La Dolce Várzea
Aonde mais você irá encontrar a glorificação de um perna-de-pau chamado Parrão? Ou o elogio ao craque camisa 9 do Moleque Travesso, rebatizado de Rei Nagô do Juá. Ou a história de um bebum chamado Sapatão, torcedor tão apaixonado que comemora até gol do outro time. Ou a resenha da peleja entre Americano e Bob Marley no Campeonato da Divisão Especial do Futebol Amador de Diadema. Que eu saiba, somente em Contos da Várzea e outros Blues, de Marcelo Mendez.
Jornalista nascido em Santo André, Mendez foi encarregado pelo jornal ABCD Maior de fazer a cobertura dos campeonatos de várzea da região que já foi o coração da indústria automobilística brasileira, berço do novo sindicalismo que no final dos anos 70 e início dos 80 abalou a ditadura com greves históricas. O próprio autor é filho de um sindicalista que participou de todo este processo. A luta de Marcelo Mendez é outra: ele tenta perceber sinais de vida futebolística espontânea e verdadeira na várzea profunda, ali onde o “padrão FIFA” está ausente mas já começa a rondar.
Marcelo se define como “cronista improvável, caboclo poético, entidade lúdica contumaz e renitente em busca de lirismo pelos campos da várzea do ABCD”. Ou de maneira mais sintética: “cronista ludopédico e roqueiro apaixonado”. É uma espécie de cavaleiro andante em busca da beleza do que ele chama de “futebol roots”, “Em tempos onde a poesia é pouca, onde o encanto se esvai entre negociatas, falácias e truculências”. Como ele diz em um trecho, quase religioso:
“Eu vi a terra batida se formar em uma espessa nuvem marrom de poesia e encanto e dentro dela emergirem jogadores de futebol de uma decência, de uma retidão de caráter comovente.”
Para tentar captar a estética dos campos de terra de poeira fina do ABCD, o autor faz frequentes comparações com a música, principalmente blues e rock, e também com o cinema. Os relatos apaixonados sobre o rude esporte bretão em sua essência misturam-se, aqui e ali, com os amores do autor e com cenas da sua vida cotidiana como o café da manhã na feira: pastel de queijo e café puro na banca de Dona Yuko. Tudo, no bom sentido, bem humano, demasiado humano.
Este romantismo necessário e bem-vindo é temperado, como já disse, pelos sinais da contaminação proveniente do futebol profissional e que já se fazem presentes nos terrões do ABCD. É, por exemplo, o retrato impiedoso mas bem-humorado de Renatinho, camisa 10 da equipe onde Marcelo jogou por 11 anos com o mesmo número nas costas:
“Veio em minha direção. Garoto alto, 22 anos, bem-criado, de chuteiras importadas nos pés, nariz empinado e gestos coreografados. Olhou-me com curiosidade e desconfiança. Deu-me a mão frouxa e começou a falar. Disse que seu empresário estava mantendo contatos, que provavelmente voltará à Europa e que sua estada no Nacional era uma passagem para se manter em forma até lá. Perguntei o lugar da Europa e ele me respondeu:
Malta: Primeira divisão!”
Nem é preciso comentar, mas acrescento que o time de Renatinho perdeu de 3×0 e que o “craque” saiu no intervalo, alegando ‘um puxão na coxa’. No extremo oposto temos a crônica sobre Adílson Cevô, descoberto em meio a uma partida entre Vila Junqueira e Primeiro de Maio. O camisa 11 do Vila Junqueira é descrito assim:
“Cevô é muito mais do que craque de bola. O menino magro, de cabelos tingidos de loiro, bom de bola, atacante mordaz e letal para seus pobres adversários, é uma espécie de Arlequim, um personagem esperto, ávido por todas as chances do mundo de ser feliz através de seus dribles, seus gols, seus sonhos. Vejo em Adilson Cevô toda a reserva poética que insiste em resistir, que luta para não se esvair por entre prateleiras de obviedades que são apenas burras.”
Depois de louvar um pênalti batido com toda a picardia por Cevô, deslocando o goleiro, Marcelo Mendez diz que o camisa 11 o tornou feliz naquele momento. É talvez o lado mais bacana das deliciosas crônicas do livro e que captura algo fundamental de uma partida de futebol, jogada em Wembley ou no Estádio Distrital da Cidade dos Meninos. Trata-se do caráter único, irrepetível e imprevisível desse evento produzido por 22 homens (ou mulheres) correndo atrás da pelota. Marcelo muitas vezes descreve como vai ao seu campo ouvindo um blues ou um jazz. Eu diria que ele se prepara, vai aguçando sua sensibilidade para poder ver com olhos sempre novos, os olhos de poeta, olhos de artista.
Sendo assim, temos aqui um livro extremamente prazeroso, que se devora como os melhores momentos de um clássico em que seu time ganhou. É um livro muito além do futebol para poder tratar daquilo que este esporte tem de mais importante. Seu caráter simbólico, sua dimensão de arte que permite a expressão e o fortalecimento de identidades locais e de um determinado ethos masculino muito forte, sobretudo em uma região de tradição operária como o ABCD. É o que Bromberger (já tratado aqui na coluna) define como “drama filosófico”.
Assim como seu pai resistia à exploração patronal organizando e patrocinando greves tão importantes quanto desafiadoras da ordem autoritária vigente à época, Marcelo Mendez é um bardo a cantar a dimensão épica da várzea. Está engajado na luta contra o “mundo de plástico”, que tem no “aperto de mão xexelento Padrão Fifa” apenas uma dentre muitas expressões. Logo após citar uma música dos Novos Baianos, que contestaram a Ditadura Militar com uma arte que desafiava a caretice, Marcelo explicita seu programa:
“Nos tempos últimos, em meio à catarse do endurecimento de emoções, de pasteurização nas arquibancadas de marfim das suntuosas arenas que surgem, pintando como uma resistência, como uma firme e forte reserva de alguma alegria, aqui está o futebol da várzea.”
Que o poeta roqueiro me permita uma comparação com um samba de Paulinho da Viola. Em uma ode à Mangueira, escola rival da sua Portela, Paulinho cantou assim:
“E a beleza do lugar
pra se entender
tem que se achar
que a vida
não é só isso
que se vê
é um pouco mais
que os olhos
não conseguem perceber
que as mãos
não ousam tocar
O autor de Contos da Várzea se aventura na experiência poética de tentar definir ou ao menos evocar o indefinível (sempre o mais importante) do futebol. Aliás, em um documentário sobre o Partido Alto, Paulinho da Viola fecha o filme dizendo que o mais importante é o que não se consegue definir. “Uma firme e forte reserva de alguma alegria”. Assim também poderia ser descrito o teu livro, poeta ludopédico Marcelo Mendez. Que dos teus olhos que sabem ver nos venham outros blues futebolísticos. Estamos necessitados de beleza feito um centroavante precisa de gols.