/ADELINA (romance) – Capítulo 2

ADELINA (romance) – Capítulo 2

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 2 – 1816 – Debret

 

Segurava um pincel banhado em sangue. Estava montado em um animal imaculadamente branco. Meu filho portava o mesmo chapéu que Napoleão, a meia-lua cuja visão aterrorizou os monarcas de toda a Europa. À sua volta, um turbilhão de negros. Africanos com suas roupas coloridas, bonés, cartolas, chapéus de todos os formatos. Uns levavam cestos com galinhas ou perus, muitos carregavam água em tonéis de madeira, outros equilibravam pesadas sacas de café na cabeça. Misturavam-se a eles escravas com diferentes penteados, algumas com tatuagens ou pinturas na face. Eram muito jovens, assim como os homens. Todos mais ou menos da idade de Honoré. Meu filho tentou se comunicar com eles. Cada um falava uma língua. Ninguém se entendia. Ninguém o compreendeu. Ele se cala. Agora posso ver seu rosto de perto. Era como se o sangue houvesse desaparecido, como se sua pele fosse da cor de uma tela em branco. Os olhos, onde brilhara tanta vida, é que se mantinham os mesmos.

O corpo coçando dos mosquitos, a cama empapada em suor. Acordei com o canhão das cinco da manhã. Ele autorizava os navios se aproximarem da costa e despertava a porção da cidade que era obrigada a trabalhar sob a ameaça do chicote. Há dois meses eu também chegara, junto com meus compatriotas, no pequeno navio de três mastros e bandeira americana, o Calpe. Um transporte barato e adequado à nossa situação de exilados em busca de uma nova chance.

Nosso veleiro só pudera entrar na Baía depois do referido disparo, ao qual se seguiram centenas de outros. Havíamos chegado no dia do funeral da rainha de Portugal. Nos aproximamos da cidade ao som dos canhões que pranteavam a morte de D. Maria, de cinco em cinco minutos. Entrar nesta linda Baía no momento em que o sol nasce, cercada de florestas salpicadas de casinhas brancas, dava a tudo um aspecto repousante e paradisíaco. O contraste com os disparos incessantes e a visão dos fogos de artifícios nas igrejas nos deixou tontos. Não foi nada perto do que nos esperava ao desembarcarmos.

Tinha ido dormir tarde na noite anterior. Passei horas derramando meus pensamentos em um mar de vinho nesta pensão infecta onde estou alojado. A cabeça latejava e não era culpa da bebida. Uma pergunta martelava meu cérebro:

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Jean-Baptiste, como é que você veio parar nesse fim de mundo aos quarenta e sete anos? Ainda por cima para servir a um rei português gordo, estúpido e atrasado?

Eu sabia a resposta. O que mais podia fazer? Com Napoleão na mão dos ingleses, com a derrota definitiva de nosso protetor e patrono, minha permanência em Paris era insustentável. Honoré morrera aos dezenove anos depois de arder em febre durante meses. Claire terminara um casamento de mais de vinte anos com a frieza e a rapidez da guilhotina. Os boatos se multiplicavam. Paris respirava medo. Temia-se a repetição do “Terror Branco”, a perseguição aos bonapartistas. Há sete anos que eu me dedicava a pintar para Bonaparte. Vivi um pesadelo.

Estava trancafiado em casa, evitando as ruas e os cafés. David me alertara que uma prisão dos artistas ligados ao imperador era uma questão de dias. Nos viam como responsáveis por fomentar o culto de Napoleão. Como se Napoleão precisasse. Bonaparte era amado pelo povo francês, apesar do seu sotaque italiano, que levava os detratores a chamá-lo de Buonaparte. Ele achava graça. Quando nos encontrava, fazia questão de contar a última história inventada acerca dele, até mesmo a última calúnia. E sempre concluía da mesma forma:

Tudo isso vai passar, são nuvens de palavras sem importância. Mas o que vocês retratarem nos seus quadros ficará para sempre.

David me preparou para ajudá-lo na criação de grandes quadros exaltando as conquistas e o caráter do imperador. Era aluno do meu primo mais velho desde os catorze anos de idade. Ele era um fervoroso adepto da Revolução e tinha fé em Bonaparte propagá-la por toda a Europa. Eu tinha a mesma crença. A Queda da Bastilha ocorrera quando eu tinha vinte e um anos. Nós passamos anos felizes pintando para o imperador. A volta dos Bourbon, a prisão de Napoleão na distante ilha de Santa Helena, a total incerteza, tudo parecia incompreensível. Jacques-Louis buscou refúgio na Bélgica. Me aconselhou a abandonar o país o mais rapidamente possível.

Contemplei a possibilidade de viajar à Rússia para me colocar a serviço do Czar Alexandre I. Estava arruinado financeiramente e as condições materiais eram excelentes. Mas não suportei a ideia de servir a um inimigo do nosso imperador. Durante um bom tempo o soberano russo fizera jogo duplo. Ademais, o inverno

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assassino da Rússia não havia dizimado somente os nossos exércitos, mas também o meu filho. Não podia aceitar.

Fui convencido por Lebreton a viajar ao Brasil. Se tinha que colocar a minha arte a serviço de um déspota, ao menos que fosse numa terra distante e desconhecida. Como seria viver nos trópicos? Os que iriam me contratar haviam zarpado para o Brasil às pressas, apavorados com a chegada das tropas de Junot. De certa forma, era ainda o imperador que me fornecia aquele trabalho. Na verdade, de início não era uma posição garantida. Quando embarcamos no Havre, nenhum de nós tinha certeza do que nos aconteceria. Íamos chegar e nos colocar à disposição de Vossa Alteza. Estratégia arriscada, mas era a única de que dispúnhamos naquele momento. Confiávamos na força da arte francesa, na admiração de que nossa civilização desfrutava, mesmo junto aos povos que, por motivos políticos, nos odiavam.

Tomei a decisão pouco antes do Natal. Um Natal solitário, gelado e cheio de fantasmas. Tive que enfrentar os últimos dias daquele nefasto 1815. O túnel invernal parecia infinito. Paris estava coberta com um manto branco. Eu, que sempre achara tão linda a neve, não conseguia apreciar a paisagem. Nunca me importei com o frio. Era a falta de luz que me afligia, as longas noites. Os dias que mal começavam já terminavam. Luz é tudo para um pintor.

Faltava Claire, que tinha luz no nome e que sempre fora a vida da nossa casa e a casa da minha vida. Claire era da Bretanha, terra distante e extrema, voltada para o oceano. Repetia com orgulho que havia sangue celta correndo em suas veias. Seus cabelos cor de fogo aqueciam minhas mãos. O sotaque era minha música cotidiana. Eu a amava como um pintor de paisagem diante de uma montanha. Nunca me perdoou pela morte de Honoré. Foi ele que se voluntariou para lutar pelo Imperador, interrompendo seus estudos de pintura. Claire acreditava que eu poderia tê-lo impedido usando dos meus contatos. Com o imperador marchando com suas tropas para conquistar o mundo?

Claire não se despediu. Desapareceu. Deve ter voltado à Bretanha. Ela sempre brincava dizendo que Paris era uma cidade seca, onde chovia muito pouco. Reclamava que o Sena era bonito mas que nada se comparava ao mar. E que só na costa da Bretanha é que se pescavam peixes de verdade. Para matar as saudades, fazia frutos-domar à moda da Bretanha. Pois a comida daqui não era grande coisa. Imagine só: criticar a culinária de Paris! O que ela diria se estivesse aqui, neste ambiente lúgubre,

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mal iluminado, com réstias de cebolas penduradas na parede à maneira de decoração, tomando esta sopa inclassificável cheia de pimenta e bebendo este líquido que hesito em chamar de vinho?

Feliz, ficava nua, de costas, para que eu a contemplasse. Minhas mãos tocavam todo o seu corpo, controlando a avidez esfomeada com que alisava aquela pele. Naqueles dias ela não reclamava das minhas mãos endurecidas pelo contato com as tintas. Ali, deitada, sua placidez contrastava com meu sentimento. Mais do que prazer, Claire sempre me colocou diante do inefável, desse encanto inexplicável da beleza. E agora, o vazio, o abismo. O silêncio. A casa imóvel. O luto. Um coração frio como uma estepe russa.

Minha única amiga é esta garrafa de vinho barato. Este velho africano que espera recolhido na cozinha, pronto para me servir ao mínimo gesto, não o faz por gentileza ou senso profissional e sim por medo do chicote. Que terra bárbara é esta aonde homens são donos de homens? Não suportei a companhia dos meus amigos de viagem. Hoje quis estar sozinho a pensar. Talvez tenha sido uma má ideia recusar o convite deles para irmos no único restaurante decente da cidade, logicamente francês e muito caro. E não desembarquei com muito dinheiro.

Agradeço ao negro com a palavra que me ensinaram:

Obrigado

Minha pronúncia deve ser horrível. Mas o negro não está em posição de rir. Apenas abaixa a cabeça e responde alguma coisa sem levantar a voz. Retiro-me para meus aposentos. Decido fazer a única coisa que sei fazer. Pintar. Na desordem do meu quarto, tomo meus materiais e esboço uma aquarela. Um homem, sentado, abandonado diante de uma mesa de madeira grosseira. Sem ao menos dignar-se a tirar o chapéu. Corpo inclinado, derrotado pela vida a mirar uma garrafa como uma bola de cristal. Ao fundo, um negro sem rosto.

Assim que desembarcamos, fomos apresentados a el-Rei, como gostam de chamá-lo por aqui. Com muito empenho, nosso protetor, o Conde da Barca, conseguiu marcar uma audiência imediata com Vossa Alteza. Foram, além de mim, os Taunay,

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Lebreton e Montigny. O caminho entre o porto e o palácio é interminável. É necessário atravessar uma pequena trilha em meio a um pântano. Todos são obrigados a tirarem os sapatos e meias. Foi engraçado ver nobres e figuras importantes da Corte, homens e mulheres, descendo dos carros atolados para andar com os pés na lama.

Como o Conde da Barca enfatizou, esta era a única maneira de conseguir alguma posição no Brasil. Tudo dependia da vontade do rei. Não poderíamos permanecer nesta terra sem o patrocínio real. Havíamos cruzado o oceano com esta expectativa.

Aproveitando a demora, o conde nos explicou o cerimonial. Diante de D. João VI, cada um de nós teria que ajoelhar-se, beijar a mão que o soberano estendesse e esperar que ele lhe dirigisse a palavra. Depois da conversa, iríamos novamente nos prostrar diante do rei e oscular sua mãozinha gorda. Eu, que conversava de igual para igual com o homem mais poderoso do mundo, agora teria que me curvar diante de um monarca de terceira categoria. E assim foi. Não sei o que foi mais difícil de conter, o asco ou o riso.

A primeira impressão que o soberano nos causou foi lamentável. A cabeça, enorme, avermelhada, a pele flácida do pescoço formando ondas. Lábios caídos, um ar de preguiça e desleixo. Gestos lentos, até para se coçar, o que fazia sem pudor diante de todos. As roupas não tinham o aspecto de novas e as calças estavam prestes a explodir pela pressão das coxas descomunais. Seu ventre nos dava a imaginar banquetes sem fim. Descobrimos, assustados, que o intenso olor que envenenava o salão provinha de sua majestade. Mas não era verdade, como se dizia, que os bolsos da casaca de El-Rei estivessem transbordando de pedaços de frango. Eram pequenos, no máximo neles caberiam algumas azeitonas, tão do gosto lusitano.

Todavia, tirando a ridícula cerimônia do beija-mão, o rei foi bastante simpático, pareceu ter um temperamento pacífico. Nos atendeu sentado no trono, com um pé doente descansando em um banquinho. O tratamento que tivemos foi resultado da influência do Conde da Barca. Ele havia explicado a importância da arte no estabelecimento da realeza no Brasil, terra sem tradições dessa natureza.

Sua Majestade nos prometeu a criação da Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios, o que cumpriu em 12 de agosto de 1816. A partir daquele momento passávamos a ter um cargo oficial e, mais importante, um salário anual. Fui contratado

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como professor de pintura histórica por oitocentos mil réis, uma quantia insuficiente – para uma cidade tão cara quanto o Rio de Janeiro, onde os bens da civilização são todos importados. Um caixa de vinho bordeaux custa nove mil réis. Mas logo recebi encomendas que permitiram aumentar a minha renda. Solicitaram retratos da família real e o emprego de toda a minha arte na decoração da cidade para as festas do casamento do futuro herdeiro com a princesa Leopoldina no ano seguinte.

D. Pedro, aliás, foi uma grata surpresa. Ao contrário do pai, que aos cinquenta é um ancião à beira da morte, o jovem herdeiro é um belo rapaz de dezessete anos. Pareceu-me impetuoso. É educado ao conversar sobre o reino, mas o assunto que realmente incendeia sua imaginação são os cavalos. Contou-me, rindo, que já tinha tido mais de uma dúzia de quedas. Caso eu não tivesse alegado compromissos já firmados, ele mesmo teria feito questão de mostrar seus animais guardados na cavalariça real. Embora de estatura mediana, a impressão que tive é que não cabia no palácio. É homem para viver ao ar livre, em grandes espaços, suportando com dificuldade a etiqueta que a corte exige.

Depois de cinco minutos de conversa já não me chamava de Monsieur Debret e sim de Jean-Baptiste, o que ao mesmo tempo me encantou e assustou. Seu francês não é dos melhores, mas fala de forma decidida, entremeando assuntos sérios com piadas, das quais ele mesmo ri. Ficou animadíssimo quando lhe disse que pintaria seu retrato. Não mostrou nenhum entusiasmo quanto a seu futuro casamento. Basta olhar bem nos seus olhos para perceber que ele é o que chamamos em França de homme à femmes.

Resolvi sair às ruas. Minha primeira impressão foi de estupor. Não há senhoras nos passeios nem tampouco nos balcões. Quem quiser encontrá-las deve acordar cedo para contemplá-las durante a primeira missa matinal. Cavalheiros, pouquíssimos, normalmente sendo transportados em alguma sege puxada por mulas velhas. Ou em uma cadeirinha nos ombros de dois ou mais negros.

Não há lixo nas ruas e sim alguma rua no meio do lixo, fazendo jus à fama de que o Rio de Janeiro é o mais imundo ajuntamento humano debaixo do sol. Há carcaças de cavalos, cães e gatos em variados estados de putrefação. Montanhas de detritos que às vezes são postos a queimar mas jamais recolhidos. Cascas de frutas e alimentos

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variados também se encontram no chão a apodrecer. É um paraíso para moscas e outros insetos. Pior do que tudo, escravos mortos são encontrados no meio das ruas com uma caixinha ao lado para se coletar o necessário para o seu enterro. São muitos os negros e negras que param diante dele e num gesto piedoso contribuem com uma moedinha.

Apesar do triste espetáculo da escravidão, fiquei fascinado com uma coisa. Está muito claro que estes negros e negras são de lugares bem diferentes da África, cada um com sua língua e costumes. Quem reparar nas fisionomias, no tom de pele e mesmo nos penteados e roupas, perceberá que as ruas do Rio tornaram-se um ponto de encontro de diversos tipos africanos. Quero saber o que irá resultar disso tudo, pois aqui estes homens e mulheres terão que conhecer outro mundo e aprender a viver nele. De certa maneira eu me encontro na mesma situação.

Há muitos vendedores, de leite, de galinhas, e sobretudo negras bem vestidas vendendo guloseimas e coisas para beber. O que predomina é uma turba de negros a transportarem de tudo para cima e para baixo. Muitos estão quase nus, com corpos banhados de suor sob um sol tão impiedoso quanto o da sua terra. Cantam o tempo todo em diferentes línguas. Marcam o ritmo com chocalhos, pedaços de metal ou batendo palmas. Em alguns casos há até um deles designado a tocar um tambor para marcar o compasso dos carregadores. Luiz, o dono da taverna onde estou alojado, explicou-me que isso é permitido pelo proprietário pois aumenta o rendimento dos escravos:

Sem canto e dança esses malandros não fazem nada.

O fato é que a balbúrdia é tremenda e o europeu, mal acostumado aos negros, chegaria até a ficar assustado não fosse a onipresença dos soldados da Guarda Real de Polícia. Muitos afirmam que o cérebro do negro não tem a mesma capacidade que a do branco. No caso do Brasil logo percebi que o país está sendo literalmente carregado nas costas pelos negros e negras.

E eu beijara a mão do rei deste país onde tantos seres humanos vivem seu inferno na terra.

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