ADELINA (ROMANCE) CAPÍTULO 14
Marcos Alvito
Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar
Capítulo 14– 1822– Adelina
Não houve um momento tão importante na trajetória da nova nação. Dom Pedro I, soberano e libertador, apareceu diante do público e arrancou do braço a fita amarela onde se lia “Independência ou Morte”. Não era mais necessária. Quatro dias antes, em São Paulo, ele havia afirmado o rompimento definitivo com Portugal. O jovem príncipe liderou a resistência às Cortes de Lisboa. Na prática, a metrópole queria anular o Reino Unido e recolonizar o Brasil. Alguns grupos reagiram fortemente. Proprietários de terras teriam que voltar vender seus produtos a preços baixos no regime de monopólio. Comerciantes haviam bancado a vinda da Corte e agora estavam sendo prejudicados pela diminuição do volume de negócios. E burocratas estavam descontentes com a medida que extinguia órgãos criados por D. João VI. Todos tinham medo da anarquia e viviam apavorados com o fantasma de São Domingos. Temiam que um clima de desordem levasse a uma revolta escrava e um banho de sangue. Ajudado por José Bonifácio, D. Pedro acabou por chefiar o processo que desaguou na Independência.
Enquanto as atenções dos presentes ao Real Teatro de São João estavam fixadas no jovem monarca, meus olhos apontavam em outra direção. Para mim, Violeta era o Brasil. O que poderia ser. A beleza sem esforço, como uma respiração. A inteligência livre de convenções. Era alegre sem ser vulgar, elegante sem arrogância. Tudo envolto na graça inexplicável de um par de olhos castanhos.
O teatro é belíssimo, o interior bem arranjado e arejado. Os camarotes terminam em um gradil dourado que permite a visão das mais lindas presenças femininas da Corte. O camarote imperial é tão bem decorado quanto o dos melhores teatros europeus. É o espaço de sociabilidade da camada alta. Aqui fazem-se amizades e alianças, começam namoros oficiais e clandestinos, são fechados acordos, negócios, circulam notícias, nascem fofocas. Havia sempre dois espetáculos, dentro e fora de cena. E muitas vezes o segundo despertava mais atenção.
É um palco político de primeira grandeza. Todas as etapas da independência foram encenadas aqui. Desde as primeiras respostas de – 102 –
D. Pedro à pressão das Cortes. Foi aqui, na noite de 10 de janeiro, que celebrou-se a resolução do príncipe em não retornar a Portugal. Ele e a princesa apareceram em traje de gala para o entusiasmo dos presentes. Todos cantaram o hino nacional e no intervalo de cada ato o público chamou seus oradores prediletos. Bernardo Carvalho, um desembargador, foi o mais aplaudido ao dizer: “Hoje quebraste os laços que vos ameaçam sufocar. Hoje assumis a verdadeira atitude de homens livres.” O hino, composto por Dom Pedro, voltou a ser cantado várias vezes. D. Leopoldina e ele foram aclamados.
Mas eu estava olhando para ela. Não fosse eu um estrangeiro, com um cargo de peso, amigo do rei, seria uma ousadia levar uma mulata a uma cerimônia daquelas. Narizes se levantaram, olhos se arregalaram e cochichos se seguiram à nossa passagem. Violeta já estava acostumada. Era um pássaro de grandes alturas. O que não queria dizer que estivesse conformada com a mediocridade e a covardia. Seus comentários sobre a ópera foram de conhecedora. Nos divertimos com a infantilidade da peça portuguesa que foi apresentada na sequência. Era um daqueles casos em que se ri da falta de graça. Ela brincou:
— Nos servem vinho francês e em seguida parati.
— Se os atores tivessem tomado umas doses de cachaça talvez tivessem mais inspiração.
— Não. A arte é a soma do talento com o trabalho. Se um dos dois falta, e aqui faltam ambos, não há o que fazer.
— Mais uma vez eu tenho que me render à sua opinião.
Violeta não é só doçura. Ao contrário da maioria dos brasileiros, que parecem estar enfeitiçados por D. Pedro, não tem nenhuma simpatia por aquele que chama de “o príncipe português”. Ou então de Pedroca. Não esquecia de uma recepção no Palácio Real a que fora levada por Neukomm. O príncipe passou a noite a flertar com ela sem rebuços. Ficou envergonhada e depois furiosa:
— Como a maioria dos brancos ele pensa que uma mulata é uma mulher sem moral, feliz em aceitar qualquer proposta. – 103 –
E não era somente isso que tinha contra ele. Ardorosa republicana, lembrava que no ano anterior, este mesmo D. Pedro, juntamente com o Conde dos Arcos, havia liderado um violento ataque a uma assembléia popular reunida na Praça do Comércio. A multidão exigia que D. João VI permanecesse no Brasil, adotando a constituição espanhola. Os soldados reprimiram a reunião, levando a prisões, vários feridos e três mortos.
Minha amiga era leitora dedicada de novos jornais, todos oposicionistas. Tinham surgido no ano anterior, momento de grande agitação política: o Revérbero Constitucional Fluminense, o Despertador Brasiliense e o admirável e satírico A Malagueta. Ela me transmitiu este gosto. O Despertador Brasiliense tinha um editorial que falava em acender no ânimo dos brasileiros o “amortecido fogo da Liberdade”. No Revérbero o tom era ainda mais exaltado. Seria melhor derramar sangue pela Liberdade do que “ir verter covardemente esse mesmo honrado sangue sobre vis cadafalsos em honra do Despotismo”. A publicação não é assinada, diz-se escrita por “dois brasileiros amigos da nação e da pátria”. A Malagueta defende as mesmas ideias em tom apimentado como indica o seu título. Fiquei alegre ao ver como epígrafe uma frase de Rousseau: “Quando se diz acerca dos negócios do Estado: — Que me importa? É que o Estado está perdido.”
Homem da Revolução, vi que a destruição da Bastilha ainda ecoava através dos mares. Mesmo com todas as dificuldades para isso existentes no Brasil. Mas ficava em uma posição difícil. Tudo aquilo fazia reavivar em mim a chama das ideias revolucionárias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Podia torcer por esta corrente radical o quanto quisesse. Mas era empregado da monarquia de um país dominado por fazendeiros e grandes comerciantes, aqui incluídos os traficantes de escravos. Estes dois grupos eram meus verdadeiros patrões. Foram eles que financiaram a monarquia portuguesa. A Corte aqui desembarcou em situação de desgraça, e os brasileiros endinheirados sustentaram a família real e a nobreza. Os chamados homens bons da terra cederam casas e mansões para a residência dos nobres e até mesmo do rei. Pagaram e continuam pagando pelo luxo das festas e cerimônias da realeza. Garantem o soldo das tropas de mercenários que protegiam D. João VI e agora fazem o mesmo com seu filho e sucessor. – 104 –
Em troca, receberam numerosos títulos de nobreza e foram honrados com milhares de comendas de diversas ordens. Muitos que só conheciam a Bíblia pela capa foram sagrados comendadores da Ordem de Cristo, até os que haviam enriquecido graças ao vil comércio de seres humanos. D. João chegou a recriar a ordem militar da Torre-Espada para facilitar a outorga de honrarias. O que demonstra uma astúcia que poucos esperavam que tivesse. Como pagamento, muitos apoiadores do rei alcançaram rendosos postos na administração, pensões e vários tipos de vantagens, regulares e extraordinárias. As famosas mercês. Violeta sempre brincava:
— Ao rei, enquanto se lhe beija a mão, se lhe mete a mão no bolso.
Um bom exemplo está no próprio Palácio de São Cristóvão. Ele foi graciosamente cedido a D. João VI pelo rico comerciante Elias Antônio Lopes. Amor com amor se paga. O negociante de grosso trato foi regiamente recompensado. Virou Comendador da Ordem de Cristo e Fidalgo da casa real. Tornou-se deputado da real junta de comércio, recebeu a mercê de alcaide-mor e senhorio de uma vila na comarca do Rio de Janeiro, posições bastante rendosas. Ao morrer, sua fortuna alcançava mais de trinta contos de réis em imóveis, papéis no valor de quarenta contos de réis e investimentos em atividades comerciais que valiam mais de cem contos de réis. Sem falar em cento e dez escravos. Era um dos homens mais ricos da Corte. Elias Antônio Lopes foi também honrado com o título de Conselheiro de Sua Majestade e Alferes de Infantaria de Linha. Sem jamais ter empunhado uma espada. Como se diz por aqui, é dando que se recebe.
Esse é o Brasil. Onde o rei e os ricos vivem se ajudando, os pobres vivem ao Deus dará e os escravos sobrevivem como podem. Um país conservador e atrasado, onde a educação pública é praticamente inexistente. Onde as mulheres são animais domésticos. Em que a escravidão é vista como natural e necessária, empregando-se os meios mais cruéis para que seja mantida. Com uma multidão de padres, uma igreja a cada esquina e nenhuma religião. Com muitas superstições e nenhuma ciência. Uma nação de analfabetos, em que uma minoria aprecia a arte europeia e ignora ou despreza as produções originais do país. Onde a violência é a única língua compreendida por todos os grupos da sociedade.
Nesta terra, mesmo os rituais cristãos são revestidos de violência. Esqueçam-se do “Amai-vos uns aos outros”. A mais forte expressão do cristianismo – 105 –
por aqui é revestida de um forte tom de vingança. Sábado de Aleluia começa com palhaços divertindo a multidão ansiosa. Ao meio-dia, no instante em que o sino da Capela Imperial anuncia a ressurreição do Cristo, a cidade entra em erupção. É a hora do enforcamento e da queima do Judas. Sobem os fogos de artifício, salvas de canhão são detonadas dos navios e fortalezas, tocam os sinos de todas as igrejas e a populaça enlouquece. O período de paz da Quaresma termina com um contraste brutal.
Nos bairros pobres, na noite anterior prepara-se um judas de palha vestido com roupa de homem. Adiciona-se uma máscara com boné de lã no lugar da cabeça. Colocam-se bombas nas coxas, nos braços e na cabeça. O boneco porta uma bolsa cheia de dinheiro e no peito um cartaz: “Eis o retrato de um miserável, supliciado por ter abandonado seu país e traído seu senhor.” Uma árvore nova arrancada da floresta é feita de forca. Nos bairros mais ricos são contratados um costureiro e um fogueteiro. Aqui o divertimento aumenta pela presença do Diabo, que serve de carrasco. Tudo é preparado de forma a que Ele escorregue a cavalo em cima do pescoço do Judas. Satanás é negro e por vezes representado como um criminoso todo acorrentado. E termina como uma última explosão, que lança fragmentos para todos os lados.
Este antigo costume esteve proibido desde a chegada da Corte, pois o rei temia os ajuntamentos populares. Apenas recentemente voltou a ser permitido. Todas as classes participam com paixão. Não há quem vibre mais com este espetáculo de mau gosto do que a população escrava. Escravos e escravas de ganho se comprimem junto à árvore onde o Judas está pendurado. Esperam o momento em que poderão chutá-lo, socá-lo, destruí-lo. Também as crianças participam. Negrinhos e negrinhas, cada um com um pedaço de madeira na mão, castigam impiedosamente bonecos de pano que para eles fazem a vez do Judas, arrastado pelas ruas. Em quem será que estão batendo?
Decerto estão se vingando das violências que sofrem. Sebastião me serviu de guia mais uma vez e deu-me outra explicação. Fez-me notar que Judas simboliza para os escravos o feiticeiro que lançou sobre eles a maldição que fez com que perdessem a liberdade. A derrota de Judas seria um primeiro passo para a restauração da boa vida. Pois para boa parte dos negros a vida é naturalmente boa e se há algum problema é por causa da existência de um feitiço ou da insatisfação das divindades.
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Eu também me sentia enfeitiçado. Muitas vezes perdia o sentido do que estava falando, entregue ao prazer de olhar para ela e ouvir sua voz como se música fosse. Pedia para que repetisse e tinha direito a uma doce reprimenda:
— Como você é avoado, Jean-Baptiste.
Avoado não sou, mas bem que estava nas nuvens. A maneira como ela falava Jean-Baptiste. De uma forma elegante e respeitosa, com uma pontinha de irreverência e mistério. E olhos de rio, de águas sempre novas. Onde eu tinha receio de me afogar.
Violeta era uma grande conhecedora da flora e também de pássaros, que vivia a apontar para mim. Me mostrou as belezas do Saíra-sete-cores, do Tiê-sangue e do humilde e simpático Tico-tico. Isso a aproximou de Sebastião. Ela tirava dúvidas com ele, que tão bem conhecia a natureza da região. Ficaram bons amigos. Diziam que iriam me levar para eu conhecer os segredos da cidade negra. Conspiravam, decidiam e me arrastavam para novas aventuras. Neste dia estavam elétricos, risonhos.
— Jean-Baptiste, pare de trabalhar, vamos sair.
Depois de dias observando as ruas, tinha decidido ficar uma semana em casa . Desejava transformar desenhos e anotações em aquarelas. Para aumentar a coleção que seria a base do meu livro. Mas Violeta queria e quando Violeta queria não havia mais nada a fazer. Quando embarcou na sege eu tinha vontade de dispor de tela e pincel e torcer para que fossem capazes de eternizar a beleza daquela mulher. Já lamentava o fato de que aquela viagem fosse terminar.
Ao menos revelaram que íamos para a cidade. Era uma viagem curta, mas naquele dia demorou bem mais. Parece que todos haviam resolvido sair de casa, as ruas estavam fechadas por uma multidão compacta. Por fim conseguimos chegar. Violeta e eu descemos enquanto Sebastião estacionava a sege e prendia os animais. Ela me fez subir a um sobrado onde havia alguns amigos e amigas, a quem me apresentou como Monsieur Debret, pintor de História da Corte. Para mim o suspense continuava, ninguém me dizia o que iria ocorrer. Decerto a pedido de Violeta.
Já estava há um tempo nesta cidade para saber que aquilo parecia muito com um dia de procissão religiosa, mais uma festa do que qualquer outra coisa. Colchas de seda e de damasco coloriam as janelas, abarrotadas de pessoas. Eu não estava errado. Mas não estava preparado para o que vi. Decerto não faltaram os – 107 –
santos em seus andores, os emblemas sagrados e a pompa habitual dessas ocasiões. As categorias profissionais competiam entre si para promover a celebração dos seus respectivos padroeiros. Hoje era dia dos ourives, uma corporação bastante rica.
O que tornava este cortejo diferente era o rancho das baianinhas. Um bom número de moças negras vinha à frente da procissão fazendo suas danças. O traje era excepcional. Saias presas à cintura, muito bem ornadas de renda, que chegavam somente até a metade da coxa. No pescoço, um colar de ouro ou corais, miçangas em alguns casos. Na cabeça um turbante negro bem esticado e engomado. Portavam uma camisa quase transparente com golas e mangas também rendadas que forneciam uma visão bem generosa dos seios juvenis. Nos pés, chinelas de salto alto onde só cabiam os dedinhos, deixando o calcanhar de fora. Uma leve capa de pano preto jogada sobre os ombros. Os braços, enfeitados com argolas de metal, ficavam de fora para serem vistos. O desfile de corpos femininos ocorria em meio a uma ensurdecedora chuva de fogos de artifício.
A passagem dessas moças provocava um delírio na população masculina que eu hesitaria em qualificar de religioso. Alguns não ficavam satisfeitos em vê-las uma vez e iam pelas ruas, subindo à casa de amigos quando possível, para desfrutar do espetáculo o maior número de vezes. Havia quem alugasse casa para aquele dia. Se fosse doença, seria a febre das baianas.
Fomos levar Violeta em casa. Sebastião riu quando ela descreveu o meu espanto diante da cerimônia:
— Pois é, Sebastião, Jean-Baptiste achava que estava começando a entender o Brasil.
Não me importei. Gostava de ouvi-la falar. Os sultões escolhem mulheres para o seu harém graças aos olhos e à voz. Na tradição islâmica exige-se delas o uso de véu a encobrir a beleza do rosto. Se fosse eu um sultão, nenhum véu seria capaz de me ocultar a beleza de Violeta. Seria o feliz sultão de uma só mulher.
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