Burlamaqui e o X do problema (do futebol brasileiro)
Esta modesta série tem permitido examinar a tabelinha entre o futebol e grandes craques das ciências sociais: Wisnik, Bourdieu, Rial, Geertz, Damo, Elias e Bromberger, um time muito poderoso de pensadores, todos eles consagrados. Agora está na hora de nos voltarmos para as “divisões de base”, para as revelações entre os novos pesquisadores desse tema infinito que é o futebol.
Vamos começar com o jovem historiador Luiz Guilherme Burlamaqui, uma das grandes “promessas” da nossa “futebologia”. Carioca e torcedor apaixonado do Flamengo, atualmente ele é doutorando na USP, tendo feito sua graduação e mestrado na UFF. E é exatamente sobre a sua dissertação de mestrado que falaremos hoje.
Se existe um consenso sobre o futebol brasileiro nos dias que correm ele é um só: a organização do futebol brasileiro, da CBF aos clubes, passando pelas federações estaduais está podre e precisa ser modificada. Na verdade, há mais de meio século o sempre incisivo João Saldanha já afirmava, em 1963, que a organização do nosso futebol era “arcaica” e “obsoleta”. Para resolver um problema, todavia, é preciso conhecê-lo melhor. E ainda há muito poucos estudos sobre os dirigentes de futebol.
Daí a importância estratégica da dissertação A outra razão: os presidentes de futebol entre práticas e representações, defendida por Luiz Guilherme Burlamaqui em 2013 junto ao Programa de Pós-Graduação em História Social na UFF. O material mais importante de Burlamaqui é um conjunto de doze entrevistas que ele consegue fazer com presidentes do Clube de Regatas do Flamengo e do Fluminense Football Club, cobrindo um período que vai de 1975-1997. Eis a primeira (boa) surpresa do trabalho: os dirigentes e ex-dirigentes estavam sim dispostos a falar e de forma bem pouco resguardada, embora com as deformações provenientes do que Bourdieu chama de “a ilusão biográfica”. Cada um deles, obviamente, tentou convencer o pesquisador de ter tomado as melhores decisões e criticou, por outro lado, outros dirigentes.
O objetivo central de Burlamaqui foi o de “tentar depreender as categorias fundamentais a partir das quais estes elaboravam seus discursos e construíam determinadas ideias sobre o poder e a política”. Ou seja, literalmente mergulhar na mente dos dirigentes, ver como eles pensam, o que eles consideram mais importante e o que os leva a buscar a participação no mundo do futebol.
Nas narrativas produzidas pelos cartolas em diálogo com o pesquisador, Burlamaqui percebe alguns elementos recorrentes. O principal deles é que estes homens explicavam a sua ascensão ao poder e a sua maneira de gerir os clubes a partir do “ideário da honra e da dádiva”. Sempre se apresentavam como fazendo sacrifícios pelo clube, como tendo sido quase que “obrigados” a assumir a presidência, inclusive com prejuízo para sua vida pessoal e/ou profissional. Por falar em profissão, Burlamaqui faz um interessante quadro dos presidentes de Fla e Flu e dos seus entrevistados entre 1972-1997. Do lado do Flamengo, temos um médico, um tabelião (dono de cartório), um advogado, um comerciante (dono de loja), dois empresários, um empresário do ramo esportivo, um repórter de rádio e dono de empresa de marketing esportivo e um auditor fiscal. Pelo lado do Fluminense, um juiz, dois advogados, dois médicos, um economista e dois empresários. Burlamaqui assinala que no Fluminense há uma predominância relativa de profissionais liberais enquanto no Flamengo há “uma hegemonia relativa de empresários e comerciantes”. Cada clube tem sua história, sua tradição e seu perfil social e simbólico, o que explicaria estas diferenças.
Como pensam estes dirigentes? O tema central das suas falas é a questão da honra, definida assim por Pitt-Rivers, citado por Burlamaqui:
“A honra é o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a estimativa de seu próprio valor ou dignidade, pretensão ao orgulho, mas também o reconhecimento dessa pretensão, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho.”
Tomando emprestado de Bourdieu a ideia de uma economia política da honra, Burlamaqui tenta mostrar que estes dirigentes estão sobretudo preocupados com a acumulação de capital simbólico, muito diverso do capital econômico, embora por vezes o primeiro possa ser utilizado para facilitar a obtenção do segundo. Este capital simbólico por vezes será transformado em capital político (pensemos nos dirigentes que conseguem se eleger para cargos públicos) ou social. “O cotidiano dos dirigentes”, aponta Burlamaqui, “toma como regimento o signo da virilidade e da masculinidade, em que valores como a coragem, o olho-no-olho, a palavra, etc, são considerados cardinais.”
Assim como na política brasileira, estes dirigentes não percebem seus atos e realizações como parte obrigatória do cargo, como cumprimento de um dever de ofício e sim como dádivas ao clube, esperando por isso um reconhecimento e um vínculo com aqueles que “receberam” o presente: os sócios e os torcedores. Burlamaqui mostra que os estatutos dos clubes estão totalmente permeados por esta lógica hierárquica “em que cada dirigente é congratulado de acordo com seus sacrifícios prestados por sua atuação ao clube”. Resumindo: a lógica de estruturação destes clubes é hierárquica e não democrática.
Aqui Burlamaqui nos dá um elemento fundamental para pensar a nefasta maneira pela qual está “organizado” o nosso futebol e o motivo pelo qual os dirigentes de clubes vivem criticando a CBF mas na hora “H” permitindo que a estrutura da mesma permaneça intacta (apesar da mudança de nomes). Para perceber esta lógica hierárquica, basta dar uma olhada nas diferentes titulações, cada uma com seus respectivos privilégios: Brande-benemérito, Benemérito, Emérito, Laureado, Honorário, Remido, Proprietário, Patrimonial e finalmente o “sócio-comum”, chamado de contribuinte, o que já explicita sua condição. Aqui estamos no império dos homens brancos de classe média (tendente a alta) e meia-idade. Conservadores, machistas, paternalistas. São eles que mandam no nosso futebol.
O seríssimo e importante trabalho de Burlamaqui, mostra mais uma vez o valor da pesquisa em ciências sociais. Indo muito além do senso comum, nos permitir adentrar o mundo dos cartolas, de como eles se veem, de como eles pensam o futebol e o seu papel, de quais são seus valores e preocupações. Parodiando o samba de Noel, em relação ao futebol brasileiro, Burlamaqui nos dá o X do problema.