Odisseus (Ulisses), juntamente com Heitor, é o grande herói homérico, com uma vantagem sobre o troiano: venceu a guerra, voltou vivo para casa depois de dez anos de peripécias envolvendo sereias, monstros de um só olho, uma feiticeira, uma ninfa tão apaixonada por ele que queria transformá-lo em imortal e muito mais. Odisseus era incansável, astucioso, atlético, nobre e galante. Ao voltar para casa massacra os cento e oito pretendentes que assediavam a fiel Penélope, que por ele esperou vinte anos. E enforca uma dúzia de escravas que haviam dormido com aqueles homens.
Agora imaginem essa versão oficial – que já tem quase três mil anos, desafiada por uma da mais ácidas, hábeis e inteligentes escritoras de hoje: a canadense Margaret Atwood. Em primeira pessoa, depois de sua morte, como um Brás Cubas de saias, Penélope reconta a história de forma deliciosa, inspirada e muito, muito crítica. Atwood sempre negou ser feminista, alegando não bastar a ela se filiar a um conjunto de ideias e representações. A arte precisa de ar, de imaginação livre. Mas o fato é que este pequeno livro, praticamente uma novela, desconstrói impiedosamente as raízes do patriarcado, com uma aguda sensibilidade crítica.
Dialogando com esta Penélope experiente, sábia e perspicaz, temos o coro das escravas mortas, personagens praticamente esquecidas, cuja voz é ouvida nestas páginas. Atwood tempera as críticas de Penélope com passagens extremamente bem-humoradas, como as relativas a Helena de Tróia. Como em tudo que ela escreve, temos essa admirável mistura de uma narrativa envolvente e significativa mas extremamente prazerosa. Faz rir e pensar, muitas vezes ao mesmo tempo.