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O ódio como combustível – o papel do vilão

 

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O ódio como combustível – o papel do vilão

Marcos Alvito

A paixão futebolística é uma máquina movida a ódio. Quem diz isso é Nelson Rodrigues, citado pela autora da tese A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira em Copas do Mundo: “sem ódio não há torcida possível”. Nesta tese de doutorado em Literatura Comparada defendida na UERJ em 2008, focaliza-se a maneira pela qual “as principais derrotas do selecionado brasileiro de futebol foram narradas em contos, crônicas, jornais, em produções cinematográficas etc.”. O exame deste vasto e rico material visa investigar “os significados que a derrota assume no Brasil” e o “imaginário do fracasso”. Uma espécie de: diga-me como tu explicas a tua derrota e te direi quem és, como pensas, quais são teus valores.

Exemplificando. Antes de nos firmarmos enquanto país vencedor, antes da invenção da ideia do Brasil melhor do mundo no futebol, mais precisamente em 1950, como não tínhamos modelo positivo, nossos vilões foram talhados ao reverso do herói uruguaio a quem nós atribuíamos a nossa derrota: o ironicamente mulato Obdulio Varela. Os “vilões” de 1950 eram encarados como desprovidos das qualidades do herói da Celeste: a raça, a determinação, a garra, a autoridade e até a virilidade. Depois de nos tornarmos duas vezes campeões mundiais em seguida (1958-1962), já teremos nossos próprios heróis e doravante as narrativas sobre vilões irão se contrapor a eles. Ou seja, a partir de 62 os vilões serão vistos como desprovidos das qualidades que passamos a atribuir ao “verdadeiro e autêntico” futebol canarinho. Os nossos vilões das copas seguintes passam a representar “pelas avessas o ideal identitário do futebol brasileiro”.

Mas apresentemos a autora desta pesquisa tão reveladora. Leda Costa é uma vascaína empedernida e leal. Como se não bastasse é uma importante pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Sobre Esporte e Sociedade (NEPESS) e editora-chefe da Revista Digital Esporte e Sociedade. É doutora em Literatura Comparada como já vimos. Organizou o livro Enquanto a Copa não vem. Memórias e Narrativas e publicou diversos artigos, dentre os quais “Heróis e vilões do futebol”, onde resume sua tese.

A grande questão é a seguinte: por que temos necessidade de construir narrativas “explicativas” do nosso mau desempenho centradas na figura do vilão ou dos vilões? Leda Costa dá vários motivos para isso. Para começar, heróis e vilões são figuras que remontam à Antiguidade, embora tenham sofrido renovação constante: ela cita o exemplo de Darth Vader, quase tão cultuado quanto o herói de Guerra nas Estrelas. Depois há a propaganda, que se utiliza cada vez mais dos maiores jogadores de futebol para montar peças “nas quais atletas surgem representados sob a aura de heróis míticos”. Ao reforçarem a noção de herói associada a jogadores de futebol, reforçam também o seu contrário, pois como mostra a autora, é fácil passar de herói a vilão e é possível (embora menos frequente) passar de vilão a herói.

BELO HORIZONTE, BRAZIL - JULY 08: during the 2014 FIFA World Cup Brazil Semi Final match between Brazil and Germany at Estadio Mineirao on July 8, 2014 in Belo Horizonte, Brazil. (Photo by Laurence Griffiths/Getty Images)

Jogadores do Brasil, candidatos a heróis, cantam o hino nacional antes da partida contra a Alemanha na Copa de 2014. Foto: Laurence Griffiths/Getty Images.

Papel mais importante do que a tradição literária e do que a propaganda no fortalecimento da ideia de herói é desempenhado pela imprensa. Este ponto é importantíssimo. Costa assinala que nossa imprensa esportiva “cada vez mais se aproxima de narrativas típicas do entretenimento e que investe em fórmulas narrativas de fácil acesso, oferecendo-lhe conteúdos familiares e coletivamente compartilhados. Pensemos, e aqui quem dá o exemplo sou eu, em um programa como Globo Esporte e seu tom de leve comédia, escracho e positividade, seus apresentadores e apresentadoras metidos a engraçadinhos. Digamos que o Brasil não consiga se classificar para a Copa do Mundo de 2018. O que veremos? Uma série de programas baseados em pesquisa original e aprofundada acerca das estruturas do futebol brasileiro? Ou a busca desenfreada por bodes expiatórios? Creio que todos conhecem a resposta. A imprensa, pontua a autora, cada vez mais enfatiza “aspectos emotivos e conflituosos do esporte”. Tirando raros programas mais analíticos, na nossa televisão imperam as entrevistas com técnicos e jogadores, salientando o aspecto individual, em que as perguntas são preferencialmente sobre as falhas ou sobre os “feitos”.

Aqui eu gostaria de acrescentar um ponto. Sérgio Buarque de Hollanda, em seu Raízes do Brasil, publicado no longínquo ano de 1936, pode iluminar este debate. Ele assinala, examinando a herança do nosso colonizador, a fraqueza das nossas instituições, em suas próprias palavras: “a singular tibieza das formas de organização. Salienta também “a autarquia do indivíduo” e a “exaltação extrema da personalidade”. Na política, por exemplo, vivemos em busca de “salvadores da pátria” e de “vilões”. Entre nós o entendimento de processos complexos, que demandam estudo e pesquisa, é posto de lado em troca da arte de apontar culpados. Neste ponto, mais do que nunca, nossa fábrica de heróis e vilões é apenas mais um aspecto em que o futebol permite a leitura da sociedade brasileira.

Esta reflexão não seria possível sem o provocativo e bem elaborado trabalho de Leda Costa, que ousou tocar em um tema sensível e até certo ponto desprezado (embora não desprezível): os vilões, aqueles que permitem a canalização das frustrações coletivas e a superação dos traumas. “Pobre do povo que precisa de herói”, dizia Bertold Brecht. Leda Costa parece complementar como se afirmasse: “Pobre do povo que precisa de vilões”.