MACHADO 131
Imagine como era no tempo da sua bisavó. Agora imagine como era o mundo no tempo da bisavó da sua bisavó. Para facilitar: pense em como era a sociedade brasileira há um século e trinta e um anos. Para sermos exatos, no ano de 1891, três anos apenas depois da Abolição.
Em fevereiro deste longínquo ano, Machado de Assis publica “O conto da vara” na vanguardista e progressista Gazeta de Notícias, A história, todavia, ocorre em uma outra época: “Não sei bem o ano, foi antes de 1850”. Ou seja, tudo se dá no período anterior à lei que proibiu a entrada de novos escravizados no Brasil, muito mais por pressão bélica dos navios ingleses do que pela vontade das nossas elites escravocratas.
De início, esquecemos deste detalhe, parece ser uma história leve e engraçada: o moço Damião foge do seminário porque não quer ser padre, é um rapaz simpático, cheio de verve, bom contador de histórias e que estava “certo de que não podia ser bom padre”. Depois de perambular sem rumo pelas ruas, chamando atenção pela roupa de seminarista fora do lugar, decide buscar abrigo junto a Sinhá Rita. Esta senhora, uma viúva, “tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo.” Na verdade, não era parente de Damião, mas este sabia ela que era amante (palavra que obviamente não comparece no texto) do seu padrinho João Carneiro, que não negava o sobrenome e era um zero à esquerda.
Para encurtar a história, da mesma forma que a relação entre Sinhá Rita e João Carneiro é extra-oficial, a boa viúva se torna uma espécie de madrinha do rapaz com o intuito de fazê-lo escapar às privações carnais da vida religiosa. Ela não pode negar o pedido de Damião depois que ele se ajoelha aos seus pés e beija sua mão. Sinhá Rita é uma madrinha bem apropriada, podemos dizer. Ela, vivaz e alegre, conta algumas histórias e pede ao rapaz que faça o mesmo. Ele não se faz de rogado e uma das suas anedotas, contada pelo rapaz com graça e trejeitos, faz até uma das escravizadas rir.
Escravizadas? Como assim? Aqui entra a genialidade de Machado. Ele descreve uma sociedade em que a escravidão estava perfeitamente naturalizada, era como se fosse um cenário no qual ninguém reparava. A alegre Sinhá Rita, de fato, ganhava a vida ensinando “as crias” a costurar e a bordar. Em outras palavras, ao aprenderem este ofício, as mocinhas escravizadas seriam mais valorizadas enquanto mercadoria. Neste ponto cessava a jovialidade de Sinhá Rita e desaparecia o seu “gênio galhofeiro”: ela exigia o cumprimento das tarefas e disciplinava as pequenas com a vara. E ao ver uma das escravizadas a parar seu trabalho para rir de Damião e de suas caretas e brincadeiras, Sinhá Rita ameaça golpeá-la com o instrumento que estava o tempo todo ali à espera.
Machado se detém para nos apresentar essa criança escravizada, a qual, diz ele, estava acostumada com esse castigo, sem dúvida desde bem criança, trajetória que deixara marcas:
“Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos.”
Em um paralelismo imperfeito, Damião, ao reparar que a menina tossia “para dentro”, para não chamar atenção nem convidar ao castigo, tem “pena da negrinha” e resolve ser seu padrinho, caso ela viesse a ser punida por Sinhá Rita se não acabasse a tarefa. Afinal, ela rira por sua culpa.
Mas a narrativa logo passa para tema bem mais feliz. Os futuros prazeres que esperam o rapaz são devidamente anunciados. Depois do jantar, à hora da sobremesa, aparecem “as moças”. Cinco vizinhas que todas as tardes iam tomar café com Sinhá Rita até cair a noite. Vejam a cena, as moças brancas, tomando café ou chá, comendo seus biscoitos e bolinhos, conversando e fofocando com aquela viúva tão divertida. Enquanto isso, as mocinhas escravizadas se esforçavam para terminar os seus trabalhos e fugir ao peso da vara. Olhem só que imagem de Machado, unindo e confrontando os dois extremos: “o sussurro dos bilros e o palavrear das moças”. Repressão, tortura e violência de um lado, alegria despreocupada e alienada do outro. Este é o segundo paralelismo: as mocinhas escravizadas e as moças brancas.
Damião conta, novamente, a anedota tão engraçada que fizera a criança escravizada rir. As moças adoram. A pequena escravizada, todavia, mergulha na sua tarefa e evita levantar a cabeça ou rir, a não ser que fosse para dentro, observa Machado. As moças brancas, como era de se esperar, riem muito, à vontade, elas podem.
Por fim, acabou-se a brincadeira. As mocinhas que podiam ser alegres vão-se embora. Sinhá Rita já havia tomado todas as providências para que o rapaz jamais tivesse que vestir a batina. Era a hora de conferir e recolher o trabalho das mocinhas escravizadas. Todas haviam terminado suas tarefas, menos aquela menina magrinha de onze anos com cicatriz na testa e queimadura na mão esquerda.
Sinhá Rita se transforma, vira bicho e agarra a criança por uma orelha. Enquanto a menina se debate roga por Nossa Senhora, e pede perdão inutilmente, a viúva, vendo que a vara está longe, ordena a seu protegido que a entregue.
Damião se lembra de ter feito a si mesmo uma promessa silenciosa de apadrinhar e, portanto, proteger a menina que rira da sua anedota e por isso atrasara seu trabalho. Sinhá Rita insiste, a menina pede a ele “por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor…”. Sinhá Rita, transtornada “com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara”, enquanto a menina é tomada por um acesso de tosse. Damião sente pena, muita pena: “mas ele precisava tanto sair do seminário!” Sendo assim: “pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.”
O conto, como já vimos, é montado sobre dois paralelismos: o compadrio de Sinhá Rita, que livra Damião do seminário, por um lado, contrastado com o falso compadrio de Damião e da pequena escravizada. O segundo paralelismo é entre a vida alegre das moças brancas e livres e o inferno em que viviam as meninas escravizadas, sem direito sequer a rir.
Mas o toque adicional de genialidade vem do nome da criança escravizada, ela se chama Lucrécia. Lucrécia é o nome de uma nobre romana que foi estuprada pelo filho do último rei de Roma, levando à queda da Monarquia. Lucrécia, sem poder conviver com a desonra se suicida.
Suicídio é o que a sociedade brasileira está praticando. Cento e trinta e um anos depois da publicação do conto de Machado, os paralelismos imperfeitos, as injustiças, as violências seletivas continuam. Sobretudo a doce e alegre indiferença perante o sofrimento de grupos sociais “marginalizados” (as aspas vão por conta de serem, na verdade, a maioria da população).
Detalhe: fui pesquisar uma imagem para ilustrar esse conto. Acabei por descobrir um site que vende vara de marmelo, a que dói mais e por isso era preferida na época da escravidão e, pelo jeito, ainda hoje. Custa menos de vinte reais.
P.S: Este conto foi debatido no 5o. Encontro do Clube Machado (vídeo no Youtube, Canal Marcos Alvito), voltado para estudantes de Ensino Médio. É gratuito.
Imagem: Debret, Senhora brasileira em seu lar.