvagens e civilizados, suas choças e cabanas, máscaras, vestimentas e fisionomias de diferentes tribos selvagens. A cada dia incorporo mais detalhes dos costumes dos negros, com certeza o tema central. Aos poucos também vou dando conta da vida política, dos cultos e festas religiosas. E da natureza tropical: suas plantas e frutas principalmente. Não saio à rua sem meu caderno de desenhos e afora meus poucos compromissos como pintor histórico, passo a semana toda com Sebastião a investigar, a indagar, a conhecer.

O plano é o mais lógico possível. Está ordenado de acordo com o avanço da civilização. Começo com o primeiro habitante desta terra e o mais primitivo, mas que já vai se civilizando. Em seguida trato do negro, principal esteio da nova nação. E por fim chego ao europeu, aqui representado pelo português.

Nunca se sabe quando esbarraremos em algo extraordinário. Estávamos na rua do Carmo, onde ficam as principais tabacarias. Cada uma tem uma placa com a efígie que distingue a loja: um cavalo branco, um cisne, um leão, um carneiro. Numa delas, com a placa do rei dos animais, havia um espetáculo singular. No balcão estava o dono, um português obeso, valendo-se de um lenço para enxugar o suor. Servia a todos de maneira desleixada, quase sem vontade de vender. Atendia um grupo de libambos. São escravos condenados que pagam sua pena carregando na cabeça grandes tonéis de água que abastecem as fortalezas. Vão todos unidos por uma só corrente que os prende pelo pescoço. Graças a este cruel artifício, são conduzidos por somente um homem da Guarda Real. Armado apenas de uma bengala, com ela força-os a caminhar e afasta os amigos destes infelizes queiram conversar.

Os cativos esperavam sentados nos tonéis, conversando, enquanto o que estava à frente adquiria as encomendas dos colegas, colocadas em latinhas. Haviam contado com a piedade dos passantes para conseguir preciosos vinténs.

– 91 –

Um deles aproveitava para oferecer trabalhos feitos com chifre de boi que lhe permitiam angariar algumas moedas. Os negros não vivem sem fumar seu cigarro. As negras preferem o cachimbo.

A poucos metros, displicentemente encostado numa parede, sobraçando a bengala, o soldado aproveitava o descanso por ele mesmo concedido para conversar com uma vendedora de legumes. Ela ia com o cesto à cabeça e o filho amarrado às costas à moda africana. Não foi possível ouvir a conversa, mas era toda sorrisos e gargalhadas. A polícia daqui empreende uma batalha feroz e contínua aos negros, vigiando-os e punindo-os sem dó. Muitas vezes agridem sem motivo. Não há negro que não se assuste diante da odiada farda. Sebastião, mesmo depois de forro, continua tendo pesadelos com os morcegos. E cá estavam o guarda e a vendedora conversando prazerosamente. Não era para vender e comprar tomates.

O elemento feminino é o óleo que vai fazendo todas as estruturas deslizarem e se moverem em direções inesperadas. Imaginemos que o guarda esteja apaixonado pela moça e que este diálogo resulte em namoro. Namoro proibido, o que é ainda mais saboroso. E que desse namoro nasça uma bela criança, saudável e mestiça. E que o policial ajude sua amada a comprar sua alforria para reunir toda a família. Pode ser que ele continue a empunhar o chicote com a mesma raiva. Pode ser. Mas algo nele há de mudar. Ao menos quando sua filha mulata começar a chamá-lo de papai.

O caminho natural do Brasil é a mistura de raças. Ninguém tem constituição mais resistente do que o mulato. Tem mais energia que o negro e herda uma parcela da inteligência da raça branca. Infelizmente é orgulhoso, libidinoso e por vezes irascível. Os brancos o desprezam e os negros o odeiam. Os mulatos da terra já demonstram seu valor como trabalhadores especializados, artesãos, cientistas e artistas. A resistência ao mulato deriva do medo do elemento novo. Mas ele é o futuro do país.

Como não lembrar de Violeta? Ela transformava uma clareira na mata no centro do mundo.

– 92 –