/ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 6

ADELINA (ROMANCE) – CAPÍTULO 6

ADELINA

Marcos Alvito

Para os Alvitos e os Oliveiras e para Eduardo Ferreira, meu primo d’além-mar

Capítulo 6 – 1818 – Debret

Jamais pensei que fosse ganhar a vida como charlatão. Não tenho feito outra coisa senão contribuir para uma fraude. Refiro-me à cerimônia de coroação do príncipe regente como o rei D. João VI. Foram as quatro horas mais longas da minha vida. Tive que suportar uma mistura de parada militar, evento religioso e rituais absolutistas. Tudo embrulhado em religião. Começou com uma missa e terminou com um Te Deum. Havia uma infinidade de padres, monges, bispos e religiosos de todos os tipos. Fervilhavam em torno de El-Rei Nosso Senhor feito a nuvem de moscas sobre o docinho vendido pela negra de ganho. A própria data, 6 de fevereiro, foi escolhida por ser o Dia do Espírito Santo. Apropriado. Só um milagre será capaz de fazer cumprir todas as promessas de felicidade.

A festa começou no dia anterior. O anúncio da aclamação foi feito pelo Senado da Câmara com uma cavalgada sob a escolta da guarda real de polícia em uniforme de gala. Os senadores vinham com capas de seda preta, chapéus de plumas brancas e jóias preciosas. Os cavalos estavam enfeitados com fitas e penachos. Havia duas bandas, uma em cada extremo da comitiva. Pensei que fosse um baile. Fiquei impressionado ao perceber que boa parte dos músicos eram negros ou mulatos. Os africanos e seus descendentes aprendem qualquer tipo de melodia ou ritmo. E aqui estavam a se apresentar em uma cerimônia dessa grandeza.

A alegre tropa se dirigiu à residência real em São Cristóvão, onde foi comunicar a decisão há muito planejada. Não faltaram vivas, cantou-se o hino nacional e soltaram-se fogos. Depois, fizeram o mesmo no Paço Real, junto à rainha. Por fim, saíram pelas ruas lendo e afixando o edital da cerimônia a ser realizada às quatro horas da tarde do dia seguinte. Rojões espocando por toda a parte. As ruas estavam tão cheias de gente que parecia que tinham anunciado a distribuição de moedas de ouro. Até as mulheres vieram às sacadas assistir. A expectativa para o dia seguinte era tremenda. Seria o primeiro rei a ser coroado no Brasil e na América. Desfrutava-se a excitação dos dias que antecedem grandes momentos da História.

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O dia foi acordado com salvas de canhão. Vindas não somente das fortalezas em torno da Baía, mas também dos navios de todas as nacionalidades ancorados no porto.

A missa terminou depois do meio-dia. No Terreiro do Paço, espremiam-se pessoas de todas as classes. Exceto os escravos, que assistiam de longe. Havia gente nas janelas, balcões, nas torres de igrejas e mesmo nos telhados. O Paço Real foi ornado de cortinas de damasco carmesim, bem como os edifícios em torno. As senhoras estavam mais decoradas do que os prédios, e muitas vezes eram tão maciças e volumosas quanto eles. Se Claire estivesse aqui, seria difícil impedi-la de rir dessas matronas recobertas de orgulho e mau gosto.

Infelizmente, Montigny, Auguste Taunay e eu fomos os responsáveis por parte da decoração. O que dizer de dezoito arcos feitos de madeira e papelão? Em si já revelam o valor do monarca. Havia nove painéis afirmando as qualidades necessárias ao governante: Magnanimidade, Liberalidade, Sabedoria, Autoridade, Magnificência, Piedade, Religião, Prêmio e Amor da Virtude. Como esperar tudo isso do simpático, rechonchudo e desanimado homem que mal conseguia manter-se de pé durante sua aclamação?

Fomos obrigados a fabricar uma paródia histórica risível: um obelisco egípcio, um templo grego e um arco do triunfo romano. Não poderiam faltar o desfile de nobres beijando a mão do redondo soberano e o povo a agitar lenços saudando o rei. D. João VI portava uma longa veste escarlate, recamada de ouro e brilhantes. Aliás, diamantes e ouro eram abundantes no resto da vestimenta real. Um chapéu de general, cheio de plumas brancas ajudava a atenuar sua pouca altura. Quando ele assomou à varanda, os menestréis fizeram soar charamelas, trombetas e atabales, em meio ao estrondo de vivas e aplausos do povo presente. Os militares fizeram continência e suas bandas puseram-se a tocar. Até os nobres saíram da frente para que o rei fosse visto. O soberano, suando frio, sentou-se e recebeu um cetro de ouro das mãos do Conde de Parati.

Ajoelhou-se, passou o cetro para a mão esquerda e fez o juramento, tendo na mão direita um crucifixo. Em seguida os dois herdeiros prestaram juramento e beijaram a mão do pai. Da mesma forma fizeram os nobres e as demais autoridades civis e eclesiásticas. Haverá algo mais tedioso do que esta

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procissão de aduladores? A partir daí o monarca foi aclamado. Primeiro, diante da seleta platéia. Em seguida, junto ao povo pelo ministro encarregado:

— Real, Real, Real, pelo Muito Alto, e Muito Poderoso Senhor Rei D. João VI Nosso Senhor.

Tudo ao som de música, sinos badalando fervorosamente por toda a cidade, foguetes estourando e tiros de canhão suficientes para ganhar uma guerra. Enfim, o máximo de barulho que conseguiram fazer. Os rituais da monarquia portuguesa no Brasil parecem uma ópera. Temos um cenário ricamente enfeitado. Um libreto que não muda. Uma personagem central e sua antagonista, que no caso do rei é a sua própria esposa. E muita música. A ópera só não tem os fogos de artifício e disparos de canhão, aqui indispensáveis até mesmo nas cerimônias religiosas.

A papagaiada ocorreu quase um ano depois da morte de D. Maria I. Seu leal filho temia tomar posse antes que a alma da rainha tivesse transposto o Purgatório. Talvez ainda estivesse com medo do fantasma da mãe, pois estava muito nervoso durante a cerimônia e esqueceu-se de tirar o chapéu na hora certa. Não temia somente os perigos vindos do outro mundo. A presença de batalhões de infantaria e cavalaria espalhados entre a massa do povo era uma garantia contra um eventual motim organizado por portugueses. Muitos estavam descontentes com a sua permanência no Brasil. Ele havia feito a promessa de retornar assim que estivesse tudo em paz.

A única parte interessante da cerimônia deveu-se ao Juiz do Povo. Segundo a tradição, deveria estar presente um advogado e representante do povo. Foi ele que fez três perguntas ao Rei. O soberano tem que afirmar que manterá o apoio à Religião, às Leis e aos privilégios do povo. Depois que responde afirmativamente, o Juiz fala em voz alta: “Então, vós reinareis”. Nesse momento, o magistrado dirige-se à multidão, contando das promessas do rei e proclamando-o soberano. A parte da populaça nesse teatro é singela. Consiste em gritar: Viva El-Rei. As vozes são logo abafadas por salvas de canhão vindas da artilharia, da esquadra posicionada na Baía e das fortalezas durante tanto tempo que pensei que fosse ficar surdo, louco ou os dois.

Afora o desgosto e o mau gosto, a incumbência de decorar a festa, de vesti-la de uma capa de civilização, representou uma coroação também para mim. Agora me sinto, de fato e de direito, não somente o professor de pintura histórica de uma

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academia que só existe na promessa. Mas o verdadeiro pintor da corte portuguesa no Brasil. Ano passado, depois da morte do Conde da Barca, nosso protetor, temi por minha sorte. Meses depois, todavia, fui o responsável pela decoração relativa à chegada da princesa real Leopoldina ao Rio de Janeiro. Cabe a mim pintar os membros da família real. Minha situação financeira melhorou e hoje eu poderia me mudar do Catumbi para qualquer lugar da cidade que escolhesse. Mas não abro mão da calma para pensar, escrever e pintar. Sem falar na vista aprazível das montanhas e matas.

Segurando o riso, para não aparecerem seus dentes de marfim, Sebastião me passa o jornal. Ele sabe que é uma leitura capaz de despertar minha ira, por isso acha graça. Aqui não há jornais. Apenas alguns pedaços de papel, cuja maior utilidade reside em embrulhar o frango ou o pedaço de porco. Tomemos, por exemplo, esta Gazeta do Rio de Janeiro. Meia dúzia de notícias do estrangeiro com meses de atraso: em fevereiro, noticia-se o que ocorreu em Paris em outubro do ano anterior. Toda e qualquer efeméride ligada a sua majestade e aos membros da Corte portuguesa exilada nos trópicos. Curiosidades. Nome dos barcos que chegaram e saíram do porto do Rio de Janeiro. Aqui, a selvageria habitual. Em meio a embarcações que trazem vinho e farinha de trigo ou bacalhau, comunica-se a chegada dos navios negreiros e de sua carga, com a maior naturalidade: escravos. E fico pensando que o registro da chegada do Calpe, dois anos atrás, deveria conter a anotação: artistas franceses exilados, desesperados por uma posição. Preço de ocasião.

A seção intitulada “Avisos” continha o inaceitável. Em sua maioria são pequenas notas comerciais oferecendo produtos que vão de livros a navios, sem falar em engenhos, padarias e imóveis em geral. Há também a notícia de existência de determinadas lojas de louça ou de tecidos. Em meio à miscelânea, existem anúncios de compra e venda de seres humanos.

Vende-se uma crioula de 16 anos, com princípio de costura, cozinha e engoma liso, hábil para todo o serviço de casa, sem vício algum, na rua dos Pescadores, número 25.

Que tal um mulato de 19 anos, bom para cocheiro de sege e que também sabe cozinhar e fazer o serviço de casa? Ou o moleque que já aprendeu a arte de

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barbeiro e cabeleireiro e pode ser comprado na rua das Violas número 14? Há também duas crioulas de São Tomé, com 14 e 15 anos, bem prendadas, sabendo fazer renda, costura e todo o serviço de casa. Vai? Há quem seja ainda mais bruto, como este Joaquim José Ramos, que anuncia seu desejo de alugar “escravos, machos ou fêmeas”. Tão simplesmente.

Em sua maioria são jovens, que neste infame mercado têm mais valor, mais vida para arder. Na mesma seção, temos a prova de que resistem a esta condição, arriscando-se a fugir:

26 do corrente fugiu um negro de nação, por nome Gonçallo, meio mulato, zambo das pernas, e com algumas faltas de cabelos na cabeça, caiador e borrador, e ia vestido com calças de ganga, colete e vestia pano preto, quem souber do dito negro, o poderá entregar a seu senhor na Santa Casa de Misericórdia, ou na rua de São Pedro número 13, que se dará alviçaras.

Por onde andará este Gonçallo das pernas tortas e que parece não ser mais um garoto? Somente quando fogem ou desaparecem, como está nos anúncios, é que têm direito a nome e outras caracaterísticas: os dentes que faltam, os ferimentos, as deformidades, as cicatrizes, os vícios e hábitos. O que terá levado esse aprendiz de pintor a decidir arriscar tudo pela liberdade? Os soldados da Guarda Real de Polícia, com seus fuzis e chicotes, irão caçá-lo e surrá-lo assim que o encontrarem. Sofrerá dezenas de chibatadas, a pele das costas a correr abundante sangue. Sobre os ferimentos, será despejada a mistura de vinagre e pimenta, para evitar a gangrena, já que ninguém quer perder a propriedade. Se escapar das fardas azuis, será perseguido por um verdadeiro exército de caçadores de recompensas que sai todo os dias às ruas atrás de negros e negras em fuga. Os praticantes dessa inglória profissão levam no bolso as características dos procurados pelos quais se oferecem recompensas, uma corda nas mãos firmes, olhos atentos e a vontade de ganhar o pão às custas da desgraça alheia.

Talvez Gonçallo consiga vencer todos esses inimigos e escape para as florestas que cercam a cidade. Pelo que ouvi dizer, a algumas horas de caminhada, em trilhas quase invisíveis abertas na mata fechada, estão sítios que reúnem negros e negras fugidos. Chamam-se quilombos e, embora sejam perseguidos incessantemente pela Guarda Real de Polícia, nunca são totalmente extintos. Soube que há

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muitos numa região chamada Jacarépaguá. Esta pequena chama de liberdade a arder em meio ao obscurantismo absolutista é para mim uma esperança.

Da janela da minha casa, vejo uma negra caminhando com dificuldade por causa de um ventre de sete, oito meses. Ela tem uma cicatriz no lado esquerdo do rosto e o olhar não demonstra a alegria que seria de se esperar de uma futura mãe. Um motivo fica claro em outro odioso anúncio que leio esta manhã:

Quem tiver para vender uma preta com cria e bom leite, rapariga e de bons costumes, dirija-se à rua Direita, número 37.

Não consigo crer que neste país as mulheres livres, de posses, negam-se a amamentar os próprios filhos. Para tal, valem-se de uma ama de leite. Uma negra com um filho pequeno — que no anúncio é chamado de cria, como se fosse um filhote de animal — passa a ter de amamentar também o filho ou filhos de sua dona. Não é preciso ter muita imaginação para saber quem será amamentado primeiro. Nem que algumas vezes o filho ou filha da negra venha a ficar sem o leite da mãe. Creio que nenhuma instituição derivada da escravidão representa melhor seu caráter abjeto de parasitismo e desumanidade. Sem falar na proximidade e no vínculo que a criança irá estabelecer com a mãe preta, oriunda de uma cultura mais atrasada e carregada de superstições. Em seu Émile, Rousseau já dissera: “Aquela que amamenta uma outra criança no lugar da sua é uma má mãe, como ela poderá ser uma boa ama de leite?”

Resolvo perguntar a Sebastião qual era a sua história. Ele era reservado e nada havia falado até então. Quando indaguei, ficou um pouco surpreso mas não se negou a me contar a sua vida.

— Patrão, eu nasci em uma fazenda de café da região de Vassouras. Minha mãe era Congo, quase enlouqueceu na travessia. Foi vendida para a fazenda por ser de forte constituição. O filho do patrão a violentou quando tinha treze anos. Eu nasci fraco e doente. Minha mãe teve que contar com a ajuda das outras mulheres. Meu pai fazia de conta que eu não existia e não queria me ver misturado aos outros filhos dele, nem para servir de saco de pancadas como é de costume. Certa vez, quando eu tinha uns onze anos, passamos o dia inteiro, de antes do nascer do sol até ele se por colhendo café. Braços e pernas doíam e nossas mãos estavam machucadas. O que nos deram de comida à noite não matou nossa fome, era apenas um pouco de

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farinha, carne seca e laranja. Minha mãe me deu parte da comida dela, embora eu dissesse que não.

— Como era o nome de sua mãe?

— Kiba.

— O que significa?

— Aquela que oferece, que dá. Era uma lutadora. No dia seguinte, de manhã, quando a gente ia para o cafezal ainda no escuro, pegou da minha mão para fugirmos. Conseguimos chegar até um rio, mas não tínhamos canoa. Logo veio o capitão do mato junto com seus homens. Minha mãe teve os pulsos amarrados por uma corda. Foi jogada ao chão de bruços e arrastada até a fazenda. Apanhei bastante, mas quase nada perto do que fizeram com ela. Eu era uma criança pequena e tinha ainda muitos anos de trabalho a oferecer. Tomou cinquenta chibatadas só no primeiro dia. E mais cinquenta no segundo. O senhor não pode imaginar a dor que ela sentia. Nem o quanto cada chibatada rasgava a minha alma. No terceiro dia ela pegou uma febre. Suspenderam os açoites mas já era tarde.

— Mas como você saiu da fazenda?

— Seu Philip Allen, um naturalista inglês que coletava pássaros, estava de passagem, hospedado na casa grande. Tentou impedir que minha mãe fosse castigada e não conseguiu. Ficou tão penalizado que decidiu comprar minha liberdade e levar-me com ele. Foi o dia mais feliz da minha vida. Me ensinou a ler e me deu algumas noções de História Natural. Aprendi o nome das espécies da nossa fauna e flora e como coletá-las. Fui seu auxiliar durante sete anos, até ele regressar a Londres. Depois passei a ser contratado por outros cientistas vindos ao Brasil. Meu benfeitor me recomendou a muitos deles. Agora, com mais idade, cansado de viver no mato, decidi buscar um emprego mais estável e tranquilo. Foi aí que encontrei o senhor.

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