/ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 13

ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 13

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 13– 1822– Adelina

Rosa não era mais Rosa. Levei os meninos quando saiu da prisão. Agora não tão meninos. Joaquim estava a virar um belo homem e era oficial de sapateiro, pagando a diária e juntando suas economias. Camundongo não parava de crescer e começava a engrossar a voz. Mas não tinha perdido o jeito de criança:

— Adelina, a gente vai poder abraçar a Rosa?

— Claro, Camundongo. Ontem à noite ela me disse que estava tudo cicatrizado. Mas não aperta com muita força, viu?

— Pode deixar, Adelina — disse ele com os olhos já molhadinhos.

O portão abriu e ouvimos um som de grilhões. Rosa não andava. Punha um pé, depois o outro, bem devagar. Não fazia sentido. No dia anterior estava bem. Feliz com a libertação próxima e com o fim das dores nas costas. As feridas finalmente tinham fechado. Agora era a sombra de uma sombra. A vida nela era uma pequena folha prestes a se desprender da árvore. Eles se assustaram. Camundongo disparou e deitou a cabeça no colo de Rosa como quem volta pra casa. Ela demorou, mas por fim conseguiu colocar a mão no cabelo dele e fazer um cafuné bem de leve. Mesmo assim o sorriso não veio, um dia de sol tapado de nuvens e chuva. Joaquim olhou para mim procurando uma resposta. Nos juntamos a Camundongo e Rosa, os braços embolados apertando com toda a força.

Rosa fantasma. O que tinham feito com ela durante a noite? Tinha apanhado? Os morcegos tinham prometido aos patrões libertá-la em condições de trabalhar. Mesmo na mão da polícia, continuava a ser propriedade de Sinhô Damásio e ele queria sua peça de volta em perfeito estado, depois de castigada e disciplinada. Alguma coisa terrível aconteceu. Não havia como perguntar na frente dos dois.

Esperei meses. Rosa era um silêncio ressecado. Só mesmo Joaquim e Camundongo é que eram capazes de fazer os olhos dela acenderem um pouco. Mas era uma madrugada que nunca virava dia. Respondia com um olhar de navio negreiro. Não estava pronta para falar. Aquela espera me mordia por dentro, precisava saber quem tinha feito tanto mal à minha irmã.

93 –

Nós três fizemos da nossa senzala um ninho para um pássaro de asa quebrada. Quando voltavam do trabalho, Joaquim e Camundongo vinham com boas notícias e histórias engraçadas. O nosso caçula agora estava trabalhando. Os brancos tinham um tipo de música chamada modinha. Até que era gostosa de ouvir, mesmo não tendo tambor. O engraçado eram as palavras cantadas. Camundongo vendia um negócio chamado partitura. Era um pedaço de papel todo desenhado e com palavras também. Explicou que a partir dali dava para tocar a modinha no piano e cantar. Ele decorava a letra – pois não sabia ler -, aprendia a música e sair cantando e assobiando pelas ruas. Quem comprava? As moças brancas, doidas para saber tocar no piano a mais nova música. A única coisa que amolecia a pedra que Rosa tinha no peito era ouvi-lo cantar fazendo voz de branco metido:

Se os meus suspiros pudessem

Aos teus ouvidos chegar,

Verias que uma paixão

Tem poder de assassinar.

Não são de zelos

Os meus queixumes,

Nem de ciúme

Abrasador;

São das saudades

Que me atormentam

Na dura ausência

De meu amor.

Para também participar da brincadeira, Joaquim imitava os sons da viola com a boca. Eu complementava a festa bailando com um par imaginário, às vezes tentando tirar Rosa pra dançar. Tudo para arrancar o sorriso de uma rosa agora feita somente de espinhos. Fabumi ajudava, trazendo presentes para despertar a

94 –

vaidade de Rosa. Inutilmente. Ela agora saía de casa sem atavios, sem mais gosto de se enfeitar. Claro que passou a vender menos. A sua beleza alegre sempre tinha sido um chamariz. Eu e os meninos vivíamos ajudando ela a pagar a diária. Isso não era importante. Queríamos Rosa de volta. Eu sabia que ela tinha que colocar pra fora, contar o que tinha acontecido naquela última noite no Aljube. Ou então aquele pesadelo continuaria enterrado na alma.

Tinha ao menos engordado um pouco, mas a bunda não tinha voltado a ser a imensidão balançante que tanto perturbava brancos, negros e mulatos. Rosa não parecia ligar para mais nada. O dia dela era sem pimenta, só água e sal. Sinhá Joana parecia feliz em ter quebrado a força de Rosa. Gritava ainda mais, xingava de preta preguiçosa, ameaçava mandar Rosa pro Aljube de novo, infernizava. Eu e os meninos brincávamos, dizendo que era uma pena que Estevão tivesse desaparecido sem deixar sinal. Só ele pra alegrar um pouquinho o coração daquela fera que usava o leque numa mão e o chicote na outra.

Por falar em leque e nessa papagaiada dos brancos, outro dia fui levada a um baile deles. Aurora estava há tempos se preparando para acompanhar Sinhá Joana. A festa era tão importante … Até o imperador e a mulher iriam aparecer. Ela não contava nada mas a gente ficava só escutando atrás da porta. Saber o que está acontecendo pode salvar nossa vida. E dá-lhe dela perguntar à sinhá sobre a roupa, o penteado, como agir, o que falar. As perguntas não paravam. Sinhá já estava perdendo a paciência com a preferida. E nós fomos ficando curiosas também. Até Rosa quis saber.

Quem é ruim se estraga sozinho, diz Fabumi. Dois dias antes a danada da Aurora ficou doente, com febre e nariz escorrendo. Ainda tentou convencer sinhá a levá-la, mas não houve jeito:

— Ardendo em febre e cheia de catarro, Aurora? Diante de Vossa Majestade, o Imperador Dom Pedro I? Francamente, menina, nem pensar.

É assim que fui mucama por um dia. Sinhá disse que eu era bonita e que me sairia bem. Era a primeira vez que me dizia algo bom em quatro anos. Aurora teve que engolir a raiva ao me ver experimentar seus melhores vestidos. Para azar dela, tínhamos um corpo parecido. Ser mucama é fácil. Só o que eu fiz foi ir até lá com sinhá Joana e voltar quando a festa tinha terminado. Durante

95 –

o baile, fomos escondidas na cozinha. De lá dava pra ver os brancos dançando daquele jeito sem graça, sem mexer as cadeiras, só usando os braços, como se estivessem amarrados da cintura pra baixo. Uma mucama disse que era uma dança sem bunda. Achamos tão gozado que começamos a imitar ali mesmo. Eu fiz o cavalheiro e ela a dama. Todo mundo riu, mas sem fazer barulho. A cozinheira disse que aquilo se chamava minueto, era uma dança adorada pela brancaria.

Quando cheguei em casa e fiz o tal do minueto, os meninos só faltaram se jogar no chão. Depois Joaquim passou a imitar o cavalheiro e eu fui seu par. Camundongo tentou fazer o mesmo com Rosa mas ela o afastou com uma mão suave. Fomos dormir mais leves. No dia seguinte, quando saímos juntas para o trabalho, Rosa me deu o braço e percebi que ela tremia. Começou a falar, com uma voz que tinha o cansaço de uma anciã:

— Preciso contar, Adelina. Está me envenenando.

— Conta, minha irmã.

— Eles eram quatro, Adelina.

— Eles quem?

— Os guardas. Eu estava numa cela bem grande com mais doze ou treze mulheres. Maria benguela tinha sufocado a patroa com as próprias mãos depois da branca reclamar que a comida dela estava muito salgada. Quando sinhá foi buscar a palmatória, ela perdeu o controle, bateu na desgraçada, derrubou no chão e só tirou as mãos da garganta da mulher quando a branca tinha virado um monte de carne sem vida. Lá dentro, parecia uma senhora tranquila. Antonia cabinda, uma jovenzinha, tinha tentado fugir pela terceira vez, mesmo com ferro no pescoço. Ela não tinha mais pele nas costas, eram só cicatrizes se cruzando … uma corda trançada. Leonora calava tinha enlouquecido depois de ser separada do seu filho e do seu homem. Sinhá queria que ela fosse ama-de-leite mas o peito dela secou em menos de um mês. Passou a ser surrada de palmatória e depois de chicote, mas o leite não voltou. Quando viu que não servia para mais nada sinhá jogou ela no Aljube. Leonora só falava baixinho, quase sem parar, numa reza:

Cadê meu Pedrinho? Cadê meu Pedrinho? Mamãe tem que dar

96 –

de mamar…

A maioria tinha sido pega roubando uma pulseira, um colar, algumas moedas, um pouco de comida. Em pouco tempo já sabia o nome e a história de todo mundo. Estavam alegres porque no dia seguinte eu sairia dali. Foi aí que eles vieram, depois da gente engolir aquela porcaria que nos serviam como se fosse comida.

Nós começamos a gritar porque já sabíamos o que ia acontecer. Só não sabíamos quem seria a escolhida. Estavam armados de fuzis e ameaçaram matar todas nós. Apontaram para mim. Tive que ir. Se resistisse era capaz de mais alguém sair machucado.

— Rosa…

— Espera, Adelina, quero te contar tudo. Me levaram para o quarto mais escuro, fedorento e abafado da Guiné. Antes disso eu gravei o rosto de um a um dos quatro, todos brancos. Sei reconhecer a voz de cada um deles. Conheço até as mãos daqueles animais, a maneira deles segurarem, apertarem e baterem. Gosto de homem, Adelina, mas eles eram quatro leões me rasgando, me mordendo. Se divertiam, brincavam um com o outro. Não queriam ter prazer. Queriam me quebrar, acabar com toda a vida dentro de mim. Primeiro eu briguei, tentei bater neles. Me surraram até eu desmaiar. Mas não fizeram nada comigo enquanto não acordei. Queriam que eu visse e sentisse o horror. Vinham dois ou três abusar de mim ao mesmo tempo. Deram de chicote nas minhas coxas e depois fizeram eu lamber a ponta de couro cheia do meu próprio sangue. Só me chamavam de negra suja, de puta sem vergonha. Falavam para eu gritar bem alto, para eu pedir socorro que ninguém viria me salvar, ninguém viria me ajudar. Eu era deles e podiam fazer comigo o que quisessem. Só pararam quando a luz do dia começou a iluminar as paredes cheias de sangue.

— Ahuki desgraçados, filhos da puta!

— Nunca mais vou esquecer. Tenho pesadelos. Ontem eu sonhei que estava nua, amarrada a um pelourinho no meio do Largo do Palácio. Com um punhal na mão, ameaçando rasgar minha pele, um deles convidava todos os brancos que passavam a me usarem. Os outros três guardas não deixavam as negras que estavam ali irem embora. Diziam que tinham que assistir e aprender.

Por que esses brancos têm tanta raiva da gente, minha irmã?

97 –

— Eu me pergunto isso todos os dias.

Feito o galho de uma árvore cortado por um machado, foi assim que o sorriso de Fabumi deixou de existir quando soube o que tinha acontecido com Rosa. Começou a respirar forte, um touro tomado de fúria. Depois me perguntou se Rosa sabia o nome dos guardas. Mandei tirar aquilo da cabeça, não ia deixar ele arrumar confusão. Também tínhamos nossos problemas.

No domingo fomos até Praia Grande. Na ida correu tudo bem, buscamos um bom carregamento de perfumes. Mas quando desembarcamos na Praia de Dom Manuel dois guardas vieram falar conosco daquele jeito:

— Mas que gracinha, um casal de negrinhos. Eles não são bonitos, Oliveira?

— Ela é bem mais, Cardoso, bem mais…

Fabumi era muito inteligente, mas em certas situações ele parava de pensar. Antes que fizesse uma besteira eu tomei a iniciativa:

— Vocês gostariam de levar alguns cajus? Estão bem no ponto para fazer suco.

— O suco dessa negra deve ser bem gostoso, não é Manuel?

— Bem docinho, aposto.

— Muito obrigado, os senhores tenham uma boa tarde.

Fabumi ardeu sem precisar pegar fogo. Vi que ele ia fazer uma estralada. Mas se ele dissesse alguma coisa os dois morcegos teriam conseguido o que queriam: motivo para espancar dois pretos em um domingo sem movimento. Pior, teriam revistado o cesto e encontrado o contrabando. Caso Fabumi tivesse dado conta de enfrentar os dois, eles chamariam reforços ou depois poriam a polícia toda atrás dele até encontrá-lo.

Todos nós sabíamos que o chefe da Guarda, o terrível Major Vidigal, odiava negro fugido. Encarava como um desrespeito. Se o negro tivesse batido em um homem dele então, o Vidigal iniciava uma caçada sem fim até por a mão no escravo para tomar uma surra inesquecível. Como dizia a música:

98 –

Avistei o Vidigal

Fiquei sem sangue

Se não sou ligeiro

O quati me lambe

Afora o susto, nosso negócio ia bem. Quando a carga chegava, o dono da venda mandava aviso pro canoeiro e este enviava um moleque até a Alfândega dizer a Fabumi que “domingo era dia bom para passeio”. Aí o preto mina me encontrava em pela cidade e me avisava que naquele domingo eu iria sair com minha cesta de cajus. Depois tinha que ser bem lavada para não ficar cheirando a perfume francês. Fabumi pedia que eu guardasse todo o dinheiro. Mulher sempre desperta menos suspeita e o ambiente da Alfândega era pesado, cheio de espertalhões.

Quase todos os dia, ao entardecer, ele aparecia e me levava para uma das praias da cidade. Da Lapa, Santa Luzia, da Misericórdia, Dom Manuel, do Peixe, Prainha, Valongo e outras mais. Também me levou numa lagoa, o Boqueirão do Passeio. Ali encontrava algum tipo de refúgio. Podia ser uma pedra grande, uma árvore, um pedaço de mata. Eu desembrulhava a esteira que tinha levado enrolada no cesto e a gente namorava ouvindo as ondas se desmanchando em espuma branca. E não era só as ondas que se desmanchavam. Era tão bom que nem parecia que estávamos em terra de branco. Fabumi vinha com um farnel. Não era comida de escravo, mas coisas que só os brancos comiam, feitas aqui ou que mandavam trazer lá de fora: pão, manteiga, queijo, maçãs e vinho. Aquele preto sabia fazer as coisas direito. Fingia brincar com ele, dizendo que estava gastando o dinheiro da nossa liberdade. Mas resposta nunca faltava:

— Lina, vou te dizer duas coisas. A gente tem que ter um pouquinho de alegria para ter coragem de continuar a viver.

— E a segunda coisa?

— Bem, a gente já tem que ir treinando pra quando a liberdade chegar…

Depois disso, o sorriso dele terminava com qualquer discussão. Eu me rendia como se um punhal de dentes brancos tivesse sido apontado na minha direção.

99 –

Rosa ainda não era Rosa. Mas ia melhorando. Aos poucos voltou a falar. Os meninos faziam de tudo. Joaquim trouxe uma sandália que tinha feito na sapataria. Rosa resmungou:

— Moleque, você não sabe que escrava tem que andar descalça, metendo o pé em tudo quanto é sujeira do chão?

— É pra você lembrar que não vai ser escrava pra sempre, um dia você vai ser livre. E vai colocar esses pezinhos na sandália que eu fiz pra você.

Camundongo atacava de outro jeito. Aquele menino sabia tudo quanto era lundu e modinha cantados na cidade. Ele começava com coisas de amor puro:

Beijo a mão que me condena

a ser sempre desgraçado

obedeço ao meu destino

respeito o poder do fado

Que eu ame tanto,

sem ser amado,

sou infeliz,

sou desgraçado.

Rosa nunca achava muita graça nas modinhas. Dizia que amor de branco era que nem o leite que os escravos de ganho vendiam, cheio de água. O sujeito dessa música, por exemplo. Ou ele conquistava de vez essa mulher ou partia pra outra em vez de ficar se lamentando. Respeitar o fado uma ova. Mas Camundongo não desistia, atacava de lundu, cada um mais forte que o outro. Começava com uma música louvando uma mulata, ainda de forma respeitosa. O autor, pelo jeito muito apaixonado, quer descrever uma tal de Lucinda, que usa tranças grossas e tem tanta luz nos olhos que ele diz não ser capaz de descrever. Diz que

100 –

todas as mulheres invejam a pele trigueira de sua amada, o que eu duvido muito nessa terra de brancos. De qualquer forma, continua a elogiar: a voz, os risos, o corpo. Por fim, desistindo, beija os pés dela. Rosa já se animou um pouco mais com essa. Mas ela gostava mesmo era quando Camundongo cantava uma assim:

Amor comigo é tirano

Mostra-me um modo bem cru

Tem-me mexido as entranhas

Que estou feito angu

Tem nhanhá certo nhonhô

Não temo que me desbanque

Porque eu sou calda de açúcar

E ele apenas mel do tanque

Nhanhá cheia de cholices

Que tantos quindins afeta,

Queima tanto a quem a adora

Como queima a malagueta

— Eita iaiá cheia de pimenta, mais quente do que a feijoada da quitandeira, não é não?

Eu, Joaquim e Camundongo nos olhamos: Rosa estava de volta.

101 –