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Geertz, briga de galos e futebol: uma comparação

 

Geertz, briga de galos e futebol: uma comparação

Marcos Alvito

Um confronto sangrento entre dois galos armados com esporões de aço afiado e que só terminava com a morte de um de um deles, às vezes dos dois, o que podia acontecer em poucos segundos e no máximo em cinco minutos. Em torno, um grupo formado exclusivamente por homens, que acompanhavam com movimentos corporais a evolução dos animais na rinha. Isso depois de terem feito suas apostas. E que fora dali adoravam preparar seus galos para a briga, alisá-los, banhá-los e sobretudo conversar animadamente sobre as lutas passadas, presentes e futuras. Um evento que ocorria com frequência, duas ou mais vezes por semana, em programas compostos por nove ou dez lutas e que se davam entre o início da tarde e o entardecer.

Eis o que o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006) descobriu quando do seu trabalho de campo em Bali, durante os anos de 1957-58. Mais de uma década depois, em 1972, ele publica um artigo que logo se torna clássico: “Deep Play: Notes on the Balinese Cockfight”, cuja tradução correta seria “Jogo profundo: Notas sobre a briga de galos balinesa”. Ali a questão que ele se coloca é simples, mas que exige uma resposta complexa. Por que os homens balineses dispendiam tanto tempo, dedicavam tantos esforços, se importavam tanto com as brigas de galo?

Para conseguir responder, ele se vale do método da “descrição densa” (thick description) visando o que ele chama de antropologia interpretativa (ou hermenêutica), tentando descobrir qual o signficado daquelas práticas na cultura dos balineses. Geertz começa por perceber o mais óbvio: as inúmeras associações metafóricas e concretas entre galos e homens, já que da mesma forma que na língua inglesa (cock), em balinês o  termo para galo (sabung) também significa pênis. As histórias da mitologia, bem como os provérbios, estavam povoadas de exemplos ligados às brigas de galo: chegar ao Paraíso era comparado a vencer uma luta e perder ao Inferno. Sendo assim, a primeira conclusão é a de que na verdade eram os homens que se confrontavam, através dos galos.

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Briga de galos. Foto: Thessaly La Force – Flickr.

O artigo é muito mais rico, complexo e sutil, mas para o nosso intuito, que é o de utilizá-lo para pensar o futebol, bastarão mais algumas observações. As lutas mais importantes, que geravam maior ansiedade e emoção, eram aquelas em que os galos eram postos a brigar por dois grupos rivais, pelas duas famílias mais poderosas da aldeia, por exemplo, ou entre duas aldeias diferentes. Elas envolviam uma pesada aposta casada (sem vantagens, 1×1) entre os dois grupos, além de apostas feitas “por fora”. As mesmas pessoas que dirigiam a aldeia, ocupando os cargos mais importantes, eram também as que se envolviam nestes confrontos, através dos seus galos, ou que funcionavam como árbitros da disputa. Em uma sociedade de castas como era o caso de Bali naquela época, havia uma obsessão por status, o que era contraditório, pois não havia real possibilidade de ascensão social. Mas se podia brincar com isso, jogar com isso, que era o que ocorria momentaneamente quando um grupo triunfava sobre o outro na ponta do esporão de aço do seu galo.

Os próprios nativos deram a Geertz a pista principal para a sua interpretação quando lhe disseram que as brigas de galo eram como “brincar com fogo sem se queimar”. A partir daí, o antropólogo começa a aprofundar a sua interpretação. A primeira definição que dá é de “uma combinação de explosão emocional, situação de guerra e drama filosófico”. Em seguida, chama de “drama sangrento de ódio, crueldade, violência e morte”.

Aqui podemos começar a estabelecer as comparações com o futebol. Ainda hoje, em um mundo onde a desigualdade de gêneros subsiste mas diminui a cada dia, o futebol ainda é um assunto predominantemente masculino, como era a briga de galos em Bali. Gostar de futebol, praticar, debater, especular, ainda são atividades muito mais facilmente encontradas entre os homens do que entre as mulheres. O futebol é uma espécie de “novela para homens”, um tema recorrente e interminável, que permite o estabelecimento de redes jocosas, de aliança e oposição imaginárias mas nem por isso menos importantes no dia a dia.

Torcer para um clube de futebol permite que haja o engajamento emocional e simbólico em confrontos de um esporte de contato, violento à sua maneira, muitas vezes descrito e encarado como uma guerra (lembremos de Elias e da excitação mimética do artigo da semana passada). Fala-se em derrotar, massacrar, eliminar o outro clube. A cada partida, há um desafio e o risco da derrota humilhante, ao lado da possibilidade de uma doce vitória, propiciando um êxtase coletivo. Também como no caso da briga de galos, aparentemente nada acontece de concreto, afora a morte de um galo ou a perda ou ganho de três pontos, mas na verdade há toda uma trama simbólica efetiva. Isso quando a partida é “profunda”, quando ela mexe com rivalidades que se apresentam com máscaras sociais: o clube dos “ricos” (Fluminense p.ex.) versus o clube dos “pobres” (Flamengo p.ex.), dos “negros” (Internacional, p.ex.) versus o clube dos “imigrantes” (Grêmio, p.ex.). No futebol, como na briga de galos, são os grupos de homens que se defrontam, que brincam com fogo sem se queimar. Por isso os dois esportes são tão magnéticos, tão absorventes para os seus adeptos. Por isso são um “drama filosófico”, cujo significado  é incansavelmente debatido nas ruas, bares e nas intermináveis mesas-redondas da televisão, em que se examinam aspectos dos jogos, das escalações, das táticas, da arbitragem, do comportamento do público e por aí vai.

Porto Alegre 25-04-2011- esportes-fluminense-internacional-Partida entre Internacional e Fluminense valida pelas oitavas de final da taça Santander Libertadores da America no estadio Beira-Rio em Porto Alegre. foto: Alexandro Auler. Na foto:torcida (int) x (flu)

Provocação da torcida do Fluminense na partida contra o Internacional válida pelas oitavas de final da taça Santander Libertadores da América realizada no estádio Beira-Rio em Porto Alegre (2011). Foto: Alexandro Auler – Photocamera.

E há muito mais. Geertz chama a briga de galos de uma forma de arte, comparando-a à ficção, à poesia, à  pintura. É um meio de expressão que permite exibir os dramas e questões para que seja possível pensar sobre eles:

“Como qualquer forma de arte (…) a briga de galos torna compreensível a experiência comum, cotidiana (…) Uma imagem, uma ficção, um modelo, uma metáfora, a briga de galos é um meio de expressão; sua função não é nem aliviar as paixões sociais nem exacerbá-las (embora, em sua forma de brincar-com-fogo ela faça um pouco de cada coisa), mas exibi-las em meio às penas, ao sangue, às multidões e ao dinheiro.”

A briga de galos (ou a partida de futebol) tem uma função interpretativa, é uma história que a sociedade gosta de contar a si própria, permitindo uma auto-reflexão através da emoção:

“Sua função, se assim podemos assim chamá-la, é interpretativa: é uma leitura balinesa da experiência balinesa, uma estória que eles contam a si mesmos. (…) O que a briga de galos diz, ela o faz num vocabulário de sentimento – a excitação do risco, o desespero da derrota, o prazer do triunfo. Entretanto, o que ela diz não é apenas que o risco é excitante, que a derrota é deprimente ou que o triunfo é gratificante (…) mas que é com essas emoções, assim exemplificadas, que a sociedade é construída e os indivíduos são reunidos.”

A sociedade brasileira, por exemplo, historicamente elaborou uma auto-representação de si própria através do futebol. Em que à nossa miséria econômica e social era compensada pela excelência futebolística, encarada como um exemplo de criatividade, originalidade e, a palavra é sempre mencionada, de arte. Uma espécie de vitória simbólica sobre os nossos problemas. É uma história que sempre gostamos de contar sobre nós mesmos e que se repetia a cada Copa do Mundo (pelo menos até o 7×1).

Na última parte do artigo, a briga de galos é comparada, por fim, a uma educação sentimental, pois assistir e participar delas (apostando, torcendo, debatendo, como fazemos no futebol), faz com que o balinês (ou o brasileiro) aprenda os elementos mais importantes da sua cultura, prepare a sua sensibilidade para viver naquela sociedade em particular. Como lembra Geertz, há um provérbio afirmando que “cada povo ama sua própria forma de violência” e a briga de galos seria uma reflexão dos balineses sobre isso.

Geertz recusa a ideia unilateral de que as brigas de galo sejam um reflexo da sociedade balinesa. Elas também ajudam ativamente a criá-la, pois “as formas de arte originam e regeneram a própria subjetividade que elas se propõem a exibir”. Da mesma maneira, poderíamos dizer que a trama simbólica do futebol no Brasil é um agente de revelação e de formação da nossa subjetividade, da nossa maneira de pensar e agir. Saem os galos e entram os times, os esporões viram chuteiras, mas a capacidade de dialogar profundamente com as estruturas sociais e os valores de uma cultura permanecem.