/Cego Aderaldo, o artista de um Brasil em transformação

Cego Aderaldo, o artista de um Brasil em transformação

TÍTULO: “O Cego Aderaldo, o artista de um Brasil em transformação”

GRAVATA: Cego Aderaldo: a vasta visão de um cantador, fica aquém de uma biografia deste lendário expoente da nossa cultura popular

Cego Aderaldo: a vasta visão de um cantador

Cláudio Portella

Escrituras

191 págs.

Jornal Rascunho

Número 188 – Dezembro de 2015

Marcos Alvito | Rio de Janeiro – RJ

O que é literatura de cordel? Como alguém se torna um cantador? Para que público, em que condições ele se apresenta? Quais são os meios de circulação de suas obras? De que forma se entrelaçam o oral e o escrito nas obras de cordel? Em quais tradições vão beber os cantadores? Como a literatura de cordel se adapta e se modifica ao alcançar as grandes cidades? Por que motivo o Cego Aderaldo granjeou tanta fama no meio, vindo a tornar-se uma verdadeira lenda?

Infelizmente, caro leitor ou leitora, a leitura do livro de Cláudio Portella não responde, nem busca responder, a nenhuma das perguntas acima. A pretensão do autor é de fornecer “verídicas informações sobre o cantador Cego Aderaldo”. Abre o livro um brevíssimo capítulo biográfico, em que somos informados da infância pobre passada na cidade do Crato, no Ceará. Ali o menino Aderaldo começa a trabalhar cedo, já aos cinco anos, para ajudar sua mãe, que trabalhava de doméstica, pois o pai, antes alfaiate, sofrera um AVC. Torna-se aprendiz de carpinteiro, empregado de hotel e aprendiz de ferreiro, dentre outras ocupações. Aos dezessete anos, logo após a morte do pai, Aderaldo começa a ficar cego depois de pedir um copo d’água em uma casa perto de onde estava trabalhando. Sobre este episódio – como em vários outros – há várias versões, uma delas sendo a de que ele estava trabalhando com uma máquina a vapor de descaroçar algodão e o contraste entre o corpo muito quente e a água fria é que explicaria a fatalidade. Segundo relata Cláudio Portella, em um sonho ele se viu cantando e descobriu o meio de ganhar a vida. Teria recebido um cavaquinho de uma amiga e aí iniciado sua carreira. Essa é a história que o próprio Aderaldo contou a seu biógrafo Eduardo Campos e parece poética demais para ser verdade, mas Cláudio Portella não assinala isso, apenas escolhe uma das versões e faz uma nota sobre as outras, “método” que é usado em todo o livro.

Notem que Aderaldo se transforma em cantador assim, meio que por um toque de mágica, embora proveniente de uma tragédia. Não há nessa obra sobre ele, informações que nos permitam entender o processo através do qual ele aprendeu o ofício de cantador. Nada demais que o próprio Cego Aderaldo, já coberto de glória, elaborasse essa versão mítica, mas ela teria que ser submetida a uma crítica.

Pelejas e encontros, reais e fictícios

Em seguida o que temos são mais onze capítulos bem curtos, tratando sobretudo dos encontros reais ou não do Cego Aderaldo, agora cantador, com rivais ou com personagens históricas importantes como o Padre Cícero e Lampião. Aqui, novamente, o livro deixa muito a desejar. Tomemos, por exemplo, a mais famosa peleja do Cego Aderaldo, em que confrontou Zé Pretinho do Tucum e que na verdade foi imortalizada por outro famoso cordelista, Firmino Teixeira do Amaral em 1914 ou 1916. O interessante é que Firmino escolhe como estratégia narrativa a primeira pessoa, como se fosse o cantador cego que estivesse contando a história. Cláudio Portella pouco nos informa sobre Zé Pretinho do Tucum, de quem diz somente ter sido “uma pessoa de fato”, que viveu no século XIX e “faleceu por volta de 1910”. Em seguida o que temos é uma longa transcrição de catorze páginas de trechos daquela que se tornou a mais famosa peleja entre cantadores da história. Decerto que é uma história deliciosa, muito bem narrada por Firmino Amaral: a hospitalidade régia dispensada a Zé Pretinho contrastando com o café e “uma magra bolachinha” oferecidos ao cego; a humildade de Aderaldo, que tira sua rabequinha “Dum pobre saco de meia”, versus a arrogância do rival, que saca o instrumento “De um saco novo de fita/ E cuja viola estava/ Toda enfeitada de fita”. O resultado final do confronto, é claro, é uma vitória acachapante de Aderaldo e a humilhação total do antes orgulhoso Zé Pretinho do Tucum.

Mas caberia ao autor do livro analisar, colocando no seu devido contexto histórico, o conteúdo de versos como:

Este negro foi escravo

Por isso é tão positivo.

Quer ser na sala de branco

Exagerado e ativo.

Negro da canela seca

Todo ele foi cativo.”

Trecho até bastante moderado perto destas duas estrofes, já mais para o final do confronto, em que o Cego Aderaldo literalmente coloca o negro no seu lugar:

Desculpe, José Pretinho

Se não cantei a seu gosto.

Negro não tem pé, tem gancho,

Tem cara, mas não tem rosto.

Negro na sala de branco

Só serve pra dar desgosto.

Quando eu fiz este verso

Com a minha rabequinha,

Procurei o negro na sala,

Já estava na cozinha.

De volta queria entrar

Na porta da camarinha.”

Muitos anos mais tarde, sintomaticamente na década de 1960, o Cego Aderaldo irá fazer versos se desculpando junto aos negros por esta caracterização de Zé Pretinho do Tucum. Cláudio Portella apenas registra isso, sem nenhum comentário, sem nenhuma análise.

A mesma coisa vale para os outros capítulos, que sem dúvida despertam no leitor um enorme interesse por esse artista itinerante, que começou cantando nas esquinas e nas feiras e depois se apresentou em palácios diante de poderosos. Fez versos e teve boas relações, que lhe renderam frutos, com inúmeros políticos importantes: Ademar de Barros, que teria lhe dado um projetor de cinema, Carlos Lacerda, para quem fez versos de louvor, assim como fez versos de apoio ao Brigadeiro Eduardo Gomes e de gratidão a Juscelino Kubitschek, que lhe concedeu a aposentadoria.

Ainda mais interessante é como o Cego Aderaldo se adaptou aos novos meios de comunicação, comprando um gramofone para cobrar por música tocada, sendo dono de um cinema por um breve período e, por fim, gravando anúncios para diversas marcas de produtos. Tauyá, um licor depurativo do sangu; o sabão Aristolino, bom para a pele, o corpo e os cabelos; Grindélia, um xarope contra o pigarro e a bronquite, foram alguns dos milagrosos produtos cantados em verso pelo Cego Aderaldo.

Mas o principal produto vendido pelo cego era ele mesmo, que soube muito bem se promover ao longo da sua história. Inventava encontros que o elevavam acima dos reles mortais, como a vez em que teria conversado com Padre Cícero e com Lampião, que teria lhe dado de presente uma pistola velha.

A trajetória deste artista, rica e multifacetada, tem muito a nos ensinar não somente sobre o alcance e a importância da literatura de cordel em um país de forte tradição oral como o Brasil. Tendo vivido entre o último quartel do século XIX (nasce em 1878) e o fim dos anos 60 (morre em 1967), o Cego Aderaldo acaba por ser um testemunho importante das transformações sofridas pelo Brasil e pela cultura de massas neste período de migração intensa e urbanização acelerada. Ele merece uma biografia a sua altura. Não foi desta vez.

o autor

Cláudio Portella

Nascido em Fortaleza no ano de 1972. Se auto-define como “escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural”. Tem vários livros publicados, dentre eles: Bingo! (2003), Melhores poemas Patativa do Assaré (2006) e o livro dos epigramas & outros poemas (2011).

trecho:

“Cobrava cem réis por disco tocado. Os discos, de tanto tocarem, estragavam-se rápido. Cego Aderaldo ganhou muito dinheiro com o microfone. No final da ‘apresentação’, sempre insistiam para o cego cantar. E ele tinha que cantar, nem que fossem alguns versos.

Em 1933, com um bom dinheiro propiciado pelo gramofone, o cantador põe em prática mais uma de suas ideias. Compra uma máquina exibidora de filme, ‘Pathé Baby’, e dois burros. Consegue algumas fitas variadas e se embrenha novamente no sertão. Dessa vez, como exibidor de filmes. Só aceitando cantorias bem pagas e pelejas com cantadores de categoria.”